Edição 422 | 10 Junho 2013

Copa do mundo: guerra mimética entre nações

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Graziela Wolfart

O professor Arlei Damo analisa os megaeventos a partir do olhar da antropologia e afirma: “o segredo para o sucesso das copas do mundo de futebol masculino passa, necessariamente, pelo deslize de significados atinentes ao imaginário nacional para as arenas esportivas”

Uma das características importantes dos megaeventos, na opinião do professor Arlei Damo, da UFRGS, é que eles passam a ter uma existência que transcende o acontecimento em si, sendo reelaborados de muitas formas. “Toma-se o Holocausto como exemplo e observe-se a quantidade e diversidade de monumentos, livros, teses, filmes e tantas outras produções a seu respeito. Não é mega apenas porque foram mortas covardemente milhões de pessoas, mas também porque isso dificilmente será esquecido por séculos, quiçá milênios”. Para Arlei, na entrevista concedida por e-mail para a IHU On-Line, não há uma explicação padrão para compreender o engajamento de tantas pessoas que são implicadas pelos megaeventos. “Não existe um único motivo para explicar a Primavera Árabe. Então, como misturar isso com Woodstock ou com a peregrinação à Meca? Cada qual já é complexo em si mesmo, pois os engajamentos se dão por motivações que variam de um campo a outro e são consignados através de estratégias distintas na política, na música e na religião, por exemplo. Mas nada impede que um megaevento flerte com vários desses elementos simultaneamente, como no caso do efêmero Woodstock, que foi uma composição sui generis entre juventude, rock and roll, manifestação política, afrontamento à moral conservadora, misticismo, entre outras variáveis”, esclarece. 

Arlei Damo é graduado em Educação Física, mestre e doutor em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, e leciona nessa mesma instituição. É autor de Futebol e identidade social (Porto Alegre: UFRGS, 2002) e Do dom à profissão: a formação de futebolistas no Brasil e na França (São Paulo: Hucitec, 2007) e coautor de Fútbol y Cultura (Buenos Aires: Norma, 2001). 

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como entender o interesse antropológico pelos megaeventos?

Arlei Damo – Megaeventos, como o prefixo sugere, são eventos de grandes proporções e a antropologia se interessa por aqueles nos quais a dimensão humana está implicada. Bem entendido, para que um evento tenha grandes proporções não é preciso que envolva, necessariamente, uma extensa quantidade de pessoas, como são as revoluções, guerras, peregrinações e outros eventos que possuem tais características. Em antropologia trabalha-se com os fatos concretos, mas não menos importante – e às vezes mais – é a repercussão deles. Em outras palavras, a antropologia perscruta um mundo que vai muito além da realidade positiva, e nesse mundo um fato banal pode adquirir um significado denso e volumoso, expandindo-se muito além das fronteiras originais.

De outra parte, os megaeventos representam um desafio à antropologia. Ao longo de um século de história, mas, sobretudo, na primeira metade dele, a antropologia se especializou no estudo de sociedades de escala reduzida. Isso teve a ver, em parte, com o tipo de preocupação teórica, vinculada às sociedades tradicionais (à época ditas primitivas), que eram em geral compostas por grupos de indivíduos numericamente reduzidos se comparadas às sociedades europeias. Por outro lado, os antropólogos sociais e culturais desenvolveram uma forma de abordagem de campo muito peculiar, cunhada de etnografia, que pressupunha o contato direto entre o pesquisador e os pesquisados. A observação participante, largamente praticada no espectro da antropologia contemporânea – em que pese suas nuances – e até fora dela, valoriza o contato qualitativo, meticuloso, aprofundado, razão pela qual é mais eficiente para a investigação de pequenos grupos, com os quais o pesquisador pode interagir intensamente. Todavia, a antropologia incorporou, ao longo dos últimos anos, a preocupação com as sociedades urbanas, nas quais os fluxos são mais alargados – sejam eles de pessoas, informações, mercadorias, ideias e assim por diante. Para muitos antropólogos, mesmo os mais experimentados, eventos da proporção e da evanescência de um jogo de futebol, uma romaria, um show de rock, um grande comício, entre tantos outros, são desafiadores, pois as ferramentas convencionais da observação participante necessitam de muitos ajustes. Mas a antropologia tem se mostrado capaz de se renovar, tanto teórica quanto metodologicamente, razão pela qual os megaeventos precisam ser enfrentados. 

IHU On-Line – O que caracteriza os megaeventos como diversificados e multifacetados? 

Arlei Damo – Diversificados na medida em que são muitos e ao mesmo tempo distintos. Temos uma quantidade extraordinária de festas populares no Brasil, por exemplo, e elas têm suas especificidades, embora também tenham algo em comum. Mesmo o carnaval, é muito diferente o modo como é organizado e vivido no Rio de Janeiro, Bahia, Pernambuco e Rio Grande do Sul. E que tal pensarmos nas celebrações religiosas? São igualmente muito diversificadas, algumas delas até tendo nexos com as festas profanas. O mesmo vale para o campo artístico – em especial a música –, o esporte, a política, a economia e assim por diante. São multifacetados na medida em que permitem diferentes abordagens. O carnaval do Rio de Janeiro, por exemplo: pode-se abordá-lo pelo viés estético, que é o mais usual, mas também econômico, histórico, moral, etc. Nenhuma dessas perspectivas é menos interessante ou relevante do que a outra e é impossível dar conta de tudo ao mesmo tempo. Porque as faces são muitas é impossível observá-las ao mesmo tempo. 

IHU On-Line – Que paralelos podem ser estabelecidos entre os megaeventos planejados (Copa do Mundo; Fórum Social Mundial) com os megaeventos extraordinários, não programados (catástrofes climáticas, por exemplo)?

Arlei Damo – Esse tipo de comparação é útil, sobretudo, para pensar nas diferenças. Catástrofes climáticas são eventos indesejados – do contrário não seriam nomeadas como tal – e as guerras são controversas, dependendo do ponto de vista como cada qual é atingido. A Copa do Mundo e o Fórum Social Mundial, ao contrário, são desejados e planejados, o que não quer dizer que sejam consensuais. Cada conjunto desses megaeventos coloca questões distintas para serem observadas e discutidas. Catástrofes são eventos que promovem crises forçadas e em geral dramatizam as perdas, o sofrimento, a solidariedade, a reparação. Não se observa isso na maior parte dos eventos orquestrados, pois entre eles um dos objetivos destacados é a produção e experimentação de emoções positivas. Diz-se que os torcedores de futebol sofrem nos estádios torcendo pelos times que os representam e estou plenamente de acordo com isso. Mas esse sofrimento é, em boa medida, forjado, pois assim que o jogo acaba volta-se à rotina e, ao menos em tese, jogos de futebol não alteram significativamente a rotina de torcedores. Algo bem diferente é quando se está diante do sofrimento causado pelas perdas advindas com um tsumani, furação, enchente, estiagem ou algo do gênero.

IHU On-Line – Qual a importância para os megaeventos da sua repercussão midiática?

Arlei Damo – Sob certo ponto de vista, pode-se pensar que a mídia é essencial para reverberar e, como tal, expandir os eventos, fazendo-os repercutir para além do espaço, do tempo e do público envolvido in loco. Mas elas – no plural, pois são várias – não apenas reverberam, senão que os recriam e, em certos casos, alteram profundamente o sentido original. É impossível explicar os eventos cunhados como “primavera árabe” sem considerar o papel desempenhado pelas mídias – celulares e redes sociais, sobretudo. As imagens do jovem tunisiano, Mohamed Bouazizi, que ateou fogo no próprio corpo como forma de protesto, teve um efeito catalizador extraordinário, repercutindo tanto no ânimo de militantes diretamente implicados nos protestos que se seguiram em diversos países árabes quanto nos apoios que foram arrolados para além deles. Com as possibilidades advindas das redes sociais e a popularização desses recursos, não é de todo equivocado afirmar que certos megaeventos são produzidos e impactados apenas midiaticamente – os virais são exemplos disso. 

IHU On-Line – Que elementos possibilitam classificar a “Primavera Árabe ” como um exemplo lapidar de megaevento?

Arlei Damo – A quantidade de pessoas e de países envolvidos, assim como o encadeamento entre eles, a repercussão para além do “mundo árabe” e a intensidade das emoções envolvidas. É o tipo de evento que, muito provavelmente, entrará para os livros de história contemporânea e muito haverá de ser dito e discutido a respeito no presente e no futuro. Uma das características importantes dos megaeventos é que eles passam a ter uma existência que transcende o acontecimento em si, sendo reelaborados de muitas formas. Toma-se o holocausto como exemplo e observe-se a quantidade e diversidade de monumentos, livros, teses, filmes e tantas outras produções a seu respeito. Não é mega apenas porque foram mortas covardemente milhões de pessoas, mas também porque isso dificilmente será esquecido por séculos, quiçá milênios.

IHU On-Line – Como a antropologia compreende o engajamento de tantas pessoas que são implicadas pelos megaeventos?

Arlei Damo – Não há uma explicação padrão, mesmo porque a antropologia tenta evitar, a todo o custo, a essencialização. Não existe um único motivo para explicar a Primavera Árabe – aliás, isso ainda haverá de dar muitas discussões. Então, como misturar isso com Woodstock  ou com a peregrinação à Meca? Cada qual já é complexo em si mesmo, pois os engajamentos se dão por motivações que variam de um campo a outro e são consignados através de estratégias distintas na política, na música e na religião, por exemplo. Mas nada impede que um megaevento flerte com vários desses elementos simultaneamente, como no caso do efêmero Woodstock, que foi uma composição sui generis entre juventude, rock and roll, manifestação política, afrontamento à moral conservadora, misticismo, entre outras variáveis. 

IHU On-Line – Sob o viés antropológico, como é possível despertar o interesse e aglutinar milhares e até milhões de pessoas em volta de uma Copa do Mundo, por exemplo?

Arlei Damo – A Copa do Mundo Futebol – há também as copas de atletismo, rugby, ginástica... – tem um forte e decisivo apelo ao imaginário nacionalista. É uma competição de times recrutados por entidades futebolísticas, que nada tem a ver com o Estado, mas que são investidos como representantes da nação. O time organizado pela CBF se torna, como num passe de mágica, “o Brasil”. E a copa, porque é uma competição entre equipes dessa natureza, lembra uma guerra mimética entre nações. O segredo para o sucesso das copas do mundo de futebol masculino passa, necessariamente, pelo deslize de significados atinentes ao imaginário nacional para as arenas esportivas. É certo que as copas reúnem os mais performáticos entre os atletas de futebol, que os jogos são realizados em verdadeiros templos especialmente edificados para tal e que os preparativos são meticulosamente feitos. Mas retire-se do time da CBF e da AFA a representação de Brasil e Argentina e ver-se-á que, embora isso não comprometa a performance propriamente futebolística, o interesse do público declinará irremediavelmente. A Copa do Mundo de Futebol é entre as competições esportivas a que melhor explora o imaginário nacionalista, profundamente imbricado às emoções, mas outros esportes também fazem isso. Até a Fórmula 1, que é uma competição cuja marca é de propriedade privada, não se limita a ser uma disputa entre fabricantes de motores, pneus e outros implementos da indústria automobilística. O imaginário nacionalista altamente valorizado, como estratégia de mobilizar o interesse de um público mais amplo daquele aficionado por corridas de automóveis. Tanto é verdade que os pilotos são identificados pela nacionalidade e os respectivos hinos são executados por ocasião das vitórias. Do ponto de vista prático isso tudo é irrelevante, mas do ponto de vista simbólico faz toda a diferença, como ilustra a história de Airton Senna, que de exímio piloto tornou-se um herói nacional.

IHU On-Line – Qual a importância dos microeventos – promovidos pelos movimentos sociais, por exemplo – dentro do contexto dos megaeventos?

Arlei Damo – Eles são um contraponto essencial para a difusão de pontos de vista não hegemônicos. A copa é promovida pela Fifa em parceria com o governo brasileiro (federal e alguns estaduais e municipais). O sucesso do evento trará dividendos econômicos e políticos a essas agências e seus parceiros, como no caso das várias multinacionais que são patrocinadoras da Fifa ou mesmo das redes de TV para as quais as imagens foram comercializadas. Esses agentes – e aí poder-se-ia incluir ainda a mídia esportiva – têm uma visão triunfalista a respeito da copa. É compreensível que eles pensem nesse registro, pois, entre outras coisas, há que legitimar o uso de recursos públicos empregados em larga escala. Mas nem todas as pessoas gostam de futebol ou pensam que se deva empenhar mais de 30 bilhões de reais para realizá-la. E há ainda os que serão impactados pelas remoções promovidas pelas obras de mobilidade urbana ou para a construção dos estádios. Então nem tudo é uma maravilha e os movimentos sociais estão aí para dizer isso de forma articulada, pois no espectro mais amplo da população há muitas pessoas que têm restrições em relação ao discurso triunfalista. Os movimentos sociais têm feito intervenções pontuais e o resultado é positivo se levarmos em conta as adversidades enfrentadas. Todavia, há algo paradoxal, dado que os movimentos parecem mais articulados onde as intervenções são menos pronunciadas ou menos problemáticas – à exceção do Rio de Janeiro, onde há intensa mobilização e obras de grande impacto urbanístico. Em Brasília realizou-se, a meu juízo, a obra mais escorchante entre todas: a reforma do estádio Mané Garrincha, com capacidade para mais de 70 mil pessoas enquanto os times locais não levam mais do que algumas centenas de torcedores aos seus jogos. Gastou-se aproximadamente 1,5 bilhão de reais – quase o triplo do que foi gasto para construir a Arena do Grêmio – e não houve maiores contestações organizadas – para ser exato, houve algo para impedir que o nome de Garrincha fosse suprimido. Já em Porto Alegre, cujos estádios foram remodelados com recursos privados, como havia sido prometido na ocasião em que o Brasil foi escolhido como sede da Copa, tivemos várias manifestações dos movimentos sociais, que acompanharam de perto a remoção de famílias na Avenida Tronco, protestaram contra o corte de árvores para a ampliação da Avenida Beira-Rio e até enfrentaram as forças repressivas do Estado no episódio envolvendo o “Tatu da Copa”. 

IHU On-Line – Qual foi o primeiro megaevento da história da humanidade? 

Arlei Damo – Depende da perspectiva. Para quem segue o Velho Testamento, poder-se-ia pensar no Dilúvio ou mesmo na Eva mordendo a maçã proibida. Ou também se poderia pensar na descoberta do fogo, que não seja um mito – embora muitos mitos tratem desse evento capital para a humanidade – é impossível de recuperá-la historicamente. Enfim, nosso repertório de megaeventos é infindável e perguntar pelo primeiro é tão estranho quanto perguntar pelo último.

Leia mais...

>> Arlei Damo já concedeu outras entrevistas à IHU On-Line:

Um campo de guerra. Edição 184 da Revista IHU On-Line, de 12-06-2006, disponível em http://migre.me/Q8IJ

Futebol, um esporte agonístico. Edição 334 da IHU On-Line, de 21-06-2010, disponível em http://bit.ly/13KYr9y 

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