Edição 418 | 13 Mai 2013

Guarani-Kaiowá: A indizível violência contra um povo

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Graziela Wolfart | Tradução de Sandra Dall Onder

Desaldeamento, intimidações, destruição de plantações, queima de barracos, humilhação, fome, doenças, perseguições, sequestros e assassinatos fazem parte da vida cotidiana da comunidade indígena Guarani-Kaiowá na região Centro-Oeste do Brasil. O silencioso, duradouro e doloroso martírio do povo Guarani-Kaiowá é o tema da Análise de Conjuntura da Semana publicada no sítio do Instituto Humanitas Unisinos - IHU - em 06-11-2012 e sintetizada no artigo de Cesar Sanson, doutor em sociologia pela Universidade Federal do Paraná – UFPR e docente na Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN. Eis o artigo.


Há poucas semanas a carta da comunidade  de 170 índios Guarani-Kaiowá (50 homens, 50 mulheres e 70 crianças) que vivem confinados em uma pequena área em Iguatemi/MS ecoou como um grito de desespero que ganhou as redes sociais e repercutiu internacionalmente. A carta foi interpretada como ameaça de suicídio coletivo e criou comoção.

Na carta diante da iminente ameaça de despejo da área em que se encontra, a comunidade de Pyelito Kue escreveu: “Sabemos que seremos expulsas daqui da margem do rio pela justiça, porém não vamos sair da margem do rio. Como um povo nativo/indígena histórico, decidimos meramente em ser morto coletivamente aqui (...) Solicitamos para decretar a nossa morte coletiva e para enterrar nós todos aqui. Pedimos, de uma vez por todas, para decretar a nossa dizimação/extinção total, além de enviar vários tratores para cavar um grande buraco para  jogar e enterrar os nossos corpos”.
A carta dessa comunidade de indígenas Guarani-Kaiowá configura-se como mais um capítulo da crônica de violência étnica no Mato Grosso do Sul que vem vitimando indígenas. Há um ano, a violenta, dolorosa e desumana morte do cacique Nísio Gomes dava conta dessa infindável história de atrocidades, assim como o assassinato dos professores guarani Rolindo Véra e Genivaldo Véra.
A carta-manifesto denúncia da comunidade Pyelito Kue escancarou a verdadeira guerra contra os indígenas na capital do agronegócio – o Mato Grosso do Sul. No modelo plantation, da soja, da cana de açúcar e das pastagens não cabem os Guarani-Kaiowá. Como afirma a pesquisadora Iara Tatiana Bonin , os indígenas são vistos como “ervas daninhas que devem ser erradicadas dos ‘jardins do latifúndio’ para deixaram o caminho livre para os planos dos ‘jardineiros do progresso’”.

Faz tempo que os indígenas afirmam “quase não temos mais chance de sobreviver neste Brasil". Como não lembrar a inquietante afirmação do kaiowá Guarani anastácio  "aqui o boi vale mais do que uma criança guarani"? A situação dos índios no Mato Grosso do Sul já foi definida pela vice-procuradora-geral da República, Deborah Duprat  como "a maior tragédia indígena do mundo".
No centro do conflito está a posse da terra. Na visão etnocentrista do capital o índio é um estorvo. Com diz Eduardo Viveiros de Castro, “índio não produz, vive”, logo quem não produz não tem lugar no sistema produtivista consumista, deve ser afastado, confinado e até mesmo eliminado.

O indigenista Antonio Brand (falecido recentemente), em entrevista à Revista IHU On-Line – Os Guarani. Palavra e Caminho  alertava para o fato de que “o assédio às terras ocupadas por povos indígenas sempre foi enorme. Terras remanescentes e ricas foram alvo de mineradoras, depois de fazendeiros para a expansão do agronegócio – soja, arroz, cana-de-açúcar, eucalipto – e da pecuária. Por fim, também de obras de infra-estrutura – como estradas ou hidrovias – e de produção de etanol, com enormes impactos ambientais e sociais. Não raro essa dinâmica exploratória contam com recursos públicos provenientes do Plano de Aceleração do Crescimento (PAC)".

“De um lado, se tem um dos estados de economia mais florescentes do País, baseado na monocultura de milho, na criação de gado e, agora, na monocultura da cana-de-açúcar entrando com muita força. E, por outro lado, muitas populações expulsas do campo, dentre elas principalmente as indígenas. Essas são as mais afetadas, pelo fato de suas terras se situarem, em geral, nas áreas mais férteis que são as de mata Atlântica, no extremo sul do estado, as terras Guarani-Kaiowá”, destaca o indigenista Egon Heck . A arbitrariedade é tamanha, que segundo Heck, “o gado dispõem de 3 a 5 hectares de terra por cabeça, enquanto os índios Guarani-Kaiowá não chegam a ocupar um hectare por índio”.

O território para os Guarani reveste-se de sentidos e significados muito diferentes daqueles que motivam a ambição dos fazendeiros com a expansão do agronegócio no Mato Grosso do Sul, projeto que segue o mesmo ritmo de outras regiões do Brasil. Em geral, um guarani se refere ao seu território como “tekoha”. O significado desta expressão para essa etnia, de acordo com o pesquisador Bartomeu Melià  está intrinsecamente presente na forma como se veem no mundo. A palavra “teko” significa o “modo de ser, o sistema, a cultura, a lei e os costumes”, assim, “tekoha” “é o lugar e o meio em que se dão as condições de possibilidade do modo de ser guarani”. Desta forma, há uma inseparabilidade entre a vida e o território que proporciona um sentido e direção, ou seja, não é possível para um guarani se imaginar fora da relação com um território.


Guarani-Kaiowá enfrentam o agronegócio e o Estado

Contra os Guarani-Kaiowá não está apenas o agronegócio, está também a morosidade do Estado brasileiro e, sobretudo, do estado do Mato Grosso do Sul. É conhecida a postura anti-indígena do governador do Mato Grosso do Sul André Puccineli (PMDB) que já afirmou que o "MS não é terra de índio" e que deseja integrar os índios a partir do conceito de produção, para dar a eles a verdadeira independência. Ao mesmo tempo em que há um sentimento de insegurança, desconfiança e temor com a forma como se comporta o estado local, os indígenas sentem-se também desprotegidos pelo governo federal.
Segundo a Constituição de 1988, o processo de demarcação das terras indígenas no país deveria ter sido terminado em 1993. Entretanto, as pressões políticas dos fazendeiros retardaram o processo no Mato Grosso do Sul. No final de 2007, a Funai assinou acordo com o Ministério Público Federal para apressar a demarcação e, em função disso, seis grupos de trabalho para identificação e delimitação de terras indígenas foram lançados em julho de 2008. O fato gerou forte reação dos fazendeiros do Estado e, desde 2009, uma série de episódios violentos passaram a acontecer na região.

"Os conflitos se devem, sem dúvida nenhuma, à lentidão inconcebível na demarcação das terras indígenas", afirma o procurador da República em Ponta Porã, Thiago dos Santos Luz . A ausência da demarcação tem outras consequências. As áreas onde os índios estão concentrados viraram locais de confinamento cuja expectativa de vida é semelhante à dos países mais pobres do mundo, 45 anos.
De acordo com o antropólogo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Tonico Benites , cerca de 35 mil kaiowás-guarani vivem em 11 reservas com quase 33 mil hectares e outros dez mil sobrevivem em acampamentos na beira de estradas ou outros locais em litígio judicial. Para efeito de comparação, a reserva Raposa Serra do Sol, demarcada em 2009, abriga 20 mil índios em 1,7 milhão de hectares. "Essas reservas [MS] se transformaram em favelas, guetos", afirma o antropólogo Spency Pimentel , da Universidade de São Paulo - Usp. A quantidade de terras reivindicadas pelos indígenas se aproxima de um milhão de hectares, cerca de 2,8% do território de Mato Grosso do Sul. Mas o pleito enfrenta resistência do governador, André Puccinelli (PMDB), e de fazendeiros da região.

O discurso dominante propaga a ideia de que demarcações redundam "em muita terra para pouco índio", mas não se dá conta de que com o agronegócio se tem "muita terra para pouco branco". Apenas a garantia de espaço e direitos à terra dos povos indígenas poderá reduzir o número de conflitos e tensões que desencadeiam os casos de violência. "É fundamental que o Estado brasileiro aceite e respeite a reivindicação indígena por demarcação de terras", afirma a antropóloga Lúcia Helena Rangel .


Politizar a luta dos Guarani-Kaiowá

Ao longo desse doloroso acompanhamento do sofrimento a que é submetido esse povo, duas certezas calam fundo: 1ª – A responsabilidade pela indizível violência contra os Guarani-Kaiowá é do agronegócio e do latifúndio; 2ª – A inoperância do Estado brasileiro que subordinado aos interesses do agronegócio e das forças atrasadas – latifúndio – optou pela judicialização do conflito e não empenha energias em exigir a demarcação dos territórios já definidas pela Constituição de 1988.

A indignação que agora se assiste nas redes sociais precisa se transformar em ação. Faz-se necessário que o governo aja com energia e trate a causa como prioridade. Não basta a ministra da Secretaria Nacional de Direitos Humanos, Maria do Rosário  afirmar “lutaremos para agilizar o processo de estudos para demarcação desse território”; não basta o ministro da Justiça, José Eduardo Cardoso , dizer que “já estamos concluindo os estudos fundiários e, em 30 dias, será formalizado o despacho de análise antropológica”.  É muito pouco, é preciso uma estratégia ampla para demarcar todos os territórios indígenas. A ação do governo tem sido sempre reativa, é preciso que seja ativa.

Faz-se necessário politizar a luta dos povos indígenas. O coerente apoio à luta dos Guarani-Kaiowá pede uma posicionamento crítico ao modelo em desenvolvimento em curso.  A agressão sistemática contra os povos indígenas e até mesmo a tentativa de eliminá-los está relacionado ao modelo agrícola concentrador de terra e produtor de commodities voltado para o mercado internacional. Aqui reside a contradição.
O modelo econômico vigente estimula e favorece a plantation de commodities - soja, cana – e a commoditie pecuária – gado. Não basta o Estado brasileiro falar no respeito às minorias, nos direitos sociais, ambientais, culturais, mas ao mesmo tempo estimular o modelo econômico de commoditização da economia, via BNDES, com generosos subsídios para as monoculturas da soja e cana-de-açucar e para a pecuária sem exigir radicais contrapartidas e empenhar-se pela imediata demarcação dos territórios que se arrasta há décadas. Ao mesmo tempo, as alianças com os grupos políticos que apoiam a política de extermínio indígena é outro fator que retarda e impede mudanças.

O apoio à luta Guarani-Kaiowá pede uma leitura e um olhar crítico sobre o modelo econômico em curso. Essa luta se trava também no Palácio do Planalto.

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