Edição 200 | 16 Outubro 2006

Transplante de órgãos: um novo caminho para o debate bioético sobre o conceito de pessoa

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IHU Online

Encontros de Ética

Transplante de Órgãos: um novo caminho para o debate bioético sobre o conceito de pessoa é o tema que a Profª. Dra.Karen Bergesch ministrará nos Encontros de Ética no dia 18 de outubro, quarta-feira. A atividade, aberta a toda a comunidade acadêmica, tem entrada franca e vai das 17h30min ás 19 horas, na sala 1G119 do IHU.

Karen Bergesch  é integrante do Aconselhamento Pastoral da Escola Superior de Teologia, em São Leopoldo. Confira abaixo a entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. 

IHU On-Line - Qual o conceito de pessoa que emerge da compreensão transdisciplinar da bioética? Como o tema do transplante de órgãos pode ajudar a elucidar essa questão?

Karen Bergesch
- O conceito de pessoa é um tema central para a bioética. Isso ocorre porque todo o desenvolvimento da tecnologia médica visa, em última análise, à melhora da qualidade de vida da pessoa. A questão toda, então, passa a ser como se relacionar com os avanços da tecnologia médica. Ou seja, até que ponto devemos utilizar os recursos disponíveis quando eles podem significar um prolongamento da vida que cause mais desconforto e sofrimento que seu objetivo inicial de melhorar a qualidade de vida. Devido a esse impasse, o debate sobre o conceito de pessoa passa a ocupar um lugar central.

A pesquisa com embriões

Geralmente o tema do conceito de pessoa é enfocado devido às pesquisas com embriões. Neste debate, a grande discussão gira em torno do momento em que é possível identificar o início da vida humana, pois se compreende que seria possível desenvolver pesquisas com embriões quando estes ainda não forem considerados pessoas. Neste caso, a discussão volta-se para a questão do início da vida humana e não mais para o conceito de pessoa. Por essa razão, decidi estudar o conceito de pessoa com um tema em que o ser humano é independente e autônomo o suficiente para poder se manifestar sobre as possibilidades de tratamento. Desse modo, o transplante de órgãos traz grandes contribuições para o debate sobre o conceito de pessoa, pois o acompanhamento do tratamento relacionado à transplantação permite conhecer a pessoa envolta em questões da tecnologia médica. Esse fato permite conhecer seus medos, desejos, anseios em relação a si e seus familiares.

IHU On-Line - O que é mais freqüente no comportamento das pessoas envolvidas no transplante e de suas famílias? O que ocorre, em geral, depois do conhecimento de seus medos? Quais os cuidados necessários nesse momento?

Karen Bergesch -
O transplante de órgãos exige um envolvimento familiar muito grande. É necessário que a família desenvolva uma estrutura de suporte para os cuidados de higiene, alimentação, medicamentosetc. Essa dependência requer uma reestruturação familiar quanto à economia, à divisão de tarefas e até mesmo planos conjuntos e individuais para a vida. Diante desta situação, surgem muitas perguntas por parte da pessoa que necessita de um órgão, relacionadas à vida e à morte, aos sentimentos familiares, aos papéis familiares (responsabilidades) e aos afetos íntimos. Por exemplo, uma pessoa adulta que necessita de um transplante e vive em situação marital, pergunta-se freqüentemente sobre sua sexualidade em relação ao prazer e à reprodução. O conhecimento dos medos próprios de cada fase da transplantação bem como da situação de vida de cada pessoa que necessita de um órgão oportuniza um diálogo sobre os medos e sua possível superação. Digo possível, porque é diante de uma situação como a da transplantação que as relações familiares vão se definir.

IHU On-Line - Quais as cinco correntes filosóficas que a senhora usou para o debate atual sobre o conceito de pessoa? Há lugar para os valores do cristianismo nessa discussão?

Karen Bergesch
- A bioética, hoje, ainda não apresenta uma única sistematização devido ao seu recente surgimento (cerca de 30 anos). Por isso, é possível abordar temas bioéticos através de diversas correntes. Eu escolhi cinco correntes consideradas de maior representatividade no momento para a bioética que são o aristotelismo, o kantismo, o principialismo, o utilitarismo e o contratualismo. A corrente do aristotelismo aborda o tema das virtudes na ética prática. Essas virtudes são chamadas por Aristóteles  de phronesis e buscam unir o aspecto emocional ao racional no momento de tomar decisões práticas. O kantismo compreende a pessoa como um ser racional capaz de agir moralmente. As palavras liberdade e autonomia, importantes para Kant , são fundamentais para a reflexão bioética. O principialismo, rótulo atribuído à moralidade comum, é a escola bioética mais conhecida, pois tem sido elaborada há cerca de 20 anos. Essa escola apresenta princípios (autonomia, justiça, beneficência e não-maleficência) para debater e resolver questões bioéticas. O utilitarismo, em meu trabalho, é representado por Peter Singer . A reflexão de Singer coloca-se como um contraponto, pois o filósofo apresenta uma diferenciação entre os conceitos de ser humano e pessoa. Segundo sua definição, é ser humano quem pertence à espécie homo sapiens, o que pode ser constatado através de exames, e é pessoa quem possui capacidade racional e noção de tempo passado, presente e futuro. Portanto, é uma proposta que trabalha com a noção de exclusão e não de inclusão como as outras aqui citadas. Por último, a corrente do contratualismo, que se baseia no contrato social. Segundo essa teoria, as pessoas vivem em relações sociais em um determinado meio ambiente. Por isso, elas devem pensar nas relações com o meio ambiente e com a sociedade (não só presente, mas também futura). Desta forma, o contratualismo apresenta uma noção da pessoa como ser social e não apenas como indivíduo, ênfase das outras correntes.

Os valores do cristianismo podem ser identificados pela palavra dignidade. Dignidade é um termo difícil de definir, mas que permanece no debate de escolas identificadas fortemente com o cristianismo, bem como com documentos que defendem a vida humana. Assim, o presente momento da bioética não permite ainda uma síntese sobre o conceito de pessoa. Por isso, é apropriado falar em conceitos de pessoa no plural e não conceito no singular.

IHU On-Line - O que fazer para que a dignidade humana seja respeitada no caso do transplante de órgãos?

Karen Bergesch -
A forma que a transplantação está organizada mundialmente por meio de listas de espera e centrais de captação de órgãos, por exemplo, demonstra um grande respeito pela vida humana e sua dignidade, pois reúne qualidade de tratamento e distribuição de recursos para todas as pessoas que necessitam deste tipo de tratamento. Apesar desta ampla organização, é necessário que a população seja esclarecida sobre os transplantes e a doação de órgãos. Por exemplo, que órgãos podem ser doados, para quem vão os órgãos, o que significa viver com um novo órgão em termos de cuidados e mudanças de vida, quem pode ser doador, o que significa o critério de morte encefálica etc. O conhecimento e o debate sobre o tema da transplantação podem ampliar a solidariedade para a doação de órgãos.

IHU On-Line - No Brasil, há milhares de pessoas na fila de espera por um transplante. É falta de solidariedade ou falta de capacidade para realizar as cirurgias? Qual a porcentagem de óbitos dos pacientes que aguardam por um órgão?

Karen Bergesch
- O Brasil possui uma excelente organização em torno da transplantação que inclui a formação de profissionais para trabalharem tanto na retirada de órgãos quanto em sua implantação. Portanto, não é um problema de estrutura. A espera por um órgão em lista de espera não é característica apenas do Brasil. Isso ocorre em todos os países que realizam cirurgia de transplantação. O tempo em lista de espera é relativo e depende de inúmeros fatores, como tipo sangüíneo e tamanho entre doador e receptor. Isso faz uma pessoa poder receber um órgão quando inscrita apenas há um mês na lista de espera, como demorar o tempo médio para cada órgão (pulmão, por exemplo, são cerca de seis meses de espera) ou mesmo nunca ser transplantada. A porcentagem de óbitos em lista de espera varia de acordo com cada órgão, sendo difícil apresentar uma porcentagem.

IHU On-Line - O sistema de doação e transplante de órgãos no Brasil funciona? Esse sistema é eficiente para impedir que ocorra tráfico de órgãos?

Karen Bergesch
- O Sistema Nacional de Transplantes (SNT) funciona muito bem e possui uma política de transparência. Qualquer informação sobre captação e distribuição de órgãos, organização das centrais de atendimento, hospitais cadastrados, campanhas publicitárias com incentivo à doação, dados estatísticos e demais informações podem ser encontradas na página www.saúde.gov.br/transplantes. A Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos (ABNT) coloca o Brasil como segundo maior país em transplantes de órgãos e tecidos do mundo, ficando atrás somente dos Estados Unidos. Isso é uma grande vitória para o Brasil devido a suas grandes diferenças sociais e econômicas.

A doação de órgãos é gratuita, pois se compreende que o corpo humano não é apenas um instrumento da pessoa, mas é sua própria existência. Apesar disso, o problema do tráfico de órgãos existe. A compra de órgãos humanos para o transplante ocorre principalmente em países em desenvolvimento, sendo difícil obter dados precisos a respeito. Os países que registram os maiores números de doação de rim de doador vivo são a Índia, o Egito e o Iraque, sendo que o registro de doador cadáver é raro.

IHU On-Line - A oportunidade é de fato igual para ricos e pobres?

Karen Bergesch
- No Brasil, toda pessoa que necessita de um órgão possui oportunidade igual de tratamento, devendo, é claro, respeitar a inscrição na lista de espera e os demais cuidados médicos. Aí entramos em um aspecto que até agora não tínhamos abordado, as condições psicossociais do paciente. Toda pessoa que mora em local que não possui sistema de saneamento básico corre um risco maior de infecção pós-operatória. Por isso, é recomendado que a pessoa mude para um local que ofereça estrutura de saneamento básico. Outro aspecto importante de cunho psicológico é o que os médicos costumam dizer “aderir ao tratamento”. Se a pessoa não aderir ao tratamento, isto é, tomar a medicação corretamente, ir às consultas regulares e seguir as recomendações médicas, a pessoa não pode receber um órgão, pois, para cuidar do órgão transplantado é necessário muita disciplina. Desta forma, para receber um órgão são avaliados tanto os critérios técnicos da saúde do paciente quanto os critérios psicossociais.

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