Edição 416 | 29 Abril 2013

A contribuição da universidade na modelagem das relações de trabalho

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Graziela Wolfart e Ricardo Machado

Para Lucas Henrique da Luz, um dos coordenadores do curso de Administração da Unisinos, o espaço acadêmico não deve se voltar apenas ao desenvolvimento de tecnologias
Lucas: “Saímos de uma ideia de conhecimentos do trabalhador, dele aplicar no trabalho conhecimentos e habilidades e ingressamos numa lógica de competências, que envolve capacidade”

 

Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, Lucas Henrique da Luz considera que a universidade, antes mesmo de abordar o tema do trabalho nos cursos que oferece, “contribui para a modelagem das relações de trabalho”, sobretudo porque opera sob lógicas na qual é pensada a formação do aluno. “Ao afirmar que o ensino universitário e sua pesquisa contribuem para a construção da realidade e de seus significados, coloca-se sobre ele relevantes implicações éticas. Assim, penso que devemos cada vez mais pensar em termos de ética na pesquisa e no ensino e não o fazer de maneira normativa-instrumental, bem como evitando dissociar ciência, tecnologia e ética”, avalia o coordenador.

Lucas Henrique da Luz possui mestrado em Ciências Sociais Aplicadas pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, graduação em Administração de Empresas – Hab. Recursos Humanos pela mesma universidade e especialização em Elaboração e Avaliação de Projetos Sociais, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Atualmente, é doutorando em Administração na Unisinos. É um dos coordenadores do curso de Administração da Unisinos (ao lado de Silvia Polgati e Dagmar Sordi), e professor nesse mesmo curso e no de Graduação Tecnológica em Gestão de Recursos Humanos. É integrante do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

Confira entrevista.

IHU On-Line – Como avalia que o ensino universitário, de modo geral, aborda o tema do trabalho e suas relações em nossos dias? Quais os avanços e as lacunas, nesse sentido?

Lucas Henrique da Luz – A análise precisa ser vista de maneira mais ampla e, portanto, para além da ideia de como o ensino universitário aborda a temática do trabalho e suas relações. Se fosse responder diretamente à questão, diria que na maioria das vezes aborda-se o tema de forma um tanto reducionista, com uma ideia predominante ainda de racionalidade econômica e eficiência como principal e/ou único motor das relações de trabalho. Isso me parece um tanto perigoso. Por isso proponho uma reflexão um pouco diferente.

Ensino

O ensino universitário, antes mesmo de abordar esse tema (trabalho) em aulas, em espaços de debate, ele contribui para modelagem das relações de trabalho, seja pelos cursos que oferece seja pelas lógicas em que se pensa a formação dos alunos e os resultados e externalidades dessa formação e dos sujeitos dela. Também contribui para a modelagem exposta acima por meio de pesquisa, de desenvolvimento de tecnologias, de técnicas aplicadas ao governo da vida, das instituições em geral e dos seus sujeitos, enfim, da realidade contemporânea. Para não tornar muito abstratas essas colocações iniciais, o desenvolvimento de tecnologias de conectividade, a promoção de novas modalidades de ensino, a implementação de currículos baseados em competências, a lógica de uma formação empreendedora, os planejamentos de vida e de carreiras que são feitos com os alunos, as opções apresentadas – debatidas, etc., com certeza são (re) produtoras de relações de trabalho. E nesse momento nem se trata de avaliar se boas ou ruins, se melhores ou piores, mas constatar que isso ocorre e perceber que não são relações neutras. Como mostra Agamben  em O Reino e a Glória : a forma como as coisas são dispostas influencia no agir das pessoas, sendo uma dispositio que induz a liberdade.

Falta de pluralidade

Assim, pergunto se muitas vezes o ensino universitário não reforça quase que uma única forma de dispor as coisas, diminuindo a pluralidade de possibilidades. Jean-François Chanlat vem alertando para a falta de pluralidade de perspectivas, a necessidade de espaços de trabalho pensados, concebidos de forma mais plural. Stefano Zamagni  também demonstra preocupação com a falta de pluralidade de concepções que pode dificultar a construção de uma sociedade mais feliz. Para ele não há espaços à pluralidade de concepções e formas de agir no mercado que acaba baseado em uma única racionalidade, capaz de eliminar bens relacionais e reciprocidade, gerando uma sociedade com um futuro provavelmente comprometido e certamente sem condições de satisfazer à demanda de felicidade de seus membros. Assim, em termos de ensino universitário e suas influências no mundo do trabalho, nas relações de trabalho, cabe a reflexão sobre se o espaço universitário mostra aos seus interlocutores, à sua comunidade acadêmica, essa pluralidade de possibilidades ou se reforça uma das possibilidades como o caminho a ser trilhado e seguido, como a liturgia a ser proferida e seguida.

O mesmo autor (Zamagni) ao falar da identidade e missão da universidade católica na atualidade , coloca que elas devem ter seu genoma fundamentado em três elementos: geratividade, reciprocidade e o dom como gratuidade. Penso que esses elementos devem servir de análise de como se está construindo o meio universitário, até no que diz respeito ao trabalho, fomentando reflexões e análises sobre as contribuições deste à geração de novos conhecimentos na busca de verdades (geratividade), ao fortalecimento da ideia de comunidade que pode contribuir para devolver a relevância da reciprocidade e do dom nesse espaço e, consequentemente, recolocá-los como importantes na economia e nas relações de trabalho. O contrário disso pode tornar o espaço universitário como locus de competição e de compra de insumos que o estudante revenderá ao mercado para obter um bom emprego, como mostra Zamagni.

Construção da realidade

Analisando ainda de outra perspectiva, ao afirmar que o ensino universitário e sua pesquisa contribuem para a construção da realidade e de seus significados, colocam-se sobre ele relevantes implicações éticas. Assim, penso que devemos cada vez mais pensar em termos de ética na pesquisa e no ensino e não o fazer de maneira normativa-instrumental, bem como evitando dissociar ciência, tecnologia e ética. Como mostra Vázquez (2008, p. 26), em uma época em que história, antropologia, psicologia e ciências sociais proporcionam relevantes materiais para o estudo do fato moral, não se justifica mais a existência de uma ética puramente filosófica, especulativa ou dedutiva, divorciada da ciência e da própria realidade humana moral. Em um artigo que estou elaborando, proponho refletirmos sobre ética no ensino e na pesquisa a partir de algumas “categorias”, baseadas em Souza (2007), quais sejam: ética em seu lugar de realização, o que Souza (2007) denomina de ética e ecologia; entendendo que elas estão imbricadas, pois a primeira é que permite ao sujeito pensar e agir a partir de seu lugar no mundo, numa pluralidade de possibilidades e percebendo os reflexos delas, em consonância com a ideia de ecologia da ação de Morin (2000); na continuidade dessa categoria, devemos pensar ética e alteridade, ou seja, influências do que fazemos na busca, na tentativa das relações, do viver juntos, entendendo as atividades de ensino e pesquisa, da comunidade acadêmica na sua relação com o outro, com o viver em comum, com o fazer em sociedade; também a categoria ética e racionalidade, ou seja, o conjunto de relações da ética com o cotidiano mundano do ensino e das pesquisas – que racionalidades são construídas e o que dá base a elas, aos seus resultados e processos. Teriam ainda outras categorias, mas penso que essas já demarcam a necessidade de uma constante reflexão sobre como nossas práticas de ensino e pesquisa modelam as relações de trabalho e o que se (re) produz com isso. Então, parece-me que pensar avanços e lacunas não deve ser algo pontual, mas sim deve ser avaliado nessa perspectiva mais de fundo, do sentido que ser e fazer universidade (ensino, pesquisa e extensão) assume cotidianamente e, aí sim, seus reflexos no mundo do trabalho.

Avanços

Por fim, os avanços localizam-se mais na esfera de ambientes de trabalho menos violentos em termos de questões físicas, de melhorias nos níveis educacionais dos trabalhadores, de tímidas melhorias de rendas e diminuição de falta de trabalho no Brasil. Porém, é difícil falar de avanços quando temos quase que semanalmente denúncias de trabalho escravo e países com altíssimos índices de desempregados, independentemente de serem países ricos ou pobres no quesito econômico-financeiro. Enquanto lacunas, penso ser necessário discutir mais fortemente a financeirização das relações de trabalho; a diversidade dos trabalhadores, analisando-os enquanto multidão; potencialidades e problemas das relações entre tecnociência e trabalho; a relação entre trabalho e saúde mental, entre outros exemplos, bem como aproximar os estudos de diferentes áreas sobre trabalho, imbricá-los fazendo novas conexões, para poder sair das mesmas análises que se repetem ao longo do tempo. Porém, volto a enfatizar que a reflexão de fundo, proposta acima, me parece mais pertinente que partir para aspectos pontuais.

IHU On-Line – Como o filme Inside Job pode ser analisado do ponto de vista da crise financeira e seus impactos no mundo do trabalho? 

Lucas Henrique da Luz – A análise de Agamben da genealogia da economia e do governo, apresentada em pelo menos duas oportunidades pelo professor Castor Ruiz na revista IHU On-Line, é também uma boa base para análise do filme, da crise e dos impactos no mundo do trabalho. A partir das ideias de Agamben, algumas instituições como o mercado estão sacralizadas atualmente. Uma instituição sacralizada acaba retirando das pessoas sua capacidade de agir, pois resulta inalcansável para as “pessoas comuns”. Somente os especialistas podem agir em relação a elas. Esses especialistas seriam os tecnocratas que assumem a função de novos sacerdotes (para mais detalhes, cf. edição n. 414 da revista IHU On-Line – artigo professor Castor Bartolomé Ruiz – confira em http://bit.ly/15oqZK7). Porém, essas instituições interferem na vida das pessoas. E o filme mostra também isso, um conjunto de especialistas (desde pesquisadores acadêmicos até operadores de títulos de prime e subprime e os avaliadores das agências de risco, passando por políticos) que acaba montando toda uma engenharia financeira que as pessoas não entendem, não alcançam, mas a têm como solução para seus problemas de moradia, como relevantes a geração de postos de trabalho ao movimentar a economia, como paradigma de desenvolvimento. 

Adoração

É uma adoração que deve ser feita a esse mercado sagrado, financeirizado que, no momento em que alguns fiéis percebem e resolvem “duvidar” da sua divindade, desconfiar da maquinaria de governo criada, acaba mostrando sua insustentabilidade e vindo a entrar em colapso, desacelerando a economia mundial e retirando postos de trabalho em todo o mundo. Claro que os especialistas, os sacerdotes desse mercado, continuam com seus trabalhos e com suas desculpas especializadas, ganhando altos bônus remuneratórios e a catequizar investidores e trabalhadores no mundo todo. Então, para além de outras análises que já fiz do filme (cf. análise feita na revista IHU On-Line n. 391, disponível em http://bit.ly/IH8KEX), creio que é importante ressaltar esses aspectos, que mostram a financeirização não somente da economia, mas de diferentes dimensões da vida das pessoas, incluindo o trabalho, e, assim como a vida das pessoas, que dependem dessas engenharias financeiras. 

Como a financeirização é volátil, incerta, especulativa e não necessariamente produtiva, ela acaba mostrando o esgotamento do modelo atual de desenvolvimento, de economia, de trabalho – financeirizados e secularizados, bem como os conflitos de interesses que nele existem e a lógica unitária, de uma só direção a seguir, que resultou em crises enormes do mundo do trabalho. Parece incrível, mas a promessa da modernidade de um trabalho mais realizador e emancipatório travestiu-se de eficientismo sacralizado e colocou todos a correr, não sabendo bem para onde, como apontou Sennett (2006) e, sob o governo da “providência” do mercado, cujos efeitos colaterais podem ser violentos – como mostra o filme, principalmente para os trabalhadores, para aqueles que não são sacerdotes dessa providência.

IHU On-Line – Em que medida o mundo do trabalho atualmente desvela um modelo econômico e social esgotado? Que tipo de “nova economia” poderia ser pensada para vislumbrar alternativas à crise do trabalho/emprego? 

Lucas Henrique da Luz – Creio que o modelo que está esgotado não seja econômico apenas, mas sim um modelo de sociedade. Esse esgotamento olhado a partir do mundo do trabalho revela-se em questões como o adoecimento dos trabalhadores; a falta de tempo constante (é importante para as pessoas poderem pronunciar, a cada momento, que estão com muitas coisas a fazer, para aprender, para buscar – já pensou alguém dizer hoje que está ocioso? – isso seria profanar o sistema, a lógica do modelo atual). A combinação das tecnologias, que aceleraram brutalmente o ritmo de trabalho, com a financeirização das suas relações, só poderia resultar em espaços de trabalho bastante instáveis, com falta de vínculo, de memória, de trajetória, superficiais, que não podem ser sustentáveis. Como bem escreveu Enéas Costa de Souza , há uma “insustentável leveza do capital financeiro” e é ela que está na base das relações de trabalho hoje, no bojo do modelo econômico e social.

Outra coisa que parece revelar o esgotamento do modelo via trabalho é que, por mais que se tenha aumentado a produção material e imaterial, não se alcançou um paradigma sustentável e de maior justiça social; pelo contrário, nosso modelo é ambiental e socialmente insustentável. Destruímos a natureza e aumentamos diferenças entre os mais ricos e os mais pobres – concentramos riqueza e, mesmo os trabalhadores com altas faixas de renda, em sua maioria, revelam-se não felizes, não realizados, segundo pesquisas feitas com executivos, por exemplo.

Contexto

Apontar possibilidades na complexidade do contexto atual, de crise epocal, é algo sempre muito difícil. Podemos pensar na perspectiva de economia solidária, da economia de comunhão, nos movimentos ligados ao slow – penso que são tentativas. Porém, alguma possibilidade de superação desse esgotamento passa obrigatoriamente pela necessidade de reinventarmos usos para uma série de coisas, como as tecnologias da comunicação e informação, utilizando-as para celebração, para ócio, para devolver ao centro da economia e do nosso modelo de sociedade a vida em suas diferentes formas. O papel da universidade como potencializadora de um pensamento que pensa e não somente de um pensamento que calcula – como definiu Zamagni – parece ser fundamental para que entendamos melhor as técnicas que governam, os espaços de trabalho e assim iluminar caminhos e alternativas.

IHU On-Line – Em que sentido o contexto cultural na pós-modernidade, na sociedade capitalista, contribui para as metamorfoses no mundo do trabalho?

Lucas Henrique da Luz – Aqui ter-se-ia que discutir se o termo pós-modernidade é o mais adequado, pois também usam-se termos como hipermodernidade (Lipovetsky), modernidade líquida (Bauman), modernidade tardia (Giddens), dentre outros e se ela representa principalmente continuidade (Habermas) ou superação (Lyotard, Levinas) em relação à modernidade. Porém, para o propósito do questionamento, isso não é o essencial e tomarei o termo pós-modernidade. Nela emergiu ou vem emergindo um contexto cultural que reforça os paradigmas atuais de trabalho e é reforçada por eles, num movimento de retroalimentação. Reforça o individualismo, a perspectiva de perceber o outro como objeto, assim como um hiperconsumo e a preocupação com o curto prazo. Ela coloca uma cultura de identidades em curso, construídas em processos transitórios, fugazes, temporais, de constante negociação (Santos, 2001), gerando uma certa descontextualização da (s) identidade (s). Assim, forja uma cultura que rompe com as narrativas de espaço e tempo, forjando uma cultura do efêmero; que valoriza talento numa perspectiva de utilidade, onde a “vida útil” de quase tudo e todos tende a ser cada vez mais curta, onde a tecnologia e a ciência invalidam e criam/renovam capacitações e competências a cada momento; que incentiva e/ou pede a não vinculação, a superficialidade onde o relevante é a experimentação e a constante reformulação de “vínculos”. Então, como sintetizou Sennett (2006), o contexto cultural pós-moderno é um contexto da efemeridade, fragilidade e superficialidade dos vínculos com tudo e todos, das transações e não relações, da fragmentação do político, do econômico, do social e do seguir em frente como premissa básica.

Claro que tudo isso impacta nas relações de trabalho, de forma a torná-las instáveis, com vínculos superficiais, com valorização da dimensão imaterial fazendo com que as pessoas, os trabalhadores (que são hoje cada vez mais múltiplos em identidades) precisem estar buscando “qualificação” (novos talentos e utilidades) constantemente, preocupados com suas competências em potencial e não com o que fazem ou fizeram apenas. Eles precisam estar dispostos a abandonar trajetórias, partir para novos desafios, descontextualizar-se novamente a qualquer momento. Pegando aspectos mais macro das relações de trabalho, podemos dizer que saímos de uma ideia de conhecimentos do trabalhador, dele aplicar no trabalho conhecimentos e habilidades e ingressamos numa lógica de competências que envolve capacidade, ou seja, além dos conhecimentos e habilidades envolve comportamentos, ocupa-se do conjunto de experiências das pessoas, da sua cultura, enfim, das subjetividades. Então, os reflexos da cultura pós-moderna se dão nessa instabilidade, incerteza, na constante efemeridade e insegurança nas relações de trabalho, colocando o trabalho imaterial como decisivo e, podem, ao mesmo tempo, ameaçar a saúde dos trabalhadores, colocá-los em relações cada vez mais individualizadas, como, quiçá, podem gerar relações que permitam certa emancipação, seu desenvolvimento como sujeito, para que eu não seja tão pessimista. O certo é que isso modifica mecanismos de controle, técnicas de governo.

 

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