Edição 420 | 27 Mai 2013

O risco da biologização dos problemas sociais

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Graziela Wolfart

Para Sandra Caponi, a postura de “curar” com medicamentos os comportamentos considerados indesejáveis representa uma perda imensa de reflexão sobre nossos problemas sociais

Na opinião da professora Sandra Caponi, muitos dos fatos sociais que são medicalizados fazem parte do que podemos chamar de sofrimentos cotidianos, do que seria próprio da condição humana: “nós sofremos, passamos pela condição de tristeza e isso é inevitável, lamentavelmente. Passamos por diversos lutos na vida, que pode ser o luto pela morte de uma pessoa querida, ou o luto por não conseguir trabalho. Cada uma dessas situações apresenta o seguinte desafio ético para cada um de nós: como vamos lidar com nosso próprio sofrimento? Pode ser de maneira isolada, ou criando laços sociais e redes de ajuda, ou consumindo medicamentos. Para a nossa modernidade, a opção privilegiada tem sido consumir medicamentos. Parece que, com eles, podemos sair de todas as situações de tristeza, dificuldades, ansiedade, estresse ou até dificuldades para concentração no trabalho. Às vezes, o medicamento é a última coisa que ajuda em um processo de construção da subjetividade, se estivermos falando de construção ética de si”. Na entrevista a seguir, concedida por telefone à IHU On-Line, Sandra percebe que a indústria farmacêutica entra nesse processo quando promete que vai resolver todos esses problemas com uma “bala mágica”, que seria o medicamento. “Assim, a pessoa não vai mais sofrer, nem se estressar, terá uma ótima concentração e não precisará mais refletir sobre o presente, nem mudar suas condições de vida. Apenas ingerir medicamentos”. 

Formada em Filosofia na Universidad Nacional de Rosario (Argentina), Sandra Caponi é mestre e doutora em Lógica e Filosofia da Ciência pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. Desde 1993 é professora no Departamento de Sociologia e Ciências Politicas da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Suas áreas de pesquisa são a Filosofia e a História da Medicina, tendo desenvolvido pesquisas, neste último caso, sobre a história da Clínica, da Psiquiatria, do Higienismo, da Microbiologia e da Medicina Tropical. Dentre seus livros publicados citamos Loucos e degenerados: uma genealogia da psiquiatria ampliada (Rio de Janeiro: Fiocruz, 2012).

Confira a entrevista

IHU On-Line – Quais os principais desafios envolvidos na medicalização da saúde mental em nossos dias?

Sandra Caponi – Eu apontaria como um dos desafios a tentativa de começar a pensar na medicalização da saúde mental como um tema de saúde pública. O uso excessivo de medicamentos para problemas de saúde mental, que às vezes nem se manifestam como um problema, mas aparecem muitas vezes como um risco ou como um elemento preventivo para problemas futuros, pode vir a gerar problemas sérios de saúde pública. Um exemplo são os ansiolíticos, como o uso abusivo de um medicamento que se chama Rivotril . Existem grupos de ajuda a usuários de Rivotril, assim como existem grupos de ajuda aos alcoólatras. Já se comprovou, em vários casos, que existe o uso continuado, às vezes desnecessário, de um medicamento que provoca bastantes efeitos colaterais e que cria muita dependência, mas estão indicados para casos de ansiedade. Acontece que muitas situações de estresse, de pequenas ansiedades do nosso dia a dia, poderiam levar a indicar uma medicação. Mas acredito que, desse modo, se estaria contribuindo para a criação de uma dependência do medicamento de maneira desnecessária. 

IHU On-Line – Como podemos relacionar ética, saúde pública e indústria farmacêutica quando o assunto é a medicalização da vida?

Sandra Caponi – Muitos desses fatos que são medicalizados fazem parte do que podemos chamar de sofrimentos cotidianos, do que seria próprio da condição humana: nós sofremos, passamos pela condição de tristeza e isso é inevitável, lamentavelmente. Passamos por diversos lutos na vida, que pode ser o luto pela morte de uma pessoa querida, ou o luto por não conseguir trabalho. Cada uma dessas situações apresenta o seguinte desafio ético para cada um de nós: como vamos lidar com nosso próprio sofrimento? Pode ser de maneira isolada, ou criando laços sociais e redes de ajuda, ou consumindo medicamentos. Para a nossa modernidade, a opção privilegiada tem sido consumir medicamentos. Parece que, com eles, podemos sair de todas as situações de tristeza, dificuldades, ansiedade, estresse ou até dificuldades para concentração no trabalho. Às vezes, o medicamento é a última coisa que ajuda em um processo de construção da subjetividade, se estivermos falando de construção ética de si. A aceitação do luto é algo que leva um tempo e, muitas vezes, esse tempo nós mesmos é que temos que estipular. Se isso se mede por um diagnóstico é muito provável que a pessoa seja medicada por um problema que poderia ser resolvido por si, com paciência, com tempo, com calma, criando estratégias éticas de cuidado. 

Eu posso citar um exemplo pessoal, simples, que estou vivenciando, que é o luto. Minha mãe faleceu há 10 dias e muitas pessoas amigas me sugerem para tomar algum remédio que ajude a aplacar minha tristeza. Eu digo que estou triste sim, afinal era minha mãe. O que vou fazer? Tenho que elaborar esse luto da melhor forma possível, porque ingerindo medicamentos não vou fazer com que minha mãe volte. Esse é um dos tantos problemas que enfrentamos no dia a dia. A indústria farmacêutica entra nesse processo quando ela promete que vai resolver todos esses problemas com uma “bala mágica”, que seria o medicamento. Assim, a pessoa não vai mais sofrer, nem se estressar, terá uma ótima concentração e não precisará mais refletir sobre o presente, nem mudar suas condições de vida. Apenas ingerir medicamentos. 

IHU On-Line – A partir de uma perspectiva histórica, o que pode ser dito sobre a medicalização dos sofrimentos e das anomalias comportamentais humanas?

Sandra Caponi – Publiquei um livro que se chama Loucos e degenerados, no qual analiso o tema da medicalização do sofrimento desde o início da psiquiatria. Aqui, podemos pensar no tema retomando a história mais curta, mais recente, que é a história do DSM, que é o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais. Hoje estamos utilizando o DSM IV-R (Revisado), onde estão todas as categorias, as classificações de diagnósticos de patologias mentais. Esse manual é utilizado por psiquiatras, médicos generalistas e é a partir dele que se fazem os diagnósticos das diversas patologias mentais. O DSM tem uma história que se inicia em 1952. E a história mais recente dos diagnósticos nos mostra que, durante os anos do pós-guerra até a década de 1950, os sofrimentos psíquicos eram pensados em termos éticos, subjetivos, pessoais, como algo que se tratava com o psicanalista e que se inseria em uma história de vida. O sofrimento psíquico era algo – como pensam os psicanalistas até hoje – sobre o qual se podia falar, que tinha significação na história do sujeito. Pouco a pouco o DSM foi adotando uma característica bem psiquiátrica. A partir de 1980, com o DSM III, aparecem análises que descartam totalmente tudo o que seria a escuta psicanalítica ou uma escuta mais atenta do sofrimento do indivíduo, para passar a ser um manual de diagnóstico de sintomas. O que interessa não é tanto como se insere esse sofrimento na vida do individuo, mas quais são os sintomas que aparecem. O que aconteceu nesse processo é que a história do sujeito desapareceu. Não importa tanto o relato de como aconteceram as situações e nem por que elas estão produzindo o sofrimento, mas sim os sintomas. Para daí tratar com remédio. Esse diagnóstico que sairá então terá uma terapêutica quase sempre 100% farmacológica. 

IHU On-Line – Como os estudos sobre biopolítica da população de Foucault e Agamben e as reflexões de Canguilhem sobre as fronteiras difusas da normalidade podem contribuir para os debates contemporâneos a cerca da medicalização da saúde e da vida?

Sandra Caponi – Foucault escreveu sobre sistemas da biopolítica no livro “História da Sexualidade I” , mas também em cursos que ele ministrou. A obra, mesmo que tenha sido escrita na década de 1970, é absolutamente atual e pertinente para pensar o que está acontecendo hoje. Todos esses processos de biologização de fatos e problemas sociais a partir do conceito de biopolítica em Foucault podem ser retomados para analisar questões de explicações genéticas atuais da criminalidade ou da sexualidade. Muitos casos que temos trabalhado, por exemplo, de assédio moral no trabalho ou de violência familiar e doméstica, que muitas vezes são problemas sociais reais, acabam sendo tratados como problemas neuroquímicos. Tanto Foucault quanto as reflexões de Agamben são atuais e importantes e trazem uma grade analítica muito rica para o presente. E é praticamente impossível deixar de situar Foucault no mesmo espaço de discurso que Canguilhem abre com a discussão sobre normalidade e patologia, os limites difusos entre uma e outra e como se estabelecem o normal e o patológico. É nessa matriz que Foucault vai trabalhar e criar todas suas reflexões sobre o nascimento da clínica, do hospital, da psiquiatria e do poder psiquiátrico. 

IHU On-Line – Quais as principais dificuldades implícitas na multiplicação e proliferação de novos diagnósticos psiquiátricos? O que representa, do ponto de vista social e cultural, a postura de “curar” com medicamentos os comportamentos considerados indesejáveis? 

Sandra Caponi – O que representa é uma perda imensa de reflexão sobre nossos problemas sociais. A primeira coisa que acontece é que os laços sociais clássicos, que tendem a reivindicar direitos, vão desaparecendo conforme surgem esses medicamentos, essas “balas mágicas” que prometem solução para todos os problemas. Como no caso do déficit de atenção com hiperatividade, que muitas vezes tem a ver com uma estrutura educativa que está falida, que não é pensada, com aulas muito numerosas, falta de preparação dos professores, enfim, e que acabam sendo pensados como se fossem uma falha de neurotransmissor da criança. Esse é um tipo de problema que exigiria intervenções sociais claras, mudar as relações sociais dentro da sala de aula, mudar as relações laborais, os vínculos de trabalho. A lista de diagnósticos de problemas mentais vem aumentando desde 1980 de maneira alarmante. A cada novo DSM é cada vez maior o número de patologias, de diagnósticos que aparecem. São muitas vezes problemas sociais pensados nessa perspectiva biológica. 

IHU On-Line – O que caracteriza o discurso da mídia no processo de medicalização da vida? 

Sandra Caponi – Há uma espécie de hiperinformação, que está vinculada a todos estes temas, que de alguma maneira muitas vezes tem a ver com a publicidade da própria indústria farmacêutica. É muito simples assistir na TV ou no jornal e nas revistas uma quantidade de notas em que se fala sobre uma nova patologia, sobre um novo medicamento, sobre formas de prevenção – e, para isso, utilizar medicamentos –, sobre a importância de tratar precocemente alguma indicação de uma futura patologia que virá. Todos esses são alarmes que passam pela mídia e fazem com que se banalizem e entrem no diálogo do dia a dia essas discussões que são técnicas e complexas. O que quero deixar claro é que, apesar de todas as críticas que fiz até então, precisamos ter em conta que existem pessoas que têm, de fato, depressão e outros distúrbios mentais. É claro que existem pessoas que sofrem com essas doenças e que precisam de medicamentos. Só que se banalizaram os diagnósticos, porque aparecem na mídia como se fosse um creme para as rugas, como se todos tivessem que consumir esses medicamentos. O que não quero de forma alguma é negar que exista sofrimento ou que existam pessoas que padecem dessas patologias. Simplesmente meu trabalho é analisar como essas classificações foram construídas, se realmente são epistemologicamente sólidas as bases que possibilitam as diferentes classificações e qual é o papel que a indústria farmacêutica opera nelas. O que existe é um abuso, um excesso de diagnósticos para problemas que não constituem patologias.

IHU On-Line – Pensando na mídia e na exposição de uma celebridade como Angelina Jolie, qual sua opinião sobre a decisão dela, de retirar as mamas apenas tendo em conta uma projeção de uma possibilidade de, no futuro, desenvolver um câncer de mama? 

Sandra Caponi – Considerando que ela não tenha nenhum nódulo e tomou essa decisão apenas por uma análise genética, vejo isso como um ato completamente delirante. Não existe uma análise genética que pode dizer o que vai acontecer com cada um de nós no futuro. Não é possível saber isso com exatidão, porque existe toda uma interação entre nossos dados genéticos com o meio ambiente, o que fazemos, nossa vida, que faz com que o que aparece como uma pré-disposição se manifeste ou não. Isso é uma loucura, sinceramente. É algo muito radical. 

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