Edição 414 | 15 Abril 2013

Fluxos migratórios globais. A busca de trabalho e fuga da pobreza

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Ricardo Machado

Para a pesquisadora em comunicação Denise Cogo, os movimentos migratórios estão relacionados, entre outros fatores, a razões econômicas muito fortemente ligadas à crise de 2008

Para a pesquisadora Denise Cogo “os fatores econômicos, tais como a busca de trabalho e a fuga de situações de pobreza, são importantes impulsionadores dos fluxos migratórios globais, o que ajuda a entender porque esses fluxos têm se dirigido prioritariamente aos chamados países e regiões de maior desenvolvimento como América do Norte e Europa Ocidental, ou, ainda, o Oriente Médio e alguns países asiáticos como Japão”. A reflexão faz parte da entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line

Denise Cogo é graduada em Jornalismo Gráfico Audiovisual e em Letras Francês Português pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, especialista em Comunicação Social Estilos Jornalísticos pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS e em Educação Popular pela Unisinos. Cursou mestrado e doutorado em Ciências da Comunicação pela PUC-SP e pela Universidade de São Paulo, respectivamente. É pós-doutora pela Universidade Autônoma de Barcelona – UAB, na Espanha. É pesquisadora e professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Unisinos. 

Embora não se debruce em suas pesquisas sobre a questão do tráfico humano, Denise tem presente em seus estudos a questão da migração. Em 2011 participou – junto de outros pesquisadores brasileiros e de representantes de redes migratórias e organizações de apoio às migrações – da construção de uma proposta dirigida à elaboração do II Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, em consulta pública promovida pelo governo federal, por meio do Ministério da Justiça, da Secretaria de Direitos Humanos e da Secretaria de Políticas para Mulheres. Na última semana foi disponibilizado para download a versão online do Guia das Migrações Transnacionais e Diversidade Cultural para Comunicadores – Migrantes no Brasil (www.guiamigracoesdivcult.com), resultado de dois anos de trabalho que contou com a colaboração de colegas pesquisadores de universidades nacionais e internacionais. O livro foi editado pelo Instituto de Comunicação Autônoma de Barcelona e divulgado em acesso aberto pelo Instituto Humanitas Unisinos –IHU.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual o contexto mundial em que as migrações têm se estabelecido nas últimas décadas, tendo em conta os deslocamentos, trânsitos e acolhidas de migrantes?

Denise Cogo – As migrações transnacionais são uma experiência humana e um fenômeno sociocultural, econômico e político que conformam a história de nossas sociedades. Os movimentos e fluxos migratórios são dinâmicos e assumem especificidades em diferentes etapas e contextos históricos, podendo ser mais permanentes ou transitórios. Múltiplos fatores vêm colaborando para impulsionar fluxos e ciclos migratórios em todo o mundo tais como as guerras, os regimes ditatoriais, as crises econômicas, os desastres ambientais, as políticas de incentivo ou repressão às migrações por parte de Estados e governos. As próprias redes migratórias operam também como espaços de interação sociocomunicacional entre os migrantes, podendo colaborar para a constituição, ampliação ou reforço de determinadas rotas e movimentos de migração entre nações ou regiões. Como exemplo contemporâneo desses fluxos, podemos lembrar o papel preponderante desempenhado pelos imigrantes turcos na reconstrução da Alemanha no período pós-guerra. Outro exemplo é o da Espanha, que se constituiu por muito tempo como um país de emigração em decorrência da pobreza, desemprego e de episódios como a Guerra Civil e a ditadura franquista, que impulsionaram o exílio de espanhóis. Posteriormente, a partir do final dos anos 1990 até 2008, especialmente a partir da criação da União Europeia, a Espanha se tornou um dos principais países receptores de imigrantes no contexto europeu e internacional, passando a abrigar populações de várias nacionalidades oriundas, dentre outros, da América Latina, de países árabes, da Ásia e do próprio Leste Europeu, atraídas especialmente pelas oportunidades econômicas e de trabalho em setores como o da construção civil. Com a crise econômica desencadeada em 2008 e que vem afetando, de modo importante, os Estados Unidos e os países da Europa, a Espanha e outras nações europeias, como Portugal e Grécia, voltaram a ser países com significativa emigração ao mesmo tempo em que países da América do Sul como Brasil e Argentina vão vivenciando um crescimento dos fluxos migratórios oriundos da Europa, Estados Unidos e da América Latina. Um dos fluxos migratórios recentes e que vêm se intensificando no Brasil é o dos haitianos que começaram a chegar ao país após o terremoto que atingiu o país em 2010. Dados do Ministério do Trabalho revelam que, em 2012, cresceu em 3,5% os vistos de trabalho concedido a estrangeiros no Brasil, números que não incluem imigrantes que não dispõem de autorizações ou vistos de trabalho e aqueles que não conseguiram a regularização jurídica no país.

Novo cenário

Nesse novo cenário de crise global, devemos levar em conta o retorno significativo de imigrantes sul-americanos, dentre os quais se situam brasileiros que compõem contingentes de imigrantes de retorno de países como Portugal, Estados Unidos e Japão, contextos que se transformaram nos principais destinos da migração brasileira no exterior. Por conta desse crescimento da imigração para o Brasil e do retorno de brasileiros, o governo, os movimentos migratórios e organizações de apoio às migrações passaram a discutir a necessidade de definição de políticas migratórias que atendam às necessidades de inserção desses novos fluxos que chegam ao país uma vez que a imigração é regida, ainda, pelo Estatuto do Estrangeiro criado na época da ditadura.

Vale lembrar ainda que fatores econômicos, tais como a busca de trabalho e a fuga de situações de pobreza, são importantes impulsionadores dos fluxos migratórios globais, o que ajuda a entender porque esses fluxos têm se dirigido prioritariamente aos chamados países e regiões de maior desenvolvimento como América do Norte e Europa Ocidental, ou, ainda, o Oriente Médio e alguns países asiáticos como Japão.

IHU On-Line – De que maneira podem ser explicadas as relações entre o aumento da intensidade da migração internacional clandestina e a sociedade de consumo?

Denise Cogo – A produção e circulação de informação, assim como a confiabilidade atribuída a tais informações, é uma das dinâmicas presentes historicamente na trajetória dos migrantes e as redes migratórias transnacionais. As interações comunicacionais interpessoais foram e são imprescindíveis para a circulação e intercâmbio dessas informações no interior dos grupos de referência dos migrantes. O pesquisador Oswaldo Truzzi  observa que, nas migrações do final do século XIX, os contatos pessoais assumiam maior importância do que as informações não pessoais como fontes de informação para aqueles que desejavam migrar. Segundo o autor, a pessoa ou família que pensava em migrar tendia a confiar mais nas informações fornecidas, ao vivo ou por carta, por um parente, vizinho ou amigo, por exemplo, que nos folhetos de propaganda distribuídos por um agente recrutador, cujos lucros dependiam apenas do número de indivíduos que conseguisse colocar a bordo de um vapor. 

Nas últimas décadas, esse cenário se reconfigura com a intensa presença e consumo das tecnologias da comunicação – como a internet e o telefone celular –, que vêm colaborando para um reordenamento territorial das experiências dos migrantes em âmbito local e global e nas experiências do transnacionalismo migrante e das redes migratórias. Como assinala o pesquisador Alejandro Portes, embora existam, na história das migrações, exemplos de transnacionalismo, o fenômeno recebeu um forte impulso com o advento das tecnologias na área dos transportes e das telecomunicações, que vieram facilitar enormemente a comunicação rápida das fronteiras nacionais e a grandes distâncias. Pesquisador do tema das migrações, Rogerio Haesbaert  situa igualmente na maior velocidade dos meios de transporte e no acesso às tecnologias da comunicação os fatores primordiais que impulsionaram experiências de multiterritorialização relacionadas preponderantemente aos movimentos migratórios e, que, de certa forma reconfiguraram, ao longo do século XX, a dinâmica socioespacial e geográfica contemporânea, possibilitando aos migrantes a vivência concomitante de pertencimento a distintos territórios.

Sociedade de consumo

Sem dúvida, no contexto da sociedade de consumo, eu preferiria falar de sociedade da informação, a facilidade de contato e interação, através das tecnologias da comunicação, com um intenso e acelerado fluxo de imagens, representações e imaginários sobre modos de vida de diferentes culturas, sobre os cenários e conjunturas políticas e econômicas de nações e regiões, fatores que podem motivar o desejo de migrar, favorecer o conhecimento sobre possíveis lugares de migração, contatar com migrantes e redes migratórias etc. Pesquisas acadêmicas e reflexões geradas no contexto de pastorais e organizações de atendimento às migrações já começam a evidenciar que, nos fluxos recentes de imigrantes haitianos para o Brasil, não se pode desprezar a força de imagens do nosso país como “potência econômica”, das oportunidades de trabalho possibilitadas pelos grandes eventos como a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos. Isso se evidencia em expectativas expressas por imigrantes haitianos sobre o Brasil como destino migratório, ainda que essas expectativas não se cumpram necessariamente. Expectativas que podem estar relacionadas ao consumo das tecnologias midiáticas por parte desses imigrantes que possibilitam interações com o Brasil previamente à emigração, ou às interações cotidianas da população haitiana com brasileiros integrantes da Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti (Minustah). Evidentemente que isso não nos leva a desconsiderar outros fatores que colaboram nesses processos migratórios como a necessidade de emigrar desencadeada pela situação de precariedade vivenciada pelos haitianos, agravada com o terremoto que assolou o país em 2010 ou, ainda, o contato com redes migratórias de outros haitianos já estabelecidos no Brasil assim como a ação das máfias de migrante que atuam para que essa migração se concretize.

Portanto, essa relação entre impulso à migração e sociedade de consumo ou sociedade da informação não pode ser vista de modo causal, uma vez que os migrantes, embora condicionados por diferentes estruturas e fatores – econômicos, políticos, sociais e culturais –, são também sujeitos de suas próprias histórias migratórias e atuam, com o capital material e simbólico de que dispõem, de modo ativo na constituição de seus próprios processos migratórios nos quais concorrem a mediação ou não desses imaginários sobre os lugares de emigração. As motivações para migrar são frequentemente multifatoriais. Múltiplas variáveis e com pesos distintos concorrem na decisão e implementação dos processos migratórios. A questão da clandestinidade é uma dessas variáveis que assume várias dimensões, derivando seja das políticas e leis migratórias mais ou menos restritivas, seja da presença de máfias que sustentam a migração clandestina, ou ainda do interesse de empresários e governos em manter a mão de obra de menor custo de imigrantes etc.

IHU On-Line – Qual a importância de um debate mais amplo sobre a questão das migrações nos produtos midiáticos?

Denise Cogo – Se, na análise das relações entre mídias e migrações, adotarmos o entendimento proposto por Bakhtin  da linguagem como matéria social e dialógica, expressão simbólica ou representativa dos conceitos, preconceitos e valores, que resulta senão da convivência e embates coletivos entre os sujeitos situados social e historicamente, poderemos entender que tanto as migrações (como experiência humana e fenômeno social) quanto os meios de comunicação (como espaços simbólicos de construção, visibilidade e circulação de ideias e imagens) não são fatos dados, mas produtos da ação humana que se constituem na linguagem através de espaços de interação verbal ocupadas por diferentes sujeitos. As categorias e conceitos, como as próprias noções relacionadas com as migrações, que resultam das disputas e relações de poder que envolvem desses diferentes sujeitos ocupantes destes espaços de interação, não são portanto apenas descritivos, mas também constitutivos e explicativos da realidade social.

Imigração qualificada

Com base nesse entendimento, pesquisas acadêmicas realizadas em diferentes contextos nacionais têm se ocupado, já há alguns anos, em refletir sobre a crescente presença de representações midiáticas criminalizadoras das migrações contemporâneas através da frequente associação dos migrantes a “problemas, ameaças e conflitos” ou, ainda, a “ilegalidade”. Tais representações têm contribuído para fixar sentidos e compor um tipo de memória sobre as migrações transnacionais que não favorece o entendimento da alteridade migratória e nem colabora para as relações interculturais e processos de cidadania das migrações. No caso do Brasil, com o crescimento da imigração internacional para o país, mais recentemente podemos observar também que a mídia vem atuando na construção do conceito de “imigração qualificada” ou de “mão de obra qualificada,” para fazer referência a imigrantes portadores de níveis diferenciados de escolaridade e especialização profissional, assim como de padrões de desenvolvimento econômico e social das nações das quais procedem – especialmente as europeias -, os quais estariam preparados para ocupar postos de trabalhos carentes de mão de obra no Brasil. Na construção da noção de “imigração qualificada”, a mídia não deixa, assim, de atualizar sentidos em torno dessa memória sobre um “ser europeu” ou uma “europeidade” a partir da construção da qualificação da nova imigração procedente da Europa em contraponto a não qualificação e, às vezes, conflitividade em que aparecem enquadrados os imigrantes oriundos de outros contextos, como América Latina e África, alguns dos quais já presentes no Brasil anteriormente a esse novo fluxo migratório europeu. Claro que, nesse processo, a mídia não está sozinha, mas outras instituições, como as governamentais, desempenham um papel importante nessa construção.

Disputas de hegemonia

Precisamos entender que essas tendências de criminalização das migrações disputam hegemonia com outras narrativas sobre as migrações que são construídas e circulam em diferentes contextos. Em primeiro lugar, porque o universo das mídias é homogêneo. Em segundo lugar, porque no atual cenário da chamada sociedade em rede as disputas narrativas sobre fenômenos e experiências sociais, tais como as migrações, são favorecidas pelo próprio advento das mídias digitais como internet e de suas características como a hipertextualidade, a multimidialidade, a interatividade que possibilitam processos transmidiáticos e transnarrativos que vão compor fluxos do que alguns pesquisadores vêm chamando de “conversações públicas” em torno do tema das migrações, contribuindo para pluralizar os imaginários e memórias sobre as migrações contemporâneas e inserir, na agenda pública, demandas relacionadas aos direitos humanos dos migrantes. Nesse contexto, os próprios migrantes, suas redes, associações e as organizações de apoio às migrações vêm fazendo amplo uso das mídias digitais e impressas – seja produzindo meios de comunicação próprios e se aproveitando de espaços como a das redes sociais, conforme pudemos ver em nossa última pesquisa em que estudamos dez experiências de produção midiática de imigrantes latino-americanos nas cidades de Porto Alegre, São Paulo, Buenos Aires, Lisboa e Barcelona. Ao usar as mídias, os imigrantes que pesquisamos buscam construir, organizar e dar visibilidade pública às suas lutas por direitos humanos e cidadania em âmbito local e global, exercitando o que denominamos de cidadania comunicativa das migrações latino-americanas. Com diferentes usos das mídias, os imigrantes promovem uma articulação identitária da diáspora latino-americana dispersa pelo mundo; atribuem visibilidade à diversidade que compõe a própria cultura latino-americana; esforçam-se por constituir um campo discursivo contra-hegemônico de construção midiática das migrações transnacionais em contraposição à criminalização das migrações e usam essas mídias para constituir estratégias de mobilização no campo das políticas migratórias nacionais e supranacionais relacionadas às demandas por cidadania universal das migrações, buscando a universalização dos direitos sociais e políticos para além do pertencimento a territórios nacionais.

Experiências

Outra experiência recente de apropriação da internet é o da Plataforma “No nos vamos nos echan” (www.nonosvamosnosechan.net), criada e mantida por jovens espanhóis e que vem se capilarizando por vários espaços da internet como um esforço de articulação à diáspora espanhola juvenil, dentro e fora do espaço da internet, em torno do debate, denúncia e busca de alternativas acerca do que esses jovens denominam de exílio forçado da juventude espanhola que decorre da crise econômica vivida pela Espanha. No último dia 9 de abril, o grupo convocou uma manifestação pública em capitais de países para onde emigraram jovens espanhóis (Paris, Bruxelas, Buenos Aires, etc.) utilizando redes sociais como Facebook, Twitter, YouTube, etc. Em seu site o grupo disponibiliza um mapa interativo onde os jovens imigrantes podem propor breves relatos sobre sua condição de imigrantes e de precariedade juvenil através do preenchimento de um formulário que inclui, dentre outros, dados como nome, idade, em que país vive, situação laboral, profissão, história de precariedade, condição de migração forçada, desejo de retorno, etc. Interessante que aqui poderíamos falar de jovens que lutam pelo direito à não migração ou pelo menos pela construção de um espaço de autonomia juvenil que possibilite vivenciar a imigração como um desejo ou projeto.

Na perspectiva de colaborar para o deslocamento da dimensão criminalizadora que vem pautando a cobertura das migrações contemporâneas e contribuir com subsídios para comunicadores e jornalistas que atuam na cobertura da realidade das migrações transnacionais em crescimento no Brasil, lançamos recentemente o Guia das migrações transnacionais e diversidade cultural para comunicadores – migrantes no Brasil, que está disponível em versão online para download gratuito (www.guiamigracoesdivcult.com) e em versão impressa. Este guia é produto de um trabalho de mais de dois anos que buscou dar aplicabilidade para mais de dez anos de pesquisas sobre o tema das mídias e migrações. Foi elaborado em parceria com a jornalista e pesquisadora Maria Badet, que reside em Barcelona e em colaboração com um grupo de investigadores de universidades nacionais e internacionais, sendo editado pelo Instituto de la Comunicación da Universidade Autônoma de Barcelona (www.portalcomunicacion.com) e pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

IHU On-Line – Quais dinâmicas de cidadania intercultural estão relacionadas às questões das migrações?

Denise Cogo – Primeiramente, é necessário fazer uma diferenciação entre migração como experiência humana e o caráter social e jurídico que vai assumir essa migração em uma etapa da nossa história. A figura social e jurídica do imigrante-emigrante não existiu desde sempre, mas se consolidou no contexto de criação dos Estados-nação e do nacionalismo na América e na Europa no século XX, como uma categoria definidora daquele que abandona um país para se estabelecer em outro e que se torna alvo de vigilância e controle de Estados e governos. No entanto, como experiência humana, as migrações não se desenrolaram e nem se desenrolam limitadas a esse espaço “objetivo”, de caráter institucional e soberano vinculado à ideia de nação, ou seja, as migrações se constituem também por sua dimensão humana e subjetiva de movimento e ação que implica a vivência de múltiplas territorialidades e experiências simbólicas em torno das quais o ser cidadão, para os imigrantes, não tem a ver unicamente com os direitos reconhecidos pelo Estado ou com modos de pertença a uma nacionalidade, mas com práticas sociais e culturais que vão sendo gestadas pelos próprios migrantes em seus processos cotidianos de trânsito e/ou permanências em contextos diferenciados que envolvem os lugares de origem com o de destino. As dimensões jurídicas (relacionadas à obtenção de documentação para permanência) assim como a dimensão material e econômica (relacionada a trabalho, moradia, etc.) são fundamentais para a constituição dos processos de cidadania dos migrantes, mas não esgotam o espectro das subjetividades que compõe as experiências migratórias.

Teorias da cultura

Nessa perspectiva, no marco das teorias da cultura e do multiculturalismo, a interculturalidade é um conceito útil para que nos indaguemos sobre a necessidade de os migrantes serem reconhecidos como sujeitos de direitos sociais e culturais nas múltiplas dimensões que compõem sua subjetividade, e não apenas econômica ou jurídica. Embora muitos governos e instituições tendam a enfatizar quase que exclusivamente uma dimensão economicista das migrações quando, por exemplo, restringem com leis a circulação de pessoas ou quando promovem a chamada “migração qualificada”, os migrantes, suas redes e organizações têm se empenhado em forjar espaços de diálogo que permitam a produção de um “lugar” ou uma “ética” não assimilacionista que seja capaz de fazer convergir dimensões culturais e identitárias universais e/ou particulares relacionadas tanto aos contextos de origem quanto de destino dos migrantes. Podemos dizer que a cidadania intercultural se evidencia no desejo e esforço dos migrantes de serem compreendidos como Outro em sua cultura, de gestarem espaços para a expressão de sua diversidade histórica e cultural na expectativa de que suas experiências identitárias não sejam geradoras de desigualdades de situações e oportunidades. A própria luta pela chamada cidadania universal tem servido para evidenciar o quanto os migrantes são vistos como pertencendo a outro governo e com lealdade a outra soberania.

IHU On-Line – Que pistas existem no sentido de uma abertura maior na discussão das agendas das migrações em termos midiáticos e como isso pode contribuir para o combate do tráfico humano?

Denise Cogo – Nessa proposta, levantamos um conjunto de sugestões, dentre os quais alguns abrangeram aspectos específicos sobre o papel da mídia relacionado ao tráfico de pessoas, levando em conta especialmente a proximidade dos eventos como a Copa do Mundo e as Olimpíadas. Destaco aqui esses aspectos, conforme aparecem na redação do documento enviado ao governo federal:

a) Instituir a atuação de Conselhos Consultivos com representantes do Estado e da sociedade civil que colaborem na definição de diretrizes para a produção e circulação de imagens sobre o Brasil em materiais de turismo, propaganda e divulgação a serem veiculados nos meios de comunicação impressos e digitais e em espaços públicos diversos no país e, principalmente, no exterior. A atuação do Conselho poderia contribuir para diversificar as representações do Brasil pautadas em matrizes do tropicalismo, especialmente aquelas que tendem associar o Brasil à sexualidade ou certos estereótipos étnicos e sexuais.

b) Na atuação do Conselho, sugerimos uma atenção especial para a intensificação do fluxo de imagens e discursos sobre o Brasil que deverá decorrer da realização de grandes eventos como a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016. Todavia, para além desses eventos de grande visibilidade, é necessário criar instâncias de observação e monitoramento da elaboração de imagens sobre o Brasil veiculadas fora do país – na modalidade, por exemplo, de observatórios. Tais instâncias fomentariam o debate sobre essas imagens e sua efetiva contribuição para a prevenção ao tráfico.

c) Elaborar materiais impressos e online de subsídios para jornalistas e comunicadores que atuam em organizações midiáticas e em movimentos sociais, visando à sensibilização e à orientação sobre o tratamento midiático da temática do tráfico de pessoas.

d) Criar instâncias de acompanhamento da internet (na modalidade, por exemplo, de observatórios de estudos) para o desenvolvimento de pesquisa acadêmica sobre as diversas formas de envolvimento e usos do espaço digital (sites, redes sociais, etc.) que possam servir de subsídios para orientar a formulação de políticas e ações institucionais. Entende-se que o espaço digital não deve ser controlado, mas pode ser utilizado para mobilizar ações positivas visando à sensibilização da sociedade civil e dos agentes de estado para a complexidade e desafios tanto de caracterização dos sentidos atribuídos à condição de “vítima” do tráfico quanto à diversidade de dinâmicas que envolvem o trabalho sexual.

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