Edição 421 | 04 Junho 2013

O olhar antropológico sobre as construções simbólicas na gestão contemporânea

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Ricardo Machado

Doutoranda em antropologia sustenta que os desafios às racionalidades na administração estão ligadas aos processos de subjetivação “institucionalmente mediados e performados”

A contribuição da antropologia para pensar os processos de gestão está no mapeamento das ações dos gestores, de modo a compreender a racionalidades que estão relacionadas à apropriação das subjetividades dos empregados. “A captação de profissionais que se destaquem no mercado, que se identifiquem com suas ‘culturas’, ‘comprando’ a organização – e assim a colocam como ‘produto’ no ‘mix de marketing interno’ – e pagando nesta transação com o máximo do seu potencial de produção, criatividade e dedicação”, considera Patrícia Kunrath Silva, em entrevista por e-mail à IHU On-Line. Ela, entretanto, destaca que tais táticas buscam mascarar aspectos coercitivos das relações de trabalho. “Partindo da lógica de ‘pertença’ a uma organização, da necessidade de ‘vestir a camiseta’ e sentir-se responsável pelos resultados dela, o trabalhador passa agora ser tratado como um ‘colaborador’, o gestor como um ‘líder’ e a sociedade como ‘consumidora’, sobretudo da imagem organizacional”, complementa.

Patrícia Kunrath Silva é graduada em Publicidade e Propaganda com ênfase em marketing, com experiência profissional no Brasil e na Alemanha. Realizou mestrado em Antropologia, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, onde atualmente é doutoranda. Seu foco de trabalho são as construções simbólicas e subjetivas acerca do terceiro setor e possui um olhar crítico às noções de desenvolvimento propagadas midiaticamente.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Que contribuições um olhar antropológico pode dar à análise das racionalidades na gestão contemporânea?

Patrícia Kunrath Silva – Um olhar antropológico, partindo da premissa de trabalho de campo calcado no método etnográfico, observação participante e entrevistas qualitativas, nos permite realizar uma análise em profundidade das racionalidades vigentes na gestão contemporânea. A partir de um cruzamento da teoria antropológica com a produção de campos como o da Administração de Empresas, Comunicação Social e Recursos Humanos, é possível pensar as “culturas organizacionais”, “públicos internos” e estratégias de gestão e motivação de funcionários desde construtos simbólicos mediados por performances, rituais e processos identitários (sociais e profissionais). 

IHU On-Line – Em que medida as estratégias de marketing das organizações dão a ver tal racionalidade?

Patrícia Kunrath Silva – Contemplo um aparente paradoxo em certas estratégias de marketing, especialmente aquelas voltadas para o interior das organizações, ou o marketing interno (também conhecido como endomarketing). Por um lado, temos uma crescente flexibilização das leis trabalhistas, enfraquecimento do poder sindical e terceirização de serviços, enquanto que, por outro lado, parece se multiplicar o número de organizações que buscam atuar sobre um discurso humanista de seus negócios, em que as pessoas seriam a “alma” e o diferencial das corporações. Dessa forma, atentam para a captação de profissionais que se destaquem no mercado, que se identifiquem com suas “culturas”, “comprando” a organização – e assim a colocam como “produto” no “mix de marketing interno” – e pagando nesta transação com o máximo do seu potencial de produção, criatividade e dedicação.

IHU On-Line – Como podemos pensar as análises dos sistemas simbólicos relacionados à gestão contemporânea?

Patrícia Kunrath Silva – A antropologia social nos fornece uma série de instrumentos teóricos e metodológicos que permitem pensar criticamente os sistemas simbólicos no interior das instituições. A partir destas referências e, a meu ver, com especial atenção a contextos e cenários macroeconômicos e políticos, tais como o de um mercado que se pretende global, de livre concorrência, podemos analisar e entender como discursos e práticas são articulados para o aprimoramento e manutenção de lógicas de consumo e de produção. Estas articulações entram em ação pautando categorias identitárias (“o líder”, o “empreendedor”, o “proativo”) valoradas na lógica empresarial contemporânea e permeando as estratégias de gestão.

IHU On-Line – Em que medida tais estratégias de comunicação impactam na produção de sentido nos gestores, trabalhadores e na sociedade?

Patrícia Kunrath Silva – Tais estratégias parecem ocultar certos caracteres coercitivos nas relações de trabalho, outrora explicitamente manifestos. Partindo da lógica de “pertença” a uma organização, da necessidade de “vestir a camiseta” e sentir-se responsável pelos resultados dela, o trabalhador passa agora ser tratado como um “colaborador”, o gestor como um “líder” e a sociedade como “consumidora”, sobretudo da imagem organizacional. Observa-se uma crescente preocupação com a chamada “Responsabilidade Social Corporativa”, o florescimento de “negócios sociais”, um esfumaçamento das disposições de hierarquias e a operacionalização de lógicas de dádiva – “recompensa e reconhecimento” – nas mais diversas relações profissionais e mercadológicas.

IHU On-Line – Como podemos pensar o conceito de “desenvolvimento” das organizações, sobretudo aquele divulgado na imprensa?

Patrícia Kunrath Silva – Pensando a partir de perspectivas de antropólogos e sociólogos como Gustavo Lins Ribeiro  e Arturo Escobar , parece-me que a ideia de desenvolvimento disseminada atualmente ainda está diretamente ligada aos preceitos da modernidade, à lógica capitalista, desconsiderando muitas vezes as idiossincrasias locais e aplicando a diferentes grupos o mesmo padrão eurocentrado de desenvolvimento. Considero um tanto problemático crer que estas experiências tenham de fato um “impacto positivo na sociedade”. O conceito de “desenvolvimento” é manejado para justificar ações dentro de um campo de poder pungente do sistema atual, acabando muitas vezes por subjugar grupos inteiros. 

IHU On-Line – Como as novas tecnologias podem ajudar a pensar os processos atuais de gestão? Houve mudanças significativas?

Patrícia Kunrath Silva – As novas tecnologias têm sido acionadas não somente por departamentos das organizações e empresas, mas também – e, talvez, principalmente – por seus distintos públicos a fim de fiscalizar ações, propagar denúncias e qualificar produtos e serviços. Seja por meio de redes sociais, sites na internet, blogs, etc., gestores, profissionais e consumidores estão tendo que assimilar uma reestruturação espaço-temporal e uma polifonia tornada pública por meio destas tecnologias. As mudanças são significativas no sentido de que se criam novas esferas de mediação e troca de informações, já não tão passíveis – embora ainda sim – de censura, extremamente difusas e muitas vezes sem controle direto de gestores e diretorias.

IHU On-Line – O que as ações voltadas para o terceiro setor revelam sobre as racionalidades da gestão contemporânea?

Patrícia Kunrath Silva – De um lado, nos últimos anos vêm ganhando força programas de Responsabilidade Social Corporativa, o chamado Investimento Social Privado e os institutos e fundações de voluntariado e filantropia – embora as categorias acionadas variem bastante. Para as empresas, esta estratégia pode ser pensada no âmbito de gestão de imagem e correspondência a essa “fiscalização social”. Surgem consultorias, agências e departamentos específicos para tais fins. De outro lado, para trabalhadores e estudantes passam a ser cada vez mais valoradas experiências de voluntariado expressas em seus currículos. Muitas organizações do terceiro setor apropriam-se de estratégias de gestão institucionais, antes características das empresas do segundo setor, utilizando ferramentas e “discursos motivacionais” em um processo de venda e “consumo institucional” – como proponho chamar o processo de “identificação e compra” de uma instituição por parte de seu público interno, passando pela sua (re) apropriação e atribuição de significado pelos sujeitos.

IHU On-Line – Qual a importância de um olhar crítico dos gestores sobre o próprio trabalho e quais são os desafios que se impõem?

Patrícia Kunrath Silva – Embora pareça inerente a qualquer gestor o senso crítico, não podemos perder de vista que a gestão e as organizações servem a propósitos bastante específicos com uma lógica, em certa medida, ainda bastante distante da que embasa os estudos e produções no campo das Ciências Sociais. Os desafios que se impõem aparecem no sentido de buscar um aprofundamento analítico a fim de possibilitar leituras críticas que resultem em proposições práticas no que tange a uma conscientização de processos de subjetivação “institucionalmente mediados e performados”.

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