Edição 416 | 29 Abril 2013

A ciência em ação de Bruno Latour

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Ricardo Machado

A antropóloga e pesquisadora Leticia de Luna Freire fará palestra na Unisinos na quinta-feira, 02, integrando o I Seminário do XIV Simpósio Internacional IHU

“Latour não está interessado na Ciência com ‘C’ maiúsculo, que seria a ciência pronta e acabada, mas na ciência com ‘c’ minúsculo, ou seja, na ciência em construção”, explica Leticia de Luna Freire em entrevista por e-mail à IHU On-Line. A palestra da professora Leticia, que ocorre na quinta-feira, às 19h30, na Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, no IHU, integra o ciclo de debates que antecede ao XIV Simpósio Internacional IHU – Revoluções Tecnocientíficas, Culturas, Indivíduos e Sociedades.

Leticia de Luna Freire é antropóloga, pesquisadora do Laboratório de Etnografia Metropolitana – LeMetro/IFCS-UFRJ, do Instituto Nacional de Estudos em Administração Institucional de Conflitos – InEAC-UFF e do Grupo de Pesquisa Entre-Redes – UERJ. Além disso, é pós-doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal Fluminense – PPGA-UFF.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – O que é ciência em Bruno Latour ?

Leticia de Luna Freire – Como coloca claramente, sobretudo no livro A ciência em ação (São Paulo: UNESP, 2000. 438 páginas) Latour não está interessado na Ciência com “C” maiúsculo, que seria a ciência pronta e acabada, mas na ciência com “c” minúsculo, ou seja, na ciência em construção. Sua proposta é investigar como se dá, na prática, o processo de construção dos fatos científicos, em seus mínimos detalhes, em cada gesto dos cientistas, dentro e fora dos seus laboratórios, com o mesmo estranhamento e observação dedicada com que os antropólogos estudavam os chamados povos “selvagens”. Com sua “antropologia das ciências”, Latour busca estudar a produção de verdade nas sociedades contemporâneas, e a ciência, ao lado de outras esferas como o direito, por exemplo, é, nesse sentido, crucial. Afinal, quem hoje questiona o formato de dupla hélice do DNA, a eficácia da penicilina, a existência da camada de ozônio ou mesmo a existência do inconsciente?

IHU On-Line – Os trabalhos de Bruno Latour buscam compreender as ciências como consequência da sociedade e vice-versa. Como explicar o trabalho do autor e da pesquisa nesse sentido?

Leticia de Luna Freire – Diante do que foi dito cima, Latour vai se interessar justamente pelas controvérsias e disputas que ocorreram antes desses enunciados científicos se legitimarem como “fatos”, tornando-se, para nós, inquestionáveis, pelo menos até que um novo argumento surja colocando-os novamente em xeque. Utilizando uma metáfora do próprio Latour, esta é uma abordagem que se volta para os objetos enquanto eles ainda estão “quentes”, cabendo ao pesquisador seguir os atores em ação, sejam eles cientistas, políticos, moléculas, vegetais ou qualquer outra coisa que produza efeito, diferença. Parte-se do princípio de que há uma permeabilidade entre o lado de “dentro” e o lado de “fora” do laboratório, ou seja, que há uma relação direta entre o que um cientista faz em seus experimentos e o que ele faz politicamente, atuando junto às agências de fomento à pesquisa, às instituições acadêmicas, às instâncias reguladoras governamentais, etc., e todo esse coletivo faz parte da ciência, que passa a ser aqui entendida como uma rede de atores. O que o pesquisador buscaria alcançar, ao final, não é uma interpretação, enquadrando tudo numa moldura teórica ou aludindo a um “contexto social”, como fazem os velhos estudos de sociologia das ciências, mas sim uma descrição – a mais digna possível – das associações produzidas empiricamente. Do ponto de vista metodológico, esta seria a única maneira de compreender a realidade dos estudos científicos, já que a ciência é fundada sobre uma prática, e não sobre ideias. A esse projeto, Latour, junto com outros pesquisadores, deu o nome de Teoria do Ator-Rede, cuja sigla em inglês (ANT – Actor-Network Theory) alude à palavra “formiga”, evocando o trabalho longo, detalhista e de farejador de trilhas de quem se engaja nessa tarefa. 

IHU On-Line – Quem é o cientista nas obras de Latour?

Leticia de Luna Freire – Na leitura que faço dos seus trabalhos, o cientista seria nada mais que um ator entre outros, produto de uma associação híbrida de elementos. Na análise que Latour faz das controvérsias em torno das “descobertas” de Louis Pasteur  no século XIX, ele mostra como o sucesso do cientista não foi fruto de suas ações solitariamente, mas da combinação de seu talento com forças que incluíam desde o movimento higienista aos interesses coloniais, passando pela disputa com outros cientistas que também estudavam a relação entre doenças e micróbios. Nessa concepção de que os homens nunca efetuam sozinhos suas ações, Latour nos faz ainda questionar se foi mesmo Pasteur que produziu o ácido láctico ou se foi o ácido láctico que produziu Pasteur como esse grande cientista que hoje reconhecemos! Assim como o objeto de sua “descoberta”, o cientista também seria efeito de uma associação de elementos heterogêneos, humanos e não humanos, produzida sob determinadas condições.

IHU On-Line – Quando Latour menciona que os estudos sobre as ciências deveriam partir desde antes das caixas-pretas terem sido fechadas, o que ele está colocando em debate?

Leticia de Luna Freire – Ele está colocando justamente o que seria o objetivo de sua proposta de estudo da ciência, ou seja, da prática científica em vias de se fazer. Latour fala de objetos “quentes” e “frios” para se referir, respectivamente, àqueles que ainda são alvo de controvérsias, e àqueles cujo debate já se estabilizou (ou esfriou), com uma versão tida como vencedora sobre as demais. Como exemplo do primeiro tipo, podemos citar, a respeito de várias sociedades, a questão do aborto ou do casamento homossexual, alvo de intensos debates em diversas instâncias (medicina, direito, religião, etc.). Como exemplo do segundo tipo, podemos citar os efeitos nocivos da ingestão de álcool sobre a direção de um veículo, reconhecidos pela medicina e regulados pelo direito através, dentre outros, do que aqui chamamos de Lei Seca, ou, ainda, no âmbito mais geral da sociologia como ciência, a vitória da perspectiva de Émile Durkheim sobre a de Gabriel Tarde . Em sua abordagem, Latour está mais interessado nos objetos do primeiro tipo, dando um tratamento simétrico tanto para os que se tornarão vencedores quanto para os que se tornarão vencidos na história da ciência; tanto para o enunciado que vingará como “verdade” quanto para aquele que passará a figurar, de modo negativo, como “crendice”. Ele toma de empréstimo o termo “caixa-preta” da cibernética justamente para designar aquilo que, a despeito de toda a complexidade e controvérsia que o constituiu, se estabilizou como verdadeiro e indubitável. É isso que acontece quando nos referimos ao buraco na camada de ozônio decorrente da poluição de determinados gases ou quando nos referimos às influências do social sobre o comportamento de uma criança, parecendo existir um entendimento consensual sobre o que se diz, ainda que ninguém possa ver e apontar propriamente o “buraco” ou o “social”. Latour, por sua vez, quer estudar o processo anterior à constituição das caixas-pretas, isto é, quando as controvérsias ainda estão em aberto. Como ele diz, sua entrada no mundo da ciência não é pela entrada mais grandiosa da Ciência, mas pela porta dos fundos.

IHU On-Line – Tendo em vista a perspectiva de Latour, de que maneira se articulam as questões científicas e políticas no discurso dos pesquisadores?

Leticia de Luna Freire – Para Latour, ciência e política, assim como natureza e cultura, não estão situadas em polos opostos, mas estão em constante interação, sendo impossível pensá-las de maneira dissociada. Se tomarmos como exemplo a recente Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente, realizada no Rio de Janeiro no ano passado, veremos que o que está em jogo nas discussões, unindo especialistas e chefes de estado (cientistas e políticos), não são as florestas, a atmosfera, os oceanos enquanto “puro” objeto das ciências naturais, mas os elementos da natureza também como objetos políticos. Fenômenos como a contaminação das águas e o efeito estufa redefinem ali as relações entre ciência e política. Essa conferência da ONU seria um bom exemplo de análise daquilo que Latour denomina “política da natureza”.

IHU On-Line – Como Latour lida com a questão da autonomia do autor quando ele é utilizado como referência? 

Leticia de Luna Freire – Não me recordo de ter visto Latour preocupado diretamente com esta questão. Mas, dependendo do entendimento que se faz da noção de autonomia, e a tomo aqui como sinônimo de independência, diria, a partir de sua perspectiva, que o autor não é, de modo algum, independente. Na verdade, ele só se torna uma “referência” sobre determinado assunto ou objeto, tornando-se mais forte que outros no campo científico, quanto mais conectado estiver a outros atores, quanto mais for capaz de produzir associações. Por exemplo, um cientista que produziu determinado medicamento e visa colocá-lo no mercado só terá o necessário reconhecimento quanto mais sua experiência for citada em artigos científicos e quanto mais alianças fizer, seja com instituições acadêmicas, associações profissionais, indústria farmacêutica e grande mídia, reproduzindo e reforçando a sua autoria do feito. O mesmo ocorre com um texto científico, que ganhará mais força quanto mais for citado, debatido ou criticado. Curiosamente, como chamam a atenção os professores Iara Souza e Dário Júnior na introdução do último livro de Latour publicado no Brasil, ele está entre os dez autores mais citados na área de ciências humanas, segundo a lista divulgada pela Thompson Reuters , em 2009, o que mostra que, apesar de polêmico, Latour é um ótimo cientista.

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