Edição 419 | 20 Mai 2013

Caminhos para ver o que nos olha

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Ricardo Machado

Cybeli Moraes explica a necessidade do processo de desconstrução do pesquisador na perspectiva das audiovisualidades na tentativa de entender que as imagens também nos observam.
Cybeli: "Acho que não dá para perceber uma imagem sem encará-la como uma entre-imagem"

Desnaturalizar a mecânica do ver é uma das maneiras de pensar o olhar. Em uma sociedade imersa em um contexto abundantemente imagético, é preciso, conforme aponta Cybeli Moraes, que concedeu entrevista pessoalmente à IHU On-Line, perceber as sutilezas entre ver e olhar. “Quando falamos ‘ver’ estamos nos reportando mais ao mecanismo ótico, que por si só engloba o olhar, mas eu prefiro ‘olhar’ para determinar esta importância. Derrida fala em discretização do audiovisual, ou seja, com o tempo o audiovisual foi se tornando discreto a nossos olhos. Esse tornar-se discreto vem ocorrendo desde que o homem desenhou nas paredes das cavernas”, destaca Cybeli. 

Para ela, esse processo explica por que um grande volume de imagens são visualizadas e “consumidas” sem um processo reflexivo, o que, às vezes, representa uma aceitação involuntária de preconceitos. “Cada vez mais naturalizamos processos que não são naturais e agimos como se eles já estivessem no mundo. Ao fim e ao cabo, a mania de naturalizar e reduzir o olhar ao ver, possibilita de maneira geral as inverdades científicas, os preconceitos e os fundamentalismos das mais diversas ordens”, complementa.

Cybeli Moraes, além de coordenadora do curso de Comunicação Digital, leciona nos curso de Jornalismo e Publicidade da Unisinos, universidade onde se graduou e pós-graduou. Tem mestrado e doutorado em Ciências da Comunicação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos (2007 e 2012). Atuou como assessora de imprensa do Museu de Arte do Rio Grande do Sul, onde editou a revista do MARGS (Porto Alegre). 

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Que caminhos podemos trilhar para ver o que nos olha?

Cybeli Moraes – Acredito que podemos tentar perceber as imagens por meio de três movimentos. O primeiro deles está relacionado à importância de nos colocarmos no meio da “floresta”. Nesse sentido, por exemplo, o corpus da minha pesquisa de doutorado tinha 80 audiovisuais de cinema, vídeo-arte, publicidade, trechos de telejornais, vídeo-clipe, etc. Então circular e se envolver com esta floresta, não fazendo uma distinção apressada dos espécimes ou das relações entre eles, é um primeiro passo. Um segundo movimento é a costura metodológica. É preciso atuar com esses fenômenos imagéticos fazendo tessituras metodológicas, seja usando processos e procedimentos mais estabelecidos, seja se apropriando de técnicas para lidar com essa “flora” ou “fauna”. Nesse sentido, “as trilhas” que você menciona na pergunta precisam ser as mais variadas possíveis, ou devem ser inventadas para dar conta do que pretendemos observar. O terceiro movimento está relacionado ao uso dos dois primeiros para chegar a um terceiro patamar, que é conceituar, tentar nomear, o mais aproximadamente possível, o que estamos intuindo, na perspectiva bergsoniana   do termo. Isso exige que a pessoa se desconstrua  como pesquisadora, pois para trabalhar com os fenômenos audiovisuais – ou melhor, na perspectiva das audiovisualidades  – é preciso que nos retiremos do local habituado de observador para entender que as imagens também nos observam. Daí talvez sim, possamos compreender com mais propriedade o que elas fazem e podem ser. O pesquisador necessita ser ativo em relação aos fenômenos que pesquisa, por isso é preciso sempre, no caso das imagens, usá-las: se deixar afetar por elas, usar e ser usado.

IHU On-Line – Qual seria o papel das audiovisualidades para entender as imagens?

Cybeli Moraes – Quando defendi minha tese, em abril de 2012, fui questionada por um dos membros da banca sobre onde eu situaria minha pesquisa – se nos marcos teóricos do cinema, da fotografia, ou da vídeo-arte. Respondi que situaria nas audiovisualidades, e embora na época a resposta tenha sido “diplomática” frente a referenciais teóricos já consagrados, ainda assim hoje eu manteria esta resposta. Fica cada vez mais claro para mim que a importância de uma perspectiva como a das audiovisualidades está na possibilidade de trabalharmos diretamente com as entre-imagens, e nas passagens destas. É uma perspectiva que desde já me obriga a ser um pesquisador da e na entre-imagem, pois passamos de um lugar para o outro, de um olhar para o outro (e não só com os olhos, mas usando todos os nossos sentidos, incluindo a audição, que às vezes fica um pouco esquecida diante do visual). Então eu não sou somente olho e essa maneira de perceber e captar o mundo, entre sentidos, entre sinais, entre estados do corpo, exigem que eu seja um pesquisador “entre”, e encare os fenômenos também desta maneira.

IHU On-Line – Qual a importância das entre-imagens para entender as imagens?

Cybeli Moraes – Acho que não dá para perceber uma imagem sem encará-la como uma entre-imagem. Para o avanço dos estudos de comunicação sobre as imagens, não podemos mais discuti-las sob o ponto de vista dos suportes: é redutor dizer “isto é vídeo, isto é foto, isto é cinema”. Esse “isto é” não tem mais lugar. E, na verdade, ele nunca teve lugar: se formos pensar em todas as descobertas tecnomidiáticas, não há “imagens puras”. A fotografia nunca foi eminentemente fotografia, ela sempre foi pintura, foi escultura, gravura, tudo ao mesmo tempo e em devir. Essa pretensão de tentarmos dizer o que é uma imagem não funciona, por isso a atual crise dos paradigmas é a resposta. Além disso, se olho entre-imagens, não atento para seu conteúdo ou seu “gênero”, é a indiscernibilidade do seu modo de agir que passa a me interessar. São raros os autores da comunicação que discutem as naturezas da imagem, mas há vários que confundem estas com os graus de uma mesma potência. 

IHU On-Line – De onde partiu o interesse pelas imagens?

Cybeli Moraes – Para mim, da fotografia. Primeiro, a partir das minhas experiências na faculdade, no mercado de trabalho e no mestrado, estudando o fotojornalismo e trabalhando com arte. Começou a me chamar atenção o fato da câmera de vídeo estar registrando a “foto-grafia”. Aí, veio a velha pergunta: “afinal de contas, o que vemos é foto, vídeo ou o quê?”. Entendi então que o que me interessava era discutir a fotografia em lugares onde ela aparentemente não estava, como nas montagens de um telejornal, de uma cena em movimento, de uma apresentação em Power Point, etc. Tentava encontrar o “fotográfico” nestas não fotografias. Foi nesta cartografia pela floresta das imagens, usando o Google Vídeos como portal de entrada, que percebi, naquilo que chamamos de câmera lenta, um tensionamento semelhante ao promovido pela fotografia: uma tendência de parar sem parar, um constante corte que não corta a continuidade do fluxo. A partir da observação destes materiais entendi que interessava dissecar as molduras  que estavam ali ofertadas, e que nos fazem sentir e promover sentidos sobre este “parar”. Daí vem o nome da tese, A pausa audiovisual.

IHU On-Line – O que significa esta pausa em uma sociedade marcadamente imagética e com fluxos que dão impressão de serem cada vez mais intensos?

Cybeli Moraes – Que encontramos uma forma de refletir sobre nossa finitude na produção de audiovisuais, e que essa reflexão é cada vez mais e mais presente. Para fazer o levantamento para a minha tese fui buscar na web os termos câmera lenta, slow motion, ralenti e outros correlatos. Localizei mais de 15 milhões de referências audiovisuais, e estão contabilizadas aí somente aquelas tagueadas com as palavras que pesquisei. É uma enorme e paradoxal demanda, porque em um mundo cada vez mais rápido há o interesse na produção e na visualização de imagens que estão “parando”. Mas a câmera lenta – que prefiro chamar usando a expressão francesa ralenti –, a fotografia (para mim, inscrição fotográfica) e o plano sequência, que chamei fragmento longo, na verdade são todas molduras que precisam de ou acabam por produzir muito mais imagens, e imagens que passam em muito mais quadros que, por sua vez, asseguram a ideia de movimento, ou mesmo de parada deste “movimento”. Bergson, quando desenvolve seu método intuitivo, aborda a questão do misto, aquele que comporta um virtual e um atual. O atual é aquilo que se materializa (o ralenti, a inscrição fotográfica e o fragmento longo). Já o virtual está em potência, em devir – que no caso da pausa audiovisual seria a espera, aquela que expecta e/ou antecipa. 

Molduras

Algumas destas esperas – e aí já não estamos mais falando de molduras, mas de emolduramentos conforme fala Kilpp , que atuam no corpo do observador – são inventivas, pois nos distraem, como podemos ver em filmes como Árvore da Vida (2011), de Terrence Malick, ou Sleep (1963) de Andy Warhol, entre vários exemplos. Já outras esperas simplesmente nos dispersam, como na maioria dos usos de imagens sobrepostas. As esperas revelam então uma tensão que é própria da vida: nascemos e esperamos a cada momento que a vida aconteça para nós, e que isso ocorra antes da morte – e esta, por si só, é “o” acontecimento principal. Alguns acontecimentos eu consigo prever, antecipar, eles geram expectativas de diferentes ordens, enquanto outros simplesmente acontecem e se tornam marcos – um dos usos metafóricos da palavra pausa. Por isso a pausa audiovisual é um fenômeno que se conecta com aquilo que vivemos, pois se “a vida vive-se” como comenta Bergson, o audiovisual também. De certa forma, a fauna/flora audiovisual que inventamos dá a ver esses sentidos e mecanismos que percebemos na própria vida.

IHU On-Line – Qual a importância das pessoas aprenderem a ver as imagens?

Cybeli Moraes – Quando falamos “ver”, estamos nos reportando mais ao mecanismo ótico, que por si só engloba o olhar, mas eu prefiro “olhar” para determinar esta importância que você menciona. Derrida fala em discretização do audiovisual, ou seja, com o tempo o audiovisual foi se tornando discreto a nossos olhos. Esse tornar-se discreto vem ocorrendo desde que o homem desenhou nas paredes das cavernas. Cada vez mais naturalizamos processos que não são naturais e agimos como se eles já estivessem no mundo. Ao fim e ao cabo, a mania de naturalizar e reduzir o olhar ao ver possibilita, de maneira geral, as inverdades científicas, os preconceitos e os fundamentalismos das mais diversas ordens – se pensarmos como Flusser quando ele usa a câmera fotográfica como metáfora do aparelho que organiza toda a sociedade. Nesse sentido, os fenômenos audiovisuais se tornam metáforas que nos auxiliam a reconhecer funcionamentos antropológicos e sociais. À medida que conseguimos “des-discretizar” esses fenômenos, talvez consigamos também perceber como produzimos, pensamos e olhamos para o mundo, pois nas coisas que inventamos damos a ver todas as nossas aspirações culturais e humanas. Mas para “des-discretizar” não basta só “aprender a olhar”, mas também se deixar olhar, e daí aprender com todos estes olhares: os meus, os dos outros, os das imagens, e os das imagens sobre as imagens.

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