Edição 421 | 04 Junho 2013

Gigantesco retrocesso. Governo cede a ruralistas e “põe fim” à demarcação de terras indígenas

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Cesar Sanson

“A desautorização da Funai como órgão responsável pela política de demarcação de terras para os povos indígenas e, por extensão, povos tradicionais, como quilombolas, significa um retrocesso gigantesco nas políticas públicas indigenistas com consequências imprevisíveis. Décadas de esforços para dotar a legislação brasileira de instrumentos de defesa dos povos indígenas foram jogados por terra”. O comentário é de Cesar Sanson, docente na Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN, em artigo para a IHU On-Line. O texto é uma síntese da Conjuntura da Semana publicada no sítio do IHU em 20-05-2013 . A análise da Conjuntura da Semana é uma (re) leitura das Notícias do Dia publicadas diariamente no sítio do IHU. A análise é elaborada, em fina sintonia com o Instituto Humanitas Unisinos – IHU, pelos colegas do Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores – CEPAT, parceiro estratégico do IHU, com sede em Curitiba-PR, e por Cesar Sanson, professor na Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN, parceiro do IHU na elaboração das Notícias do Dia. Eis o artigo.

O dia 8 de maio de 2013 entrará para a história como uma data que registra um gigantesco retrocesso na política indigenista brasileira. Na audiência realizada pela Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural, na Câmara dos Deputados, a ministra da Casa Civil Gleisi Hoffmann, falando para uma plateia de ruralistas, anunciou drásticas mudanças na política de demarcação das terras indígenas.

A ministra – para satisfação dos fazendeiros e empresários do agrobusiness, homens brancos e acima dos 50 anos que a ouviam – disse que “a Funai é um órgão envolvido com os interesses indígenas, e que, portanto, ela não é imparcial, colocando sob suspeição a competência da instituição para desenvolver as atribuições que estão sob a sua responsabilidade”. Ato contínuo, após efusivos aplausos, anunciou que até o final deste semestre será definido um novo marco regulatório para os processos de demarcações das terras indígenas. Era tudo os que os ruralistas queriam ouvir.

Daqui para frente, a demarcação de terras indígenas, que já vinha patinando – em dois anos, Dilma homologou menos áreas em média do que seus antecessores no cargo –, ficará inviabilizada. O governo irá submeter à Embrapa os estudos em andamento pela Funai para demarcação de terras indígenas e os Ministérios da Agricultura, do Desenvolvimento Agrário e das Cidades devem passar a opinar sobre as demarcações. Dos três ministérios, dois estão nas mãos de ruralistas.

Com o anúncio da ministra terminava aí o desfecho de uma agressiva ofensiva iniciada pela bancada do agronegócio para inviabilizar a demarcação de terras indígenas. Não contentes, porém, a bancada ruralista conta ainda com a pá de cal, a PEC 215, para acabar de vez e enterrar qualquer tentativa que territórios sejam retomados pelos indígenas.

Mais triste ainda: dias depois, diante da indignação das organizações ligadas ao movimento indígena, a ministra Gleisi Hoffmann disse que “o governo não pode e não vai concordar com minorias com projetos ideológicos irreais”. A demarcação das terras indígenas, um direito constitucional, virou um “projeto ideológico irreal” e os povos indígenas tornaram-se “minorias” que devem se calar.

Ao qualificar a luta indígena como “projeto ideológico irreal”, o governo assumiu o discurso ruralista. Sobre isso diz Egydio Schwade , um dos fundadores do Cimi: “É humilhante ver uma ministra do nosso governo propor a revisão das demarcações de terras indígenas dos últimos 25 anos. Seria para ampliar esses territórios já livres do capitalismo? Infelizmente não! Será para anexá-los ao agronegócio, abri-los para a exploração capitalista da mineração, ou cobri-los com as águas de lagos hidrelétricos”.

A decisão do governo de desautorização da Funai como órgão responsável pela política de demarcação de terras para os povos indígenas e, por extensão, povos tradicionais, como quilombolas, significa na análise de assessores dos movimentos sociais ligados à luta indígena um estrago gigantesco nas políticas públicas indigenistas e com consequências imprevisíveis. Décadas de esforços para dotar a legislação brasileira de instrumentos de defesa dos povos indígenas foram jogados por terra.

Ganhou o “jogo pesado” dos homens do agrobusiness, como destaca Egon Heck , missionário do Cimi. A ofensiva ruralista vem de longe. Após a vitória no Código Florestal, a bancada ruralista escolheu como alvo o fim da demarcação das terras indígenas, que, em sua opinião, atrapalha o desenvolvimento do agronegócio brasileiro.

Segundo o secretário executivo do Conselho Indigenista Missionário – Cimi, Cleber Cesar Buzatto  a estratégia da bancada ruralista e da Confederação Nacional da Agricultura – CNA possui três vértices principais.

O primeiro, visando o executivo, pede a “suspensão” de todos os procedimentos administrativos de demarcação de terras indígenas que estejam em curso. Esse já foi atingido com a fala da ministra Gleisi Hoffmann. O segundo busca tornar lei a Portaria 303 da Advocacia Geral da União – AGU, a arena dessa luta é o Judiciário, especialmente o Supremo Tribunal Federal – STF. Já o terceiro é a aprovação da PEC 215, com a qual a CNA e os ruralistas finalmente teriam o poder nas próprias mãos para decidir acerca da não demarcação das terras indígenas no país.

Vencida a primeira batalha, os ruralistas devem avançar para os próximos pontos da estratégia. Caso avancem – o que é bastante possível considerando que o governo Dilma não oferece resistências à sanha voraz do agronegócio –, significará o fim definitivo da demarcação de terras indígenas. Restariam aos indígenas ainda sem territórios viverem em guetos e à custa de políticas sociais compensatórias. Esse é o projeto dos ruralistas: “A classe produtora é a favor do indígena e sabemos que eles precisam de amparo social e não de terras”, diz o diretor da Federação da Agricultura e Pecuária (Famasul) do Mato Grosso do Sul, Ruy Fachini .

O cerco dos ruralistas deu certo. Contou, porém, com a enorme condescendência do governo. O governo cede por duas razões: uma de ordem política e outra de ordem econômica.

Razões políticas: O governo Dilma Rousseff tornou-se refém da bancada ruralista. Necessita dela para avançar em seus projetos. A bancada ruralista chantageia, joga pesado, barganha. Sabe como enredar o governo porque joga de forma unitária, classista, não titubeia na defesa dos seus interesses. Há análises que interpretam que o maior partido no Brasil é o “partido dos ruralistas”. Há outra razão da subserviência do governo às demandas dos ruralistas. Na ótica do governo, afrontar os ruralistas é empurrá-los para o apoio a outras candidaturas. Nas articulações políticas visando 2014 não é bom tê-los como inimigos, avalia o Palácio do Planalto. Sabe-se que o apoio dos ruralistas foi importante para a vitória de Dilma Rousseff em estados da região centro-oeste. As articulações para reeleição de Dilma contam com o apoio senão de todos, ao menos de parcela significativa dos ruralistas.

Razões econômicas: A “afinidade” do governo com os ruralistas se dá também em função do seu modelo econômico desenvolvimentista. O modelo econômico brasileiro em curso é altamente dependente da exploração de matérias-primas, em especial de commodities agrícolas e minerais para exportação (soja, etanol, pecuária, minérios...). Logo, o Estado brasileiro se torna anti-indígena assim como o agronegócio, porque o seu modelo vai na contramão do modo de vida indígena.

A tensão no canteiro de obras da hidrelétrica de Belo Monte, envolvendo a Secretaria Geral da Presidência e os indígenas, particularmente os Munduruku, é emblemático da idiossincrasia entre o projeto do governo e o que querem os indígenas.

Na queda de braço, além da força política, o agronegócio acaba sendo favorecido pelo modelo econômico do governo: “O econômico é o único compromisso do atual governo. Nada pode impedir que os propalados progresso e desenvolvimento avancem sobre novas áreas, desconhecendo totalmente os direitos dos povos que há séculos ali vivem e convivem, se assim o governo definir como essenciais ao desenvolvimento”, afirma nota  da Comissão Pastoral da Terra – CPT. Entre os ruralistas e os indígenas, por razões políticas e econômicas o governo decidiu ficar com os primeiros. 

O retrocesso em torno da demarcação das terras indígenas, somado ao que aconteceu no “abril indígena” e no canteiro de obras de Belo Monte, revelou ainda outro aspecto. O irrisório apoio de organizações tradicionais da esquerda, ou pretensamente da esquerda. O PT e a CUT não se manifestaram. Ficaram silenciosos. O PCdoB já demonstrou que é anti-indígena, pois, sempre que a pauta da questão indígena está em jogo, o partido fica do lado das forças mais atrasadas. Dentre os partidos, mais à esquerda, como PSOL e PSTU, os protestos foram tímidos. Restou no firme e incansável apoio à luta indígena o Conselho Indigenista Missionário – Cimi e algumas organizações não governamentais. 

Fica a pergunta: Será que os povos indígenas não fazem parte – ou não cabem – do projeto de Nação da esquerda brasileira?

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