Edição 418 | 13 Mai 2013

O nexo entre linguagem e desonestidade num pensamento “desconcertante”

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Márcia Junges e Gabriel Ferreira

O desmascaramento do que Kierkegaard chamava de Cristandade é um dos pontos centrais de sua obra, frisa Nuno Ferro. Seu “destino histórico” foi marcado pela oposição ao sistema de Hegel e por ter sido “arrastado” para o significado histórico do existencialismo

De acordo com o filósofo português Nuno Ferro, Kierkegaard identificou com clareza que “o processo de autoengano, em que se está profundamente na mentira como se se estivesse na verdade, não é, de maneira nenhuma, algo que acontece ao homem apenas excepcionalmente, mas, muito pelo contrário, uma possibilidade intrínseca”. Assim, explica, “o nexo entre linguagem e desonestidade é duplo: do ponto de vista da linguagem é uma possibilidade sempre à espreita; do ponto de vista da desonestidade é a forma perfeita da sua realização”. E acrescenta: “É por isso que o desconcerto que o pensamento de Kierkegaard continua a provocar é o seu legado mais importante: ele continua a ser uma voz que pode interpelar subjetivamente alguém, que o leve a pensar em si, a converter-se num pensador subjetivo, mesmo que isso não aconteça nunca”. As declarações fazem parte da entrevista a seguir concedida por e-mail à IHU On-Line. Nuno Ferro pondera, ainda, sobre dois rótulos que foram colados ao pensamento do dinamarquês: sua oposição ao sistema hegeliano e o significado histórico do existencialismo, para o qual foi “arrastado”.

Nuno Ferro leciona na Universidade Nova de Lisboa, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, no Departamento de Filosofia. Com Mário Jorge de Carvalho traduziu S. Kierkegaard: Adquirir a sua alma na paciência (dos Três discursos edificantes, de 1843) (Lisboa: Assírio e Alvim, 2007). É autor de inúmeros artigos sobre Kierkegaard e comentou textos de Leibniz.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual é a importância da análise de linguagem em Kierkegaard? Haveria aí algum traço da analítica da linguagem desenvolvida no século XX?

Nuno Ferro – O fenômeno da linguagem é analisado por Kierkegaard em vários contextos, aparentemente muito diferentes entre si, e sob diversos pontos de vista. E isso não poderia deixar de ser assim, dado que a linguagem constitui o próprio âmbito do que chamamos sentido, do que Kierkegaard costuma chamar “idealidade”, como se diz logo no De Omnibus Dubitandum Est, que é um texto de juventude, como se sabe, não publicado. É, por isso, perfeitamente compreensível que o fenômeno da linguagem ocupe um espectro muito largo de análises. Ele pode surgir como um dos momentos centrais do “ético”, por exemplo, em Temor e tremor e n'O Conceito de angústia. De fato, aquilo que os antigos diziam do bem, que é próprio dele difundir-se, significa também, entre outras coisas, que é próprio do bem comunicar-se e isso quer dizer, para nós, manifestar-se em forma de linguagem. A tal ponto que, no seu limite, as exceções ao ético, tanto as várias formas limites de mal como as que se orientam para o religioso, no sentido estrito do termo, tendem para o silêncio e para o fechamento na incomunicabilidade.

A análise da linguagem pode surgir depois no âmbito mais geral do fenômeno da comunicação. Kierkegaard está especialmente interessado no problema da comunicação ética e ético-religiosa e chega mesmo alguma vez a falar da necessidade de produzir uma nova ciência, a arte de falar cristã, ao modo da Retórica, de Aristóteles. Mas esse interesse levou-o a ter de analisar o próprio fenômeno da comunicação, como se vê, por exemplo, nos fragmentos que nos chegaram de um projetado curso sobre a Dialéctica da comunicação, que Kierkegaard não chegou a proferir, talvez porque, em última análise, não faria sentido, como se diz nessas mesmas notas, comunicar num curso aquilo que não se pode comunicar num curso. 

Mostruoso ruído

Neste campo, na identificação dos vários aspectos que estão incluídos no que significa comunicar, Kierkegaard é um momento central, pelo menos na modernidade, ainda que talvez o deva, pelo menos em parte, a Hamann , que é um autor menos conhecido, mas que é decisivo neste campo. E é também central na identificação dos fenômenos presentes nas formas modernas de comunicação. É sabida a repugnância que Kierkegaard sentia pela imprensa – de que diz ser essencialmente “não verdade”, “ilusão de comunicação”, como tantas vezes repete – e a partir do que ele escreveu sobre os jornais pode talvez vislumbrar-se como reagiria a este monstruoso ruído que nos invade e que serve apenas para atordoar a mente, deixando-a na ilusão de que ganhou qualquer coisa com essa aparência de comunicação.

Esta análise do fenômeno da comunicação levou Kierkegaard a fazer ainda o diagnóstico e o elenco das perversidades da linguagem, daquelas perversidades que são possíveis pela própria estrutura da linguagem. A história desta preocupação de Kierkegaard começa provavelmente no seu interesse pela ironia, e tem muitas ramificações. O estudo mais profundo deste aspecto do pensamento de Kierkegaard está ainda por ser feito, apesar de existirem algumas obras sobre o tema. É provável que as suas análises tenham influenciado o que Heidegger chama Das Gerede, porque Heidegger conhecia, tanto quanto parece, um dos textos de Kierkegaard onde se analisa a “conversa fiada”, o falar por falar sem dizer nada – Uma Recensão Literária. Mas as relações entre Kierkegaard e Heidegger esperam ainda por um estudo mais completo.

Desmascaramento

Dentre este elenco de perversidade que a linguagem permite pela sua própria essência, destaca-se a possibilidade de produzir ilusões, quer dizer, de construir máscaras e de fazê-lo de modo totalmente inconsciente, de tal forma que, devido à linguagem é perfeitamente possível viver totalmente enganado a respeito de si e do mundo e não ter qualquer suspeita disso, mas estar, pelo contrário, aparentemente de boa fé. Este é um dos pontos centrais do significado da obra de Kierkegaard, como se sabe: o do desmascaramento do que ele chamava a Cristandade, por oposição ao cristianismo. O que é muito significativo é que a análise de Kierkegaard tem por fito mostrar como essa extraordinária ilusão é essencialmente um fenômeno da linguagem e não seria possível de outra forma.

Como se percebe, a linguagem ocupa um momento nuclear na obra de Kierkegaard, mas a sua relevância histórica está muito aquém daquilo que merece, e isso é assim por uma longa série de motivos. Há, como se disse, provavelmente uma influência no pensamento do primeiro Heidegger. Mas chama a atenção que um pensador tão atento ao problema da linguagem, como é o caso de Wittgenstein  e que foi tão fortemente influenciado por ele, como se sabe há já bastante tempo, não tenha sido tocado pelas análises de Kierkegaard a esse respeito, mas apenas por outras, ainda que também igualmente relevantes. Isso é assim, como disse, devido a muitos fatores: a recepção dos textos e as traduções, o estilo próprio do pensamento anglo-saxônico, o fato de a recepção de Kierkegaard estar marcada por certo tipo de correntes filosóficas, etc.

Deve, todavia, fazer-se uma ressalva. O pensamento pós-moderno tem tentado, à sua maneira, recuperar o pensamento de Kierkegaard sobre a linguagem, ainda que somente em alguns, e não em muitos, dos seus aspectos.

IHU On-Line – Qual é o papel de Kierkegaard na filosofia moderna tanto na recepção de filósofos anteriores quanto nas origens da filosofia contemporânea?

Nuno Ferro – O lugar que Kierkegaard ocupa no pensamento filosófico é um lugar ambíguo e está ocupado por um grande número de mal-entendidos, o que dificilmente podia deixar de ocorrer tendo em conta a peculiaridade do que Kierkegaard chama “a minha atividade como autor” e o destino que o próprio Kierkegaard previu para ela: a sua absorção pela filosofia e por aqueles que, como eu, se dedicam profissionalmente a ela, pelo “professor”. De qualquer modo, há mal-entendidos que pouco a pouco se vão desvanecendo, parece, mas também há outros que vão surgindo e ocupando o seu lugar. De fato, se é sempre assim com os filósofos é muito mais assim com “pensadores” com os quais não se sabe bem que se há de fazer, como é o caso de Kierkegaard, mas também de Hamann e Wittgenstein, por exemplo, para referir dois pensadores já mencionados. Assim, o destino histórico do pensamento de Kierkegaard foi, até há alguns anos, marcado por dois aspectos: o primeiro, a sua oposição ao sistema de Hegel, oposição que era tratada de modo quase infantil. Este lugar comum acerca de Kierkegaard tem vindo a modificar-se, devido a estudos importantes, mas parece que falta ainda algum tempo para que se perceba até que ponto Kierkegaard é profundamente devedor de Hegel e que significado é, afinal, o da sua oposição. Aliás, assiste-se atualmente ao levantamento sério da situação do pensamento de Kierkegaard por relação ao seu tempo e às várias tradições que o influenciaram, feito numa série de estudos do centro de investigação sobre Kierkegaard, de Copenhague. Isso já tinha sido feito, há anos, num conjunto de publicações intitulado Bibliotheca Kierkegaardiana, mas atualmente está sendo levado a cabo de um modo muito mais sistemático e completo. Percebe-se melhor agora o que é que Kierkegaard deve a Schelling, a Fichte , a Jacobi , ao pensamento religioso pietista, etc.

“Arrastado” pelo existencialismo

O destino histórico do pensamento de Kierkegaard ficou ainda marcado pela sua infeliz anexação pelo existencialismo, sobretudo na sua versão francesa e na sua compreensão popular. Kierkegaard foi arrastado para o significado histórico do existencialismo e isso impediu, durante muito tempo, que se percebesse bem a verdadeira relevância dos seus textos, que está muito para além daquilo que foi popularizado pelo existencialismo.

Hoje, o fenômeno “Kierkegaard” ressurgiu, como disse, e com força no pensamento pós-moderno, chamado da desconstrução. E precisamente devido à linguagem, pois o pensamento da desconstrução, se assim se pode dizer, foca-se, precisamente, na linguagem, e parte da corrente pós-moderna soube reconhecer, justiça lhe seja feita, a relevância de Kierkegaard relativamente a este aspecto. Há muitos autores contemporâneos, no mundo anglo-saxônico, que estudam Kierkegaard devido às suas análises sobre a linguagem. E, como se sabe, pensadores tão importantes como Paul de Man  e Derrida  foram marcados por Kierkegaard. 

E há ainda que ter em conta a sua forte influência subterrânea, por assim dizer. Já referi o modo como marcou Heidegger, Wittgenstein, como se torna evidente quando se leem os seus diários, e sabe-se que influenciou Lacan , etc.

Não me refiro aqui à influência que teve no pensamento teológico, nem às vicissitudes que a relação de K. Barth  com Kierkegaard sofreu. Mas é chamativo que, no interior do pensamento cristão, o pensamento de Kierkegaard continue a sofrer de uma extraordinária ambivalência. Há, por exemplo, autores católicos que o incorporam, até no âmbito do tomismo, como é o caso de C. Fabro, de quem tantos estudiosos de Kierkegaard são devedores, e autores protestantes, pelo contrário, que têm com ele “ajustes de contas”, como Løgstrup. De qualquer modo, parece que Kierkegaard continua a ser desconcertante e ele deveria achar graça a isso mesmo.

IHU On-Line – Qual é o nexo entre linguagem e desonestidade em sua obra?

Nuno Ferro – Alguns dos aspectos já foram referidos. Trata-se, contudo, de um assunto bastante complexo, porque a desonestidade a que Kierkegaard se refere a respeito da linguagem é algo, por um lado, quase (digo “quase”) natural ao homem e, por outro lado, inconsciente. O que está em causa na desonestidade é o difícil fenômeno da “self-deception”. Também neste aspecto, o pensamento analítico anglo-saxônico, que se ocupa com a self-deception de há umas décadas para cá, teria bastante a lucrar com a análise do fenômeno feita pela tradição continental, pelo menos desde La Rochefoucauld, e, muito concretamente, por Kierkegaard. Kierkegaard insiste, e com razão, primeiro no fato de a possibilidade do autoengano ser conatural ao homem, e isso é assim porque, no homem, ser e pensar (ou ser e linguagem) correspondem necessariamente a estruturas heterogêneas, em oposição e contradição e, depois, porque o homem compreende-se sempre a si próprio, ou melhor, interpreta-se sempre a si próprio, em tudo o que faz e é, não a partir do que é (o que nunca pode fazer), mas sempre a partir do que pensa que é, quer dizer, a partir da linguagem. Ou seja, em caso algum o homem pode assegurar-se de que é o que pensa e diz ser, de tal forma que a possibilidade de autoengano é absolutamente inanulável. Isso não equivale, como é fácil de ver, a desonestidade. 

A desonestidade provém desta possibilidade, primeiro, mas a ela acrescenta-se a propensão, a inclinação praticamente inevitável, ainda que não absolutamente inevitável, de que o homem sofre para, por assim dizer, ser favorável a si na interpretação que faz da sua vida e do seu comportamento. Dito de outro modo, o homem tende a querer manter certo tipo de vida, a ser de certa forma, mas só suporta esse tipo de vida para o qual está inclinado se ele for pensado e interpretado como algo que, na verdade, é muito mais valioso e perfeito do que é na realidade. O homem quer certo tipo de coisas, mas apenas suporta essa sua vontade se ela aparecer enfeitada, adornada, isto é, disfarçada, de respeitabilidade e de validade. No fim de contas, trata-se apenas do dito antigo de S. Agostinho, segundo o qual os homens amam tanto a verdade que querem que seja verdade aquilo que eles amam.

Bancarrota do sentido

Aquilo que Kierkegaard identificou com clareza é que este processo de autoengano – em que se está profundamente na mentira como se se estivesse na verdade – não é, de maneira nenhuma, algo que acontece ao homem apenas excepcionalmente, mas, muito pelo contrário, uma possibilidade intrínseca. Mostrou, depois, que tudo isso não é só uma possibilidade própria do homem, mas é algo que tende quase inevitavelmente a acontecer, de tal forma que o que é esmagadoramente mais comum é a mentira com feições de verdade. E, finalmente, que isso só é possível pela linguagem, porque é próprio da linguagem permitir a transformação de uma coisa noutra, de uma coisa no seu contrário, sem que essa transformação se manifeste, porque a linguagem funciona como uma espécie de biombo que oculta as transformações subterrâneas na vida, na medida em que se mantêm as estruturas linguísticas. Aliás, mais do que isso: a manutenção das estruturas linguísticas tem precisamente por função transformar uma realidade no seu oposto como se não tivesse acontecido absolutamente nada. E qualquer pessoa que esteja atento ao que agora mesmo acontece no Ocidente em tantos aspectos decisivos para a vida humana e para a sociedade, verificará que é precisamente isso que está a acontecer na atualidade: muitas coisas se transformam no seu oposto, mas mantemos as palavras originais que, devido a essa transformação, deveriam ter sido, pura e simplesmente, riscadas do dicionário, se fôssemos ou quiséssemos ser honestos.

Mas não fizemos isso, preferimos tranquilamente a mentira, a máscara, a ilusão. De outra forma, teríamos de reconhecer que estamos na bancarrota do sentido. Mas não é necessário, pois a linguagem não só torna possível como também torna leve – aliás, faz desaparecer – essa transformação. Por isso, o nexo entre linguagem e desonestidade é duplo: do ponto de vista da linguagem é uma possibilidade sempre à espreita; do ponto de vista da desonestidade é a forma perfeita da sua realização.

IHU On-Line – Passados 200 anos do nascimento de Kierkegaard, qual é a importância do seu legado filosófico?

Nuno Ferro – A resposta não é fácil. Há certamente um legado filosófico que é significativo, mas que não possui a relevância mediática ou acadêmica de outros pensadores. Mas julgo que isso é claramente positivo, apesar de não parecer. Kierkegaard foi um pensador solitário e isolado e, se não pôde escapar ao seu destino filosófico e ao fato de ter passado a estar presente em cursos de filosofia, livros, teses, etc., e de haver até como que uma espécie de “escolástica kierkegaardiana”, ele permanece, todavia, nalguma forma de isolamento, aquela que corresponde ao fato de continuar a produzir desconcerto. E isso é o mais importante do seu legado. Kierkegaard falava, como já se referiu, à sua “atividade como autor” e com essa expressão pretendia, julgo, evitar precisamente a ideia de que o conjunto de textos de que era autor pretendia ser uma filosofia, um pensamento ou um complexo de teses. A expressão parece querer dizer que a produção desse conjunto de textos é uma ação, no sentido em que se pretende produzir um efeito real e não uma mera expressão de teses. É claro que escrever é sempre uma ação, mas o significado dessa ação recai no próprio texto escrito, o qual possui validade enquanto pensamento e isso é assim também nos chamados textos de intervenção. De fato, a atividade habitual de escrever possui, mesmo quando se pretende efetuar uma modificação qualquer na sociedade, um significado objetivo, o do conteúdo de um pensamento. Ora era precisamente isso, parece, que Kierkegaard queria evitar com a sua atividade: o significado dos seus textos não pretendia ser objetivo. É óbvio que não pode fugir a isso. Mas em certa medida, o fato de permanecer um pensador desconcertante dá ao leitor a possibilidade – uma possibilidade muito remota, mas mesmo assim uma possibilidade – de entender o texto em sentido subjetivo. Ou seja, perante um texto de Kierkegaard o leitor tem sempre de fazer qualquer coisa que tenha significado para si mesmo, para o leitor, e se na maior parte dos casos o leitor considera o texto como um conjunto de pensamentos a fim de, por exemplo, dar uma aula, escrever um artigo, responder a uma entrevista, etc., ele está, no entanto, a decidir algo quanto a si mesmo, na medida em que está a recusar uma possibilidade subjetiva, a possibilidade de se enfrentar subjetivamente com o que está em causa nos textos.

Um pensamento desconcertante

É por isso que o desconcerto que o pensamento de Kierkegaard continua a provocar é o seu legado mais importante: ele continua a ser uma voz que pode interpelar subjetivamente alguém, que o leve a pensar em si, a converter-se num pensador subjetivo, etc., mesmo que isso não aconteça nunca. É, aliás, isto mesmo o que Kierkegaard diz nos prefácios aos seus Discursos edificantes, quando se refere ao “seu leitor” e ao destino oculto que cai sobre o livro que lança ao mundo. Ou seja, julgo que o mais importante do seu legado consiste no fato de, apesar de tudo, poder não ser ainda um legado filosófico e, no entanto, permanecer com relevância. De qualquer modo, é preciso referir que há muitos textos de Kierkegaard que são muito importantes, mas que parecem muito pouco lidos e estudados, infelizmente, tirando algumas excepções, Os discursos edificantes, Os discursos cristãos, a mesmo A prática do cristianismo e muitos outros do mesmo registro literário. Chama a atenção que, mesmo depois de Heidegger ter dito que onde se aprende mais de Kierkegaard é, excetuando O conceito de angústia, n'Os discursos edificantes, ainda se persista em não perceber o significado da afirmação de Heidegger e a considerá-la uma crítica. Neste âmbito, o estudo de Kierkegaard está ainda por ser feito, para que se perceba bem, também do ponto de vista filosófico, o significado de toda a produção literária de viés mais religioso.

IHU On-Line – Qual é a sua avaliação sobre a recepção da obra de Kierkegaard em Portugal?

Nuno Ferro – Essa pergunta é fácil de responder: a obra de Kierkegaard em Portugal tem uma expressão muito reduzida, pelo menos até a bem pouco tempo. É certo que havia algumas traduções antigas, muito pouco rigorosas, e algum ou outro pensador influenciado por Kierkegaard, mas só há muitos poucos anos é que começaram a circular traduções fidedignas em Portugal, porque praticamente não havia acesso às realizadas no Brasil. Muito recentemente apareceram traduzidos do original 4 livros de Kierkegaard e 2 ou 3 textos mais curtos. Há dois pequenos núcleos de estudos sobre Kierkegaard, um na Universidade de Lisboa e outro na Universidade Nova de Lisboa. Pouco a pouco, começam a surgir estudos de mestrado e de doutorado, projetos de investigação, colóquios internacionais ou de investigadores portugueses, algum congresso, com a publicação das respectivas conferências em revistas de especialidade, mas tudo numa escala ainda muito reduzida. Não há, por exemplo, nenhuma sociedade de estudos sobre Kierkegaard, como há em quase todos os países onde a filosofia tem um lugar de relevo. Está tudo ainda muito no começo. De fato, se se contassem as pessoas que se dedicam a estudar seriamente Kierkegaard com base nos textos originais, a contagem acabaria muito depressa.

IHU On-Line – Quais os desafios e as peculiaridades na tradução da obra do filósofo dinamarquês para a língua portuguesa?

Nuno Ferro – Há uma dificuldade óbvia, e mais imediata, que deriva da própria diferença de estruturas das duas línguas, e que não é específica de Kierkegaard. Acrescentam-se, no que diz respeito à própria escrita de Kierkegaard, algumas dificuldades muito significativas. Kierkegaard escreve um dinamarquês muito cuidado, literário, com uma grande variedade de gêneros e de registros, com uma pontuação muito própria e com um vocabulário nem sempre fácil e muitas vezes original. E, o que torna ainda mais difícil a tradução, Kierkegaard consegue conjugar, por vezes, um tom fortemente lírico no texto com uma linguagem técnica, o que torna o texto ao mesmo tempo extraordinário e muito árduo de traduzir, porque nem sempre se encontra equivalente em português que mantenha os dois registros, o lírico e o técnico. Por isso, é preciso modificar com frequência a pontuação, eliminar repetições que são muito eficazes em dinamarquês, mas que tornariam a tradução portuguesa muito pesada, introduzir notas que esclareçam as alusões e os artifícios literários, etc. Se se tratasse de um texto puramente filosófico, as perdas derivadas da tradução seriam menores. Nesse caso, que Kierkegaard tem, aliás, em comum com outros autores, as perdas são importantes.

IHU On-Line – Como avalia a produção lusófona sobre Kierkegaard?

Nuno Ferro – A portuguesa já referi: incipiente, mesmo para a escala portuguesa. De qualquer modo, as poucas pessoas que conheço que investigam Kierkegaard são extremamente competentes e produzirão, no curto prazo, um trabalho com grande valor científico. A produção brasileira, para além de ser muito superior em quantidade, como seria de esperar, é equivalente ao que se passa no resto do mundo; há estudos muito bons, bons e outros não tão bons, como sempre. O que, de todas as formas, chama a atenção aqui no Brasil é o entusiasmo por Kierkegaard: o ritmo dos congressos da Sobreski, o número de assistentes às conferências, etc. E julgo que deve ser ainda destacado, quer o trabalho de tradução do professor Álvaro Valls, quer a sua orientação nos estudos de Kierkegaard.

 

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