Edição 418 | 13 Mai 2013

A relação de Lessing com Kierkegaard

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Márcia Junges e Gabriel Ferreira

Pensador dinamarquês criticava Hegel via Trendelenburg, “mas o respeita”, observa Álvaro Valls. Ao modo de Lessing e Sócrates, Kierkegaard “desloca a questão do cristianismo de uma verdade objetiva para o terreno da subjetividade e de uma verdadeira interioridade”

“Estou encantado, alegre como um guri, de poder ir descobrindo, em minha pesquisa, detalhes da relação de Lessing com Kierkegaard. Se de Sócrates, um grego pagão, Kierkegaard já aproveitou tanto, a ponto de se dizer que ele foi “o Sócrates da Cristandade”, imaginemos de Lessing, filho e neto de pastores luteranos!” A afirmação é do filósofo Álvaro Valls na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Considerado um dos maiores especialistas em Kierkegaard, além de tradutor de obras fundamentais desse pensador para a língua portuguesa, Valls aponta que os equívocos diminuem ao se ler uma tradução vertida do original. “No caso de nosso pensador dinamarquês, tanto o francês quanto o italiano são idiomas distantes dos originais, e quem só se baseava nessas línguas perdia muito da vivacidade de sua escrita e da precisão de seus conceitos”.

Álvaro Valls é doutor em Filosofia pela Universidade de Heidelberg (Alemanha). Professor titular do PPG-Filosofia da Unisinos, é pesquisador do CNPq, presidente do Grupo de Estudos sobre as obras de Kierkegaard nesta instituição e um dos fundadores da Sociedade Kierkegaard do Brasil (Sobreski). Traduziu algumas obras desse filósofo direto do dinamarquês, publicadas na coleção Pensamento Humano, pela Editora Vozes, e está finalizando a tradução de uma obra de Theodor Adorno para a Editora UNESP. De sua produção bibliográfica, citamos Entre Sócrates e Cristo (Porto Alegre: Edipucrs, 2000) e O que é Ética? (São Paulo: Brasiliense, 1983). Com Jorge Miranda de Almeida, escreveu Kierkegaard (Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2007). 

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Em 1983, em artigo publicado no Folhetim da Folha de São Paulo, você afirmava que Kierkegaard ainda não havia sido lido de maneira satisfatória no Brasil. De lá para cá, o que mudou?

Álvaro Valls - Naquela ocasião eu escrevi que no Brasil não se lera Kierkegaard, com exceção do professor gaúcho da Universidade Federal do Paraná, Ernani Reichmann, que não só o lera em línguas internacionais, mas fora passar um ano em Copenhague (creio que em 1959) e ao retornar divulgara coisas importantes e principalmente traduzira umas 400 páginas de Textos Selecionados. Eu não dizia, aliás, que no Brasil não se escrevera sobre Kierkegaard, mas só que ele não era lido... (Uma bela exceção, de qualquer jeito, seria o livro de Alceu de Amoroso Lima  sobre o existencialismo, que embora revelasse um modo de ver datado, anos 50, buscava ser objetivo, ainda que com leituras de segunda mão). Mas de lá para cá quase tudo mudou. A Editora Vozes aceitou publicar minhas várias traduções, feitas a partir do original dinamarquês e confrontada com as melhores traduções em alemão, em inglês, em francês e em espanhol. Foram defendidas já umas dezenas de dissertações de mestrado e uma dúzia de doutorados (aqui e no exterior) sobre este autor e sua problemática. 

A Sociedade Brasileira de Estudos de Kierkegaard reuniu-se anualmente por onze vezes, em mais de meia dúzia de estados brasileiros das diversas regiões. Alguns dos melhores pesquisadores já passaram pelo menos um mês na Kierkegaard Library de Minnesota, o que provoca um verdadeiro upgrade. E tem gente, como o Dr. Jonas Roos  (da UFJF), que pesquisou por mais de um ano no Centro de Pesquisas de Copenhague. Vários livros foram publicados, atentos às fontes e de bom nível acadêmico. Por fim, alguns dos melhores pesquisadores nossos conquistaram posições em nossas universidades das várias regiões do Brasil. 

IHU On-Line - Qual é o impacto da tradução das obras de Kierkegaard em um incremento de sua leitura e estudo sistemático em nosso país? 

Álvaro Valls - Traduzido da língua original, o autor passa a falar nossa língua materna, o que permite um dialogo direto com ele. Ouvi nossos tradutores de Hegel e Heidegger dizerem que a cada livro que é traduzido surgem, dois ou três anos depois, várias dissertações. É claro que uma ou duas dissertações são apenas o início de uma conversa. Os equívocos, porém, diminuem, quando não se precisa ler a tradução de outra tradução. No caso de nosso pensador dinamarquês, tanto o francês quanto o italiano são idiomas distantes dos originais, e quem só se baseava nessas línguas perdia muito da vivacidade de sua escrita e da precisão de seus conceitos. Restavam então as lendas, as explicações míticas sobre o pai, a noiva e a polêmica com a igreja. À medida que vamos traduzindo, os leitores penetram no mundo mais real do autor.

IHU On-Line - Em 2013, você publica a tradução da primeira metade do Pós-Escrito Conclusivo Não-científico às Migalhas Filosóficas. Como avalia a importância desse livro no panorama geral da obra de Kierkegaard? 

Álvaro Valls - O Pós-escrito, tanto por seu tamanho quanto pela multiplicidade dos temas e a profundidade das questões, sempre representou um desafio assustador, embora haja quem diga (e com bastante razão) que se trata do livro mais divertido do autor. Afinal, se ele cogitava que deveria morrer naquele ano, aos 33 anos de idade, o humor não poderia estar ausente. Mas aí se trata de uma prestação de contas, com sua obra até ali, e com os autores de seu tempo, com quem discute, em especial os hegelianos, dinamarqueses ou alemães. Questiona as promessas de sistema, que era uma moda na época, e prefere claramente Hegel a seus discípulos meio atrapalhados. Também critica Hegel, inclusive com o precioso auxílio do lógico alemão Adolf Trendelenburg, no núcleo duro do sistema, justamente nos capítulos centrais da lógica da essência. Mas o respeita, mesmo que em Kierkegaard a seriedade inclua sempre muita brincadeira, muita risada, até um certo teatro. É justo dizer que o Pós-escrito resume e conclui suas preocupações teóricas e práticas, filosóficas e religiosas, até então. Capta o essencial de seu esforço dos primeiros anos: “tornar-se” homem e “tornar-se” cristão. Desloca a questão do cristianismo, de uma verdade objetiva para o terreno da subjetividade e de uma verdadeira interioridade, do tipo da que encontramos, por exemplo, em Sócrates ou em Lessing. Aliás, a verdade, numa perspectiva joanina, é algo que pertence em primeiro lugar à dimensão pragmática: “Eu sou a verdade”; “realizar a verdade”; sermos “verdadeiros”.

IHU On-Line - No Pós-Escrito o pensador alemão G. E. Lessing é uma figura recorrente, sendo comparado a Sócrates. Qual é a relação entre esses dois pensadores? E que nexos há entre eles e o pensamento de Kierkegaard? 

Álvaro Valls - Estou encantado, alegre como um guri, de poder ir descobrindo, em minha pesquisa, detalhes da relação de Lessing com Kierkegaard. Se de Sócrates, um grego pagão, Kierkegaard já aproveitou tanto, a ponto de se dizer que ele foi “o Sócrates da Cristandade”, imaginemos de Lessing, filho e neto de pastores luteranos! Lessing cultiva a ironia e o humor, enquanto se interroga constantemente sobre a fé; é um grande literato, dramaturgo e crítico, grande polemista, o primeiro intelectual orgânico, o primeiro alemão que trabalhou com ideias sem precisar ser nem professor, nem pastor! (O próprio Hegel, quando jovem, antes de entrar para a carreira acadêmica, queria ser como Lessing ou Rousseau .) Lessing é um modelo, mas o curioso está em que, sendo ele um modelo de pensador subjetivo, não pode ser imitado, copiado, “seguido”. Seguir Lessing, tal como seguir Kierkegaard, é ser quem a gente é, ou, na dicção nietzschiana: cada um(a) se tornar quem ele ou ela é! Mas se Sócrates está presente na obra kierkegaardiana pelo menos desde a dissertação sobre O conceito de ironia, de 1841, Lessing serve de mote a muitos dos ensaios das primeiras obras, além de ser citado sobre o saber dialogar, na Dissertação, e mais dúzias de vezes nos Diários. Para indicar a importância de Lessing, bastaria aqui avisar que Kierkegaard (ou seu pseudônimo Johannes Climacus) dá início à segunda e principal parte do Pós-escrito com uma “Expressão de gratidão a Lessing”, seguida de dezenas de páginas discorrendo sobre “Teses possíveis e reais de Lessing”.

IHU On-Line - Quais são as peculiaridades da obra O Conceito da Angústia em termos de relação entre filosofia e teologia?

Álvaro Valls - O conceito de angústia fala tanto do pecado e da figura de Adão, que o leitor desavisado pensará tratar-se de um livro de religião. Mas não é nem de Teologia, nem mesmo de Ética, tampouco de Metafísica ou de Estética. Segundo seu autor pseudônimo (Vigilius Haufniensis, o Vigia de Copenhague), trata-se estritamente de um livro de Psicologia (filosófica), ou seja, de um estudo filosófico-antropológico: é um estudo filosófico sobre a constituição estrutural do ser humano, e neste sentido poderíamos dizer que segue um enfoque transcendental, ou ao menos segue a tradição do De anima, de Aristóteles. No tocante à Teologia, a angústia é apresentada como uma explicação melhor do que a concupiscência. Adão entra aí como uma figura (tal como, em outras obras, Abraão, Jó, Don Juan ou Fausto). Simboliza o ser humano, todos e cada um. Aliás, cada um é um outro Adão, e numa perspectiva cristã cada um se moveria entre o velho Adão e o novo Adão. Ao tratar da liberdade de recusar o bem, de se angustiar com o bem, este livro faz parceria com outro que Kierkegaard editou na mesma semana, as Migalhas filosóficas (do pseudônimo Climacus, o mesmo do Pós-escrito). A liberdade que enfrenta a angústia não é a de um espírito absoluto, mas a do humano, uma liberdade embaraçada, até por seus estados de ânimo, porém mesmo assim uma liberdade imputável. Enfim, não é livro de literatura psicológica ou de auto-ajuda: pois no 5o. capítulo, breve e denso, a angústia se apresenta como libertadora ou salvadora, quando aliada à fé, o que é um enfoque próximo da Teologia e bem diferente dos que são dados na área psi.

Leia mais...

Confira outras entrevistas concedidas por Álvaro Valls à IHU On-Line.

* Paulo e Kierkegaard. Edição 175, Paulo de Tarso e a contemporaneidade, de 10-04-2006, disponível em http://bit.ly/ZBnFEx 

* “Uma Filosofia brasileira surgirá com tempo e muito trabalho". Entrevista concedida para as Notícias do Dia do sítio do IHU, de 16-11-2006, disponível em http://bit.ly/b70mJa 

* “O que Dawkins vem fazendo atualmente não é ciência, mas sim uma pregação de suposições filosóficas indemonstráveis”. Edição 245, O novo ateísmo em discussão, de 26-11-2007, disponível em http://bit.ly/c9vBLz 

* Carlos Roberto Velho Cirne-Lima. Depoimento concedido à Edição 261, Carlos Roberto Velho Cirne-Lima. Um novo modo de ler Hegel, de 09-06-2008, disponível em http://bit.ly/18NPQUP 

* O avanço da pesquisa em Kierkegaard no Brasil. Edição 314, de 09-11-2009, disponível em  http://bit.ly/dxsFGl 

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