Edição 200 | 16 Outubro 2006

O sonho da hibridação homem-máquina

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IHU Online

Professor de Filosofia Moral na Faculdade de Ciência da Formação na Universidade de Lecce, na Itália, Mario Signore é professor associado de Filosofia Teorética na mesma universidade. Diretor do Instituto de Filosofia de 1978 a 1980, é fundador do Departamento de Filosofia, do qual foi diretor de 1990 a 1996, dedicando uma atenção particular para as disciplinas socioeconômicas, pedagógicas, e filosófico-políticas. Faz parte do Comitê Científico da revista Fenomenologia e Società desde sua fundação. É membro da Fundação Centro de Estudos Filosóficos de Gallarate, com sede social em Padova. É vice-presidente da Sociedade Italiana de Estudos Kantianos, com sede social em Roma. É diretor de Idée, revista do Departamento de Filosofia e Ciência Social. Entre seus últimos trabalhos publicados, citamos: Questioni di etica e filosofia pratica, Milella: Lecce 1995 e Ética religiosa e racionalidade moderna (Max Weber 1864-1920), in: Deus na filosofia do século XX, Giorgio Penzo e Rosino Gibellini (organizadores). São Paulo: Loyola, 1998, pp. 105-119.

Leia, a seguir, a entrevista que Signore concedeu, por e-mail para a revista IHU On-Line, na qual ele discute o sujeito pós-humano, afirmando que “o homem do século XXI é pós-humano por esta tendência cultural que torna fascinante o sonho de uma transferência definitiva das suas responsabilidades e da fadiga do pensar a hibridação irreversível homem-máquina”.

IHU On-Line - O que o senhor quer dizer com os destinos pessoais e colonização das consciências? Quem ou o que está por trás dessa colonização?

Mario Signore
- Permitam-me responder, propondo a releitura da Carta  sobre o Humanismo (Brief über den Humanismus) (1946), em que Martin Heidegger propõe abandonar a palavra “humanismo” diante da dramática questão: por que celebrar no humanismo  o homem e a imagem filosófica e canônica que tem de si, quando na catástrofe do presente temos visto que é o próprio homem o problema com os seus sistemas de auto-exaltação e de autoclarificação metafísica? O humanismo, na sua figura antiga, tanto na cristã como na iluminística, é reconhecido como causa de um “não pensar” que dura mais de dois mil anos. Trata-se de um “fracasso” que toda a cultura ocidental registrou no recente período da pós-modernidade, abrindo para uma reflexão não-estéril, na nossa opinião, que desmascarando o segredo da domesticação da humanidade e os detentores do monopólio da criação humana, aponta para o invasivo crepúsculo de uma consciência das produções humanas e para o desenvolvimento das antropotécnicas, das quais não se consegue mais desviar o olhar.

Partindo da posição nietzcheana-heideggeriana até a afirmação de uma antropotecnologia mais invasiva, não é difícil supor aquela explícita planificação dos caracteres identitários, que poderiam alcançar a subversão desde o finalismo do nascimento num nascimento opcional (heterodireto) e numa seleção pré-natal. Tudo isso colhido na pluridirecional incidência étnica, filosófica, teológica, econômica e política requer, na nossa opinião, uma retomada não-ideológica da reflexão sobre a consciência e a identidade, talvez preferindo aproximações menos tradicionais, mas mais capazes de fazer ressurgir a aurora da consciência, não mais no rarefeito horizonte da metafísica, mas das questões do bios, da inteira extensão do vivente pensado na unidade da vida, construindo os pressupostos de uma biopolítica, que devolva à consciência da humanidade, portanto ao pensamento contemporâneo, a vontade de construir as premissas de uma opção entre políticas da morte (tanatopolíticas) e políticas da vida.

IHU On-Line - Qual será o nosso destino?

Mario Signore
- A pergunta parece pressupor um lado imprescindível e inevitável do “destino”, portanto, a admissão de um sentido atribuído ao mesmo. Se o “destino” é l’Ananche, o fato, uma força metaistórica e obscura que conduz malgré-nous as vicissitudes do homem e da sua história, certamente me sinto impedido de dar qualquer resposta. Para um filósofo da “responsabilidade” e teorizador de uma ética da responsabilidade, desde a origem inevitável que é o pensar, o destino introduz uma contradição interna ao pensamento,logo, ao agir humanos, que não permite nem mesmo gaguejar qualquer resposta plausível.
No horizonte irrenunciável da responsabilidade e da consciência do resultado derivado do homem ter comido o fruto da árvore do conhecimento (“fruto suculento, mas perturbador”, como diria Max Weber), o nosso “destino”, entendido desta vez como a realização do nosso presente e o planejamento do nosso futuro, como homens e como humanidade, será aquilo que teremos sido capazes, entre fracassos e sucessos, entre derrotas e vitórias, de construir-nos. Naturalmente, na relação mais fecunda conosco mesmos, com os outros homens, com as forças da natureza.

IHU On-Line - O que é o pós-humanismo? Podemos dizer que o homem do século XXI é pós-humano? Por quê?

Mario Signore
- Somos conscientes do fato de que o pós-humano pode assumir uma postura, freqüentemente ao anti-humano, ou seja, como definitiva despedida do humano, levando à exasperação o movimento do homem versus a máquina, com as questões ético-filosóficas que receamos na resposta à primeira pergunta, relativas à perda e conseqüente colonização das consciências, e, sob outro ponto de vista, o do desaparecimento da distância e da diferença entre a atividade das máquinas lógicas e do pensamento. Aqui o pós-humano se insere na lógica exaltada do robô, do cyborg, que contribui para pôr no horizonte do nosso século um modelo cultural sustentado pelo conceito de auto-redução dos poderes do sujeito, a favor de uma “máquina”, que não se limite a abrandar a sanção divina “dominarás a terra com o suor”, mas assuma a responsabilidade da escolha e o ônus de projetar a vida. Quanto ao que esta transferência total de responsabilidade possa produzir sobre o plano dos equilíbrios homem-máquina é, no nosso tempo, confiado à pré-figurante iniciativa da literatura e da filmografia.

O homem do século XXI é pós-humano por esta tendência cultural que torna fascinante o sonho de uma transferência definitiva das suas responsabilidades e da fadiga do pensar a hibridação irreversível homem-máquina. Mas, digamos logo, o pós-humano, no nosso século, se manifesta não somente como anti-humano, ou como despedida definitiva do humano, mas como superação/ conservação (Überwindung), capaz de acertar as contas com a crise do humano. Desenvolverei mais adiante este conceito.

IHU On-Line - Quais são os aspectos positivos e negativos do conceito de pós-humano?

Mario Signore -
Sobre os aspectos negativos já falamos na resposta anterior. Acrescentaremos que a suposição da saída do literário para a realização da superação total do homem na máquina, configura cenários aterrorizantes de solidão do humano, que honestamente parece muito difícil imaginar. Neste cenário, a ética, como assunção responsável de comportamentos ligados sempre a um certo nível de imputabilidade (quem faz, o que e por que) perderia qualquer significado. A aproximação positiva ao pós-humano é colhida no projeto de superar a pretensão humanística do humano como “universo isolado”, não somente como centro epistemológico e ético, mas como sujeito auto-referido e impermeável à contaminação externa. Trata-se, na nossa opinião, de um aspecto positivo, no qual, na verdade, trabalha-se muito neste período, que colhe no pós-humanismo a tendência à superação de algumas concepções do humanismo inadequadamente fundadas e incapazes, entre outras coisas, de interpretar a aceleração dos processos de contaminação (por outro lado irrefreáveis) provocada pelo desenvolvimento tecnológico.

IHU On-Line - Como a tecnologia ajuda na construção da identidade do sujeito contemporâneo? E como ela é aceita pelos pós-humanistas?

Mario Signore
- Como dizíamos, respondendo às perguntas anteriores, se a identidade humana pretende exaurir-se na concepção substancialmente estática do humanismo clássico (homo sum, nihil umani a me alienum puto!), não há tecnologia que possa de qualquer maneira interferir na sua construção. A tecnologia torna-se um “destino” que não deixa de parecer anti-humano: do desenvolvimento irrefreável da tecnologia, provirão cenários catastróficos para o homem e o seu habitat. Nesta direção, os pós-humanistas (não anti-humanistas) não se lançam em direção à passiva e não-crítica aceitação da tecnologia avançada, mas ousam supor modificações importantes na relação do homem com a realidade externa e imaginar pontes híbridas entre o primeiro (o homem) e a segunda (a técnica, a realidade externa), substituindo as concepções universalistas e/ ou isolacionistas lógicas conjuntas e pluralistas.

IHU On-Line - A tecnologia criou pós-humanos? Vivemos um novo conceito de humanidade?

Mario Signore
- Certamente a tecnologia, tanto entendida como “prótese” para o homem, consciente de estar num estado de inferioridade com relação aos outros seres vivos providos de um patrimônio de instintos capaz de determinar sem erros a relação com os outros seres vivos e com a natureza em geral, como entendida na sua pretensão substitutiva do humano, impôs repensar, até a exigência toda nova para o homem de imaginar-se numa posição “post”, ou seja, de auto-superação. Isso certamente contribuiu para a constituição de um novo conceito de humanidade no qual o homem se coloca como um ser transicional heteroreferido, para o qual toda consideração de pureza, perfeição, completude, não é mais pertinente em modo absoluto. O homem do pós-humanismo, assim como nós o construímos rapidamente neste confronto, é plural, não pode comedir, nem epistemologicamente (como cientista, como pesquisador), nem eticamente (sujeito de escolha e responsabilidade) somente com a amplitude da sua razão, e não pode nem mesmo compreender a si mesmo, se não entra em diálogo e não se deixa, por assim dizer, hibridar na realidade externa. Estamos empenhados em pensar nesta nova humanidade, diante dos enormes desafios das relações, com o outro homem (o estrangeiro!), com a natureza, com a técnica (que o próprio homem criou), com Deus.

IHU On-Line - Onde está a ética neste novo conceito?

Mario Signore
- A ética, ante este novo imperativo do diálogo, da relação, até mesmo do hibridismo, não se obscura, mas se transforma. Está empenhada em enfrentar novos desafios. Não mais somente aquele da consciência individual, da pureza da auto-referência, da tranqüilidade da consciência, da plena realização da própria convicção. A ética se faz ética da responsabilidade, capaz de olhar “além” da consciência individual, para colher os efeitos da ação, mesmo boa, naquele outro de si (outro homem, natureza, Deus), que, a essas alturas, numa lógica pós-humana lhe pertence como êxito do diferente percurso híbrido com a realidade, que a abre incessantemente para o aparecimento interrogador da alteridade. Deste ponto de vista, o pós-humano só pode pretender um novo gesto ético, que se configure na irrenunciável relação com o outro (homem, natureza, Deus).

IHU On-Line - É possível traçar, num futuro próximo, quais serão os nossos maiores desafios como seres humanos?

Mario Signore
- É sempre muito difícil tentar previsões que digam respeito ao nosso futuro como seres humanos. Certamente, é sustentável a convicção de que, tendo alcançado este ponto, os desafios que nos envolvem sejam tomados todos em perspectiva conjunta e não mais como desafios “só para o homem”. Bastaria levar em consideração os desafios lançados pelo fenômeno histórico-econômico da “globalização” para entender o quanto não se pode negligenciar a ótica  do complexus, que estimula a desconfiar das simplificações. Tudo isso significa aceitar o grande desafio que, segundo a nossa perspectiva, diz respeito à uma “nova centralização” da pessoa. Remete o homem ao centro, como ponto de partida dos condutores de responsabilidade que são orientados em direção à realidade, os desafios da defesa do planeta (desafio ecológico), da paz, da democracia, dos direitos universais do homem (desafio político) do “estrangeiro” e da “face” do outro (desafio ético), significa hoje invocar o homem “responsável” que se aproprie novamente do seu futuro e responda por ele a si mesmo e aos outros. 

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