Edição 200 | 16 Outubro 2006

Pós-humanismo. O ser humano e o animal se hospedam um ao outro.

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IHU Online

“A idéia fundamental do pós-humanismo, empenhado numa compreensão profunda da realidade humana, é precisamente a concepção da interdependência entre o homem e o animal, no qual o homem e o animal se hospedam um ao outro”, é o que diz o professor de filosofia italiano, Claudio Tugnoli.

Tugnoli é professor do Departamento de Filosofia da dell’Università degli Studi di Bologna (Italia). É colaborador do Departamento de Ciência Humana e Social da Faculdade de Sociologia de Trento. Entre suas últimas publicações, Girard. Dal mito ai vangeli, de. Messaggero, Pádua 2001; Bioetica della vita e della morte, AA.VV. ; La bioetica nella scuola, Franco Angeli, Milão 2002; L'unita di tutto ciò che vive. Verso una concezione antisacrificale del rapporto uomo/animale, in C. Tugnoli (org.) Zooantropologia, Storia, etica e pedagogia dell'interazione uomo/animale, FrancoAngeli, Milão 2003, p. 13-74; La teoria mimetica come superamento della logica sacrificale, in L'apprendimento della vittima. Implicazioni educative e culturali della teoria mimetica (em colab. com Giuseppe Fornari), FrancoAngeli, Milão 2003, p. 13-137; Su verità e menzogna in senso storico, in La storia fra ricerca e didattica, ed. de B. de GErloni, Franco Angeli, Milão 2003, pp. 263-360; La magnifica ossessione, Bruno Mondadori, Milão 2005; W. Wundt, Obras, coord. e introd. de C. Tugnoli, UTET, Turim 2006.
Tugnoli concedeu a entrevista que segue por e-mail à IHU On-Line.

IHU On-Line - O que é zooantropologia?

Claudio Tugnoli -
A zooantropologia existe como disciplina específica há uns vinte anos. Ela se desenvolve em particular na Europa e nos Estados Unidos com o objetivo de fornecer uma resposta aos problemas da interação homem/animal, sobretudo, para compensar a carência desta relação e para satisfazer a explosão do interesse relacional com o mundo animal. A zooantropologia tirou grande vantagem das pesquisas desenvolvidas no campo da bioética animal e da afirmação da tese continuísta, que considera as diferenças de habilidades e prestações entre animais humanos e não-humanos como diferenças de grau, não de natureza. A zooantropologia tem, depois, contribuído para consolidar esta concepção, que estende a noção de pessoa também aos animais. Não se exagera quando se consideram a zooantropologia e a bioética animal como uma verdadeira e própria revolução de ordem filosófica, ética e pedagógica. É a própria noção de vida que foi posta em discussão e a relação homem-animal foi refundamentada. A revolução é recente e ainda está em ato. Limito-me a assinalar a contribuição de Peter Singer  nesta direção. Singer (Rethinking Life and Death: The Collapse of Our Traditional Ethics, 1994) observa que a teoria evolucionista de Darwin  (A origem do homem é de 1871), por pelo menos um século, nem sequer arranhou a concepção tradicional que assinala um status especial aos seres humanos, criados à imagem e semelhança de Deus.

Faz agora trinta anos, teve início um processo de difusão de uma nova consciência ecológica, determinada pelos sinais alarmantes de danos consistentes provocados ao ecossistema pelas atividades humanas. Um outro passo em frente foi realizado graças aos teóricos da libertação animal, os quais expressaram a exigência de pôr o problema da igualdade não só no interior da espécie humana, mas também com respeito às outras criaturas sensitivas. Os teóricos da libertação animal se bateram para superar os limites estreitos de uma moral restritiva, com o objetivo de estender também aos animais não-humanos o reconhecimento de interesses e direitos. Além disso, acrescenta Singer, um melhor conhecimento dos grandes símios exigiu a superação de velhos esquemas, que atribuíam a posse da inteligência somente aos animais humanos. A idéia de uma demarcação nítida entre animais humanos e não-humanos se desfez definitivamente quando foi possível dar-se conta de que muitos símios superiores são capazes de inteligência instrumental e até de usar uma linguagem (entender e usar um elevado número de sinais coordenados entre eles). O movimento de pensamento que funciona sob o nome de libertação (ou liberação) animal foi reforçado pelos estudos experimentais que reduziram decisivamente a distância entre animais humanos e não-humanos. Além da inteligência, cujo uso e posse podem ter muitos graus, nós e os animais compartilhamos de aspectos decisivos da vida material e da organização social de um território: a busca de alimento, a conquista de um parceiro, a realização de uma posição de liderança ou o incremento de status, a proteção da família e a defesa do próprio território.

Temos em comum com os outros animais, observa Singer, até mesmo os princípios morais fundamentais que disciplinam o nosso comportamento, como, por exemplo, a regra da reciprocidade, os deveres para com os consangüíneos e os freios ao comportamento sexual. As últimas pesquisas da biologia e da genética demonstram que o homem pertence à mesma família e ao mesmo gênero dos chimpanzés e dos gorilas: um resultado revolucionário com respeito à classificação de Lineu, que atribui aos humanos não só uma espécie existente por si (homo sapiens), mas também um gênero separado (Homo) e até uma família separada (Hominidae). Mas, a classificação de Lineu obedece unicamente ao desejo de separar o homem dos outros animais. Também a definição de espécie como grupo de indivíduos interfecundos foi desmentida pela existência de espécies que se revelaram interférteis. É possível que espécies diversas não possam mais reproduzir-se por causa do desaparecimento dos tipos intermédios. Entre um ser humano e um chimpanzé não há reprodução; poder-se-ia coligar este limite ao número diverso de cromossomos do chimpanzé (48) e do homem (46). Todavia, é sempre Singer que argumenta, duas diversas espécies de símios que vivem na Malásia e na Indonésia, como o siamango e o gibão, resultaram interfecundos, não obstante o número diverso dos cromossomos (respectivamente 50 e 44). Isso impede excluir que homens e chimpanzés possam resultar interfecundos.

IHU On-Line - Qual será o espaço que outras espécies animais terão no mundo pós-humano? O homem continuará sendo o centro das questões?

Claudio Tugnoli
- Os indivíduos humanos são chamados com o termo “pessoa”, como se isso fosse sinônimo de “ser humano”. Nos textos de bioética, ao invés, o termo “pessoa” é usado para indicar um indivíduo que possui certas características, por exemplo, a racionalidade e a autoconsciência. Entre ser humano e pessoa não subsiste nenhuma identidade semântica: há pessoas que não são seres humanos (por exemplo, Deus ou outros seres pertencentes a espécies diversas da humana, que vivem sobre a terra ou em qualquer outro planeta do universo) e há seres humanos que não são pessoas (como os sujeitos anencéfalos, os indivíduos mergulhados no coma irreversível, ou ainda, em sentido estrito, os indivíduos humanos assim ditos normais quando dormem). A teologia ocidental reconhece a qualidade de pessoa ao Pai e ao Espírito Santo, que, no entanto, não são seres humanos. Há pessoas que são seres humanos, mas também pessoas que não o são sem pertencerem aos nove sobre dez. Os grandes símios, escreve Singer, são pessoas sob todos os efeitos, mas no futuro poderão emergir ulteriores e definitivos elementos de prova que permitirão enumerar entre as pessoas também as baleias, os delfins, os elefantes, os cães, os suínos e outros animais, que sejam conscientes da própria existência no tempo e capazes de raciocínio. Enfim, se também fosse discutível a própria noção de inteligência e consciência, deveríamos ainda admitir que aos animais em geral seja reconhecido que sofrem, sentem dor de muitos modos e que o nosso cuidado por eles não pode depender do grau de racionalidade e de autoconsciência que possuem.

Racionalidade e autoconsciência

Aqui há um problema bastante sério, que Singer elude. Ele parece pressupor que racionalidade e autoconsciência são características que as diversas espécies possuem em grau diverso. Uma tese, esta, que podemos definir como continuísta. Pode-se, todavia, sustentar que, como faz, ao invés, Felice Cimatti, uma tese oposta, descontinuísta, que assinala somente aos animais humanos a característica da racionalidade e da autoconsciência, negando-a totalmente aos animais não-humanos. Uma teoria zooantropológica, a de Cimatti, que repropõe a filosofia cartesiana. Assim, o neocartesianismo parece repropor uma barreira entre o homem e os animais, que os manteve, por longo tempo, separados e inimigos. Mas, a pergunta de Singer, neste ponto, se torna atordoante: “Por que jamais deveremos tratar como sagrada a vida de uma criança anencéfala e sentir-nos livres para matar crianças sadias para retirar seus órgãos? Por que encerrar chimpanzés em gaiolas de laboratório e contagiá-los intencionalmente com doenças humanas fatais, se nos aborrece a idéia de fazer experimentos em seres humanos gravemente deficitários intelectualmente, que apresentam um nível mental análogo ao dos chimpanzés?”.

IHU On-Line - Como podemos caracterizar o sujeito pós-humano?

Claudio Tugnoli -
O pós-humanismo vai além do velho humanismo, que insiste na separação entre o homem e o animal, mostrando que, ao contrário, o animal é parceiro de consciência. Um homem mostra uma relação de parentesco com o animal, seja do ponto de vista filogenético, seja pela abertura à hibridação animal. A cultura humana começou pela sinergia e pelo confronto, da parte do homem, com as habilidades e os modelos comportamentais das diversas espécies animais, com as quais o homem interage desde os primórdios. A tese da dependência cultural do homem com relação ao animal não implica nenhum reducionismo da parte da zooantropologia, que mostra quanto seja infundada a pretensão do velho humanismo, de que a cultura seja oposta com respeito ao teriomórfico e aos modelos animais. Que a cultura seja uma emancipação do homem ou um dom dos deuses, como ensina o mito de Protágoras , ao qual se refere Platão no diálogo homônimo, é uma ilusão solipsista que induz a pensar na cultura como elemento de diferenciação do homem com respeito às outras espécies animais, sem reconhecer ao animal o papel de magister, que resulta, ao invés, ser central ao totemismo. O homem aprende dos animais, que são mediadores e próteses no plano prospectivo, cognitivo, taxonômico, epistemológico, semiótico, estético, operativo. Roberto Marchesini  interpretou com razão o mito de Protágoras como “manifesto” do humanismo clássico: a reconstrução que o sofista Protágoras oferece do nascimento da civilização humana expressa muito bem a concepção antropológica da incompletude. Segundo a tese da incompletude, a cultura seria um instrumento de compensação da falta de ser do homem. Diversamente dos animais que foram providos (segundo Epimeteu) de uma série de habilidades definidas e cumpridas, o homem não recebeu nenhum dom, de modo que sua natureza consiste no fato de não ter uma natureza, uma fisionomia própria.

Na interpretação de Pico della Mirandola , o homem se distingue dos outros seres vivos pelo fato de não ter uma identidade. O homem não é nada, mas pode tornar-se tudo. O humanismo sempre tem, por conseguinte, necessidade do confronto com qualquer alteridade para definir o homem mediante a negação, a exclusão. O paradigma da incompletude, já bem expresso no mito de Protágoras, é representado na antropologia filosófica até o século XX. Isso vem, no entanto, acompanhado de uma concepção isolacionista da evolução cultural, a qual pretende identificar uma pureza identitária do ser do homem e de sua cultura que está em aberta contradição com a tese da incompletude. Num certo sentido, porém, a concepção pós-humanista é a aplicação conseqüente da tese da incompletude. Se a essência do homem consiste em não ter uma essência, então a sua evolução será determinada, desde sempre, pela contaminação, pela hibridação, pela conjugação com a alteridade, com a adoção de modelos em condições de desenvolver potencialidades desconhecidas e imprevisíveis. Na história, o homem encontrou a alteridade em três acepções fundamentais: 1) os animais; 2) os homens pertencentes a culturas diversas; 3) a técnica. A evolução da cultura nada tem a ver com o isolamento, com a preservação de uma pretensa essência própria, sob o risco de adulteração e corrupção. O isolamento e a defesa das contaminações são obstáculos à evolução cultural e são incompatíveis com a tese, também esta humanística, da incompletude. Humanistas como Heidegger  e Hans Jonas  consideram a técnica como uma ameaça para o homem, ao qual ela subtrairia predicados humanos. Reduzido a ser puramente passivo pelo progresso tecnológico, o homem seria desumanizado: também aqui o homem é definido indiretamente, por negação da alteridade. De fato, subentende-se que, se não existisse a alteridade tecnológica, ele poderia desenvolver sua essência de homem livremente.

Sabemos, no entanto, que, se não se conjugasse com a alteridade, se não adotasse modelos externos, se o homem se iludisse com a idéia de poder ser discípulo de si próprio, não haveria nenhum desenvolvimento cultural. O humanismo cultiva o mito da originalidade e reivindica a propriedade no momento mesmo em que esse que não tem nada de próprio, de originário, sendo incompleto e vazio. A alteridade é concebida como um obstáculo à evolução e à formação de uma dimensão original própria, enquanto, em realidade, esta é uma condição, um pressuposto para que o homem se cumpra, convertendo as potencialidades em atualidade. A visão pós-humanística reconhece o papel essencial da alteridade (animal, cultural, tecnológica) no processo antropopoiético. O ser-do-homem não tem nenhuma completude e perfeição que se deva defender dos riscos de alteração; ao contrário, o homem pode desenvolver-se e realizar a própria humanidade somente hibridando-se. O pós-humanismo abandona toda visão fundada na separação e na dicotomia homem/animal, cultura/natureza, tecnológico/biológico e afirma “o estatuto dialógico da ontologia humana” (Marchesini). O homem do pós-humanismo reconhece o próprio débito nos confrontos das alteridades humanas e refuta toda concepção do homem como dominador da alteridade e rejeita a tentação do isolamento. “A cada passo hibridante, o homem aumenta sua necessidade de alteridade, e não o seu domínio sobre a alteridade: esta consciência deve ser uma admoestação para o homem do século XXI, a fim de evitar perigosas negligências no confronto com a realidade externa, que o conduzam a pensar como uma ilha totalmente auto-suficiente” (Marchesini).

IHU On-Line - Que vias estamos seguindo para novos modelos de existência?

Claudio Tugnoli -
Na Itália, a zooantropologia obteve notáveis progressos também no plano teórico, principalmente por mérito de Roberto Marchesini. A zooantropologia teórica procurou esclarecer o profundo significado da relação homem/animal, que não se pode reduzir a mero desfrutamento. A extrema variedade das espécies vivas no plano morfofuncional, etológico e zôo-semiótico consegue, sim, que o animal assuma uma função formativa absolutamente primária para educar ao reconhecimento e à aceitação da alteridade, para potenciar e afinar a capacidade de compreensão, nos seres humanos, da linguagem dos animais. A zooantropologia aplicada tem como objetivo de intervenção, não o homem ou o animal tomados em si mesmos, mas a dupla homem-animal, com o fim de utilizar todos os recursos desta parceria que, costumeiramente, são ignoradas ou sacrificadas na relação inter-humana. Desfrutando dos nexos emocionais e cognitivos que coligam o ser humano às outras espécies, a zooantropologia aplicada solicita as valências formativas, didáticas e terapêuticas da interação interespecífica. No plano formativo, verificou-se que a interação com o animal aumenta o vocabulário imaginativo, facilita a familiarização com a diversidade, encoraja a comunicação, aumenta o grau de auto-estima.

Centro de interesses

No plano didático, o animal é um centro de interesses insubstituível, que permite experiências cognitivo-lúdicas, conectando os diversos ambientes (escola e casa), facilita o conhecimento de si mesmo e da própria corporeidade, desenvolve empatia cognitiva e estimula o interesse pela realidade. Esta valência é muito útil na recuperação de sujeitos em dificuldades de várias espécies. Um aspecto educativo sublinhado pela zooantropologia consiste em que a criança é educada a cuidar do animal como ser indefeso que dela necessita. Resulta daqui o estímulo à colaboração com os outros e à planificação em vista de um fim, de onde resulta, também, a compreensão das necessidades de medidas de proteção e de salvaguarda do ecossistema.

IHU On-Line - Quais são os riscos trazidos pelas tecnociências para a humanidade? Ela está ameaçada? Quais são os riscos para as outras espécies vivas?

Claudio Tugnoli
- As tecnociências podem representar uma oportunidade somente se a pesquisa estudar a fundo os mecanismos que mantêm o equilíbrio entre as várias espécies, para favorecer, não a diminuição, se possível, mas o aumento da biodiversidade. É possível imaginar que o homem, depois de haver aprendido a hibridar-se com os modelos das várias espécies animais, esteja ampliando a esfera de hibridação também com as máquinas. Não há nada de estranho ou de horrível em tudo isso, desde o momento em que o homem, por sua natureza, é sempre dependente do ambiente. O horror humanístico suscitado pelo projeto de máquinas também mais inteligentes que o homem funda-se na convicção de que existe uma diferença objetiva, uma linha de nítida separação entre o natural e o artificial. Adão, no fundo, foi apenas o primeiro andróide ou humanóide, feito à imagem e semelhança do Criador. O homem é por definição um animal capaz de imitações. As máquinas, como os animais, são e serão as suas próteses, os seus mediadores epistêmicos e culturais em geral. Se os outros entes vivos desaparecessem, seria uma catástrofe para o homem, a partir do momento em que o animal, não obstante o comportamento exigente do velho humanismo, permanece como o carburante cultural do desenvolvimento cultural do homem. A idéia fundamental do pós-humanismo, empenhado numa compreensão profunda da realidade humana, é precisamente a concepção da interdependência entre o homem e o animal, no qual o homem e o animal se hospedam um ao outro.

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