Edição 420 | 27 Mai 2013

Medicalização do social: a relação entre a medicina e a escola

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Graziela Wolfart

Maria Stephanou defende que a medicalização da saúde e da vida não está ligada apenas a solucionar problemas de saúde, como as doenças, mas também a oferecer respostas para nossa satisfação com o corpo e com a qualidade de vida

Ao refletir sobre os processos históricos da medicalização da saúde e da vida, a professora Maria Stephanou não acredita que a medicina tenha uma melhor resposta ou a mais acertada para as questões contemporâneas. “Mas dada a complexidade dos problemas que vivemos, ela tem sido frequentemente reconhecida como uma voz de autoridade entre outras”, explica, na entrevista que concedeu à IHU On-Line por telefone. E continua: “Não podemos perder de vista a dimensão histórica, porque isso não foi sempre assim. Talvez o xamanismo, o cristianismo ou outra religião possa ter tido um valor muito mais importante para responder aos dramas humanos em outros momentos. O importante é que não naturalizemos essa situação”. Segundo Maria, “para o campo da história da educação, medicalização é o processo crescente em que os saberes da medicina vão sendo utilizados ou atravessam as decisões, as práticas, as políticas e os processos educacionais e sociais. Isso se chama a medicalização do social”. 

Graduada em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, Maria Stephanou é mestre e doutora em Educação também pela UFRGS. Realizou seu pós-doutoramento na França (Paris) junto ao Service d’Histoire de l’Éducation do IFÉ – Institut Français de L’Éducation. É professora e coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRGS. Dentre outros, organizou Histórias e memórias da educação no Brasil. Séculos XVI-XVIII (Com Maria Helena Camara Bastos. 5. ed. Petrópolis: Vozes, 2011).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Pensando nos processos históricos da medicalização da saúde e da vida, o que mais mudou nos últimos anos?

Maria Stephanou – A importância da medicina, desde a Modernidade até nossos dias, é fundamental. O campo médico se consolidou como um campo de saber e, portanto, passou a exercer um poder fundamental na história ocidental. O conjunto de saberes produzido pela medicina, como estão relacionados ao que consideramos a vida, o cuidado e as alternativas da vida frente à morte, foi adquirindo paulatinamente um reconhecimento, uma legitimidade, que é central até os dias de hoje. Até porque atualmente, diferentemente do passado, a medicina como um campo de saber e de poder continua nos oferecendo respostas para o que constituímos a cada momento da nossa história como dramas humanos, por exemplo, o envelhecimento ou nosso sentimento subjetivo de autoestima, que está relacionado às transformações que podemos promover no nosso corpo. A medicina não nos protege apenas da doença, mas pode nos dar uma satisfação pessoal em relação ao que ela é capaz de fazer com o nosso corpo. Então, a medicalização da saúde e da vida não está ligada apenas a solucionar problemas de saúde, como as doenças, mas também a oferecer respostas para nossa satisfação com o corpo e com a qualidade de vida. Essa é uma explicação importante para entender a proeminência para várias questões que vivemos na contemporaneidade, em que uma autoridade ligada ao campo da medicina invariavelmente é chamada para tentar dar explicações. Vivemos situações de violência em que a mídia televisiva chamará alguém do campo da medicina, aqui pensado em sentido muito amplo, envolvendo a medicina mental, social, do corpo, clínica, psicologia, psiquiatria, todas essas derivações. Não é fácil que o cidadão comum constate que para vários problemas, seja de ordem educacional, da violência urbana ou do ascenso de algumas epidemias, são chamadas autoridades, especialistas de um saber que consideramos legítimo, que é o saber da medicina.

IHU On-Line – Essa necessidade de buscar explicações na medicina como um campo de saber para vários fenômenos do cotidiano é parte da tendência do ser humano que pende cada vez mais para a racionalização da existência?

Maria Stephanou – Não sei explicar. Ao mesmo tempo em que os saberes médicos que são indiscutivelmente, no nosso momento histórico, reconhecidos como saberes científicos, acompanhamos a ascensão de outros campos que não são considerados como ciência. Nunca as pessoas procuraram tanto os procedimentos alternativos, holísticos, esotéricos. A própria medicina reconhece aquilo que antes não reconhecia como científico, tendo muita importância para isso que chamamos de atenção integral ao indivíduo, seja do ponto de vista emocional, psíquico ou do ponto de vista biológico e físico. Saberes e conhecimentos como o da acupuntura ou da homeopatia, ou mesmo saberes populares que antes não eram valorizados, em muitos casos, são reconhecidos por profissionais que tiveram uma formação essencialmente científica e pragmática como necessários para encontrar respostas aos dramas humanos de seus pacientes ou de uma coletividade. Não creio que a medicina tenha uma melhor resposta, ou a mais acertada. Mas dada a complexidade dos problemas que vivemos, ela tem sido frequentemente reconhecida como uma voz de autoridade entre outras. Não podemos perder de vista a dimensão histórica, porque isso não foi sempre assim. Talvez o xamanismo, o cristianismo ou outra religião possa ter tido um valor muito mais importante para responder aos dramas humanos em outros momentos. O importante é que não naturalizemos essa situação. Nós nos deparamos com explicações, às vezes, de um psicólogo ou de um psiquiatra, ou de um historiador para um acontecimento na mídia e ficamos em dúvida. Muitas vezes o cidadão comum pensa: “mas essa é uma das explicações possíveis dentre outras. Ela não me basta”. 

IHU On-Line – Como a senhora analisa a proliferação de discursos médicos tematizando as relações da medicina com a educação? Como aparece aí a questão da medicalização?

Maria Stephanou – A escola é uma ambiência que traz uma diversidade incrível. As crianças em grande número se reúnem nas escolas e, portanto, todas as questões das nossas diferenças na vida, na sociedade, também aparecem lá. Desde o século XX, o campo da medicina formulou um conjunto de discursos em que se sustentava que o campo da pedagogia não possuía um conhecimento científico das crianças. Por exemplo, agrupava as crianças por idade em vez de fazê-lo segundo suas capacidades; não sabia interpretar determinados distúrbios porque os pedagogos não tinham uma formação científica. Com isso, foi crescendo a legitimidade dos discursos médicos para explicar os fenômenos do campo da escola, da educação. Os anos 1930 são muito ilustrativos para falar disso. Vários estudos mostram não apenas a questão da higienização, que vai progressivamente ser superada, mas a ideia da apropriação pela pedagogia dos testes para ver qual o índice de desenvolvimento intelectual de uma criança, para classificar as dificuldades de determinadas crianças que não se enquadravam no modelo de “aluno ideal” da escola. E a presença dos médicos foi muito forte nesse contexto. Eles não apenas examinavam as crianças e os professores, mas propunham currículos com os temas ligados à saúde, à higiene, à sexualidade, propunham disciplinas para serem desenvolvidas na escola e estavam presentes também nos cursos de formação de professores. Hoje talvez a presença da medicina se faça por outros caminhos, embora a escola sempre seja o lugar mais apropriado para encontrar crianças, fazer campanhas de conscientização, de difusão de determinadas práticas que se consideram mais saudáveis.

IHU On-Line – Qual a relação entre a medicina social preventiva e a educação? E como a medicina preventiva se contrapõe à lógica da medicalização da vida?

Maria Stephanou – Primeiramente, é preciso deixar claro que eu não entendo a medicalização como sinônimo de medicar alguém. Para o campo da história da educação, medicalização é o processo crescente em que os saberes da medicina vão sendo utilizados ou atravessam as decisões, as práticas, as políticas e os processos educacionais e sociais. Isso se chama a medicalização do social. Quando falamos em medicalização do campo da educação, estamos nos referindo ao processo que levou a que o campo da educação pensasse e produzisse várias ações, campo este informado e pautado pelos saberes da medicina. Não existe nenhum cientista social que se colocará contra a atuação da medicina no campo da prevenção, pois ela é fundamental. Se eu tenho um conjunto de conhecimentos produzido e que diz para a sociedade que, se ela não modificar seu modo de viver, seu estilo de vida, sua alimentação, ela aumentará sua exposição e vulnerabilidade à morte precoce, então a prevenção está aí. O problema é quando achamos que vamos solucionar todas as questões que enfrentamos como sociedades humanas apenas recorrendo a um determinado campo de saber ou a um conjunto de discursos, como muitas vezes se acredita que a medicina seja a nossa única salvação. 

IHU On-Line – Quais os riscos da chamada “medicalização do fracasso escolar”?

Maria Stephanou – Uma das dimensões da discussão sobre o fracasso escolar é tributar o insucesso ao indivíduo. Há uma grande carga de culpabilização do indivíduo com relação àquilo que chamamos de fracasso escolar. Esse fracasso pode ser o insucesso na escola, mas também podemos pensar na expulsão da escola, por não conseguir acompanhar e evadir da instituição. Essa também é uma forma de fracasso e não só do indivíduo, mas da escola também. O que leva uma criança a fracassar, do ponto de vista do insucesso escolar, da reprovação ou da evasão, é um conjunto muito variado de causas, de motivos. O problema da medicalização é atribuir o insucesso a uma deficiência do indivíduo. Hoje sabemos que o primeiro princípio é o de que todos são capazes de aprender. Minha preocupação é quando nós tributamos a culpa e constituímos o sujeito como alguém que tenha uma patologia e, portanto, deve ser medicalizado. E daí nos eximimos do nosso papel como educadores de formular estratégias adequadas a esse sujeito e delegamos a que um medicamento ou um tratamento médico irá solucionar o problema da criança. Pode haver situações assim, mas elas não podem ser tomadas como regra. Quando elas começam a aumentar, quando a solução passa a ser recorrentemente essa, temos que dar um grito de alerta. Não é possível que todas as crianças que fracassam na escola sejam doentes e precisem ser medicadas.

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