Edição 412 | 18 Dezembro 2012

Niilismo. A matéria-prima das religiões do futuro

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Graziela Wolfart

Rodrigo Petronio aborda o niilismo e a transcendência no Cinema Oriental e identifica que diversos cineastas orientais partem de um pressuposto niilista para compor suas obras. “Desenham o nada em suas películas como substância última do real”, descreve
"A especificidade do cinema oriental não está em uma hipotética orientalidade ou em quaisquer outras definições substancialistas", teoriza Rodrigo Petrônio

“Nas últimas décadas, os cineastas japoneses, chineses e coreanos são aqueles que conseguiram trazer à superfície de modo impecável e, pode-se dizer, da maneira mais avassaladora e definitiva possível a relação existente entre niilismo e transcendência. Por isso, a especificidade do cinema oriental não está em uma hipotética orientalidade ou em quaisquer outras definições substancialistas. Está, ao contrário, na maneira mesma pela qual os cineastas japoneses, chineses, coreanos e sul-asiáticos conduziram o processo universal de modernização do mundo”. A reflexão é do professor Rodrigo Petronio, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Segundo sua análise, “ao aprofundar o niilismo, que é o coração do processo modernizador, esses cineastas conseguiram atingir a sua outra margem e tocar a outra face do nada: a transcendência. Entendido nesses termos, não apenas o cinema mas quase toda a arte produzida no Oriente pode fornecer iluminações preciosas sobre o futuro das religiões e sobre o próprio destino desse fundo sem fundo abissal no qual a expansão global do capitalismo nos lançou. E que talvez seja uma das maiores aventuras antropológicas da humanidade”.

Rodrigo Petronio Ribeiro é editor, escritor e professor. Formado em Letras Clássicas pela USP, é professor da Casa do Saber (unidades de São Paulo e Rio de Janeiro), da Fundação Armando Álvares Penteado – FAAP, do Museu da Imagem e do Som – MIS e da Fundação Ema Klabin. Colunista da revista Filosofia e colaborador do jornal O Estado de S. Paulo, é pesquisador associado do núcleo de pesquisa Nemes (PUC-SP), com ênfase em Cinema e Filosofia. É autor de, entre outros, História natural (Gargantua: São Paulo, 2000) e Assinatura do sol (Lisboa: Gêmeos R, 2005) e organizador dos três volumes das Obras completas do filósofo brasileiro Vicente Ferreira da Silva (São Paulo: Editora É, 2010).

Confira a entrevista.


IHU On-Line – O que caracteriza a filmografia oriental, pensando no extremo oriente (China, Japão, Coreia e Sudeste Asiático) sob o viés da relação entre cinema e fé?

Rodrigo Petronio –
A partir de sua pergunta, é importante, em primeiro lugar, definirmos o que vem a ser cinema oriental. Em geral, falar em cinema oriental é tão vago quanto falar em arte africana ou em cultura ocidental. Há infinitos orientes dentro do Oriente, assim como há infinitas manifestações africanas dentro da África e infinitas culturas no interior dessa linha divisora que convencionamos chamar de Ocidente. Por isso, buscar uma hipotética orientalidade do Oriente é um caminho que eu considero improdutivo. Além disso, não apenas no cinema, mas também na arte de modo geral há outro fator que dificulta essa demarcação: as trocas entre cineastas orientais e ocidentais não são unilaterais. Desde sempre houve vasos comunicantes entre as poéticas de ambas as metades do globo. Há muito os cinemas americano e europeu recebem influxos de cineastas orientais. A começar pelos clássicos Yasujiro Ozu , Akira Kurosawa  e Kenji Mizoguchi , primeiros a despertar a curiosidade cinéfila europeia em relação ao cinema japonês e a influenciar alguns mestres europeus e americanos. Vale lembrar, nesse sentido, Tokyo-Ga, documentário de Wim Wenders  sobre Ozu, e a presença da poética do cotidiano e da impermanência criada por Ozu nos trabalhos de Jim Jarmusch  e Hal Hartley , nos EUA. Porém, o movimento contrário também se nota, sobretudo nos traços de concepções artísticas de Orson Wells  visíveis na filmografia de Ozu. Além disso, em alguns momentos áureos do cinema japonês, como em Trono Manchado de Sangue  (1957) e O idiota  (1951), temos um diálogo direto de Kurosawa com Shakespeare  e Dostoiévski, mas assimilando essas referências à tradição filosófica, política e espiritual do Japão, o que torna difícil determinar em que região anímica de fato esses filmes se passam.

Por outro lado, em Rashōmon , de 1950, traduzido como Às portas do inferno, Kurosawa filmou o magistral conto homônimo de Akutagawa , o mais dostoievskiano dos escritores japoneses. Essa indeterminação também está presente, por exemplo, em duas maneiras de tratar a violência: a do japonês Takeshi Kitano  e a do norte-americano Quentin Tarantino . Quanto às fontes antigas comuns, há as brilhantes adaptações do modelo narrativo das tragédias gregas realizadas por Park Chan-Wook  na Trilogia da vingança, especialmente no segundo episódio, Old-boy. Por seu lado, Tsai Ming-Liang , jovem cineasta da Malásia, por causa de seus temas áridos, como explorados em O rio  (1997), começou a ficar conhecido como o Robert Bresson  de Taiwan. E assim por diante. Ou seja, isso demonstra que a permeabilidade oriente/ocidente não é, portanto, apenas direta, mas também indireta. E não se dá em uma direção, mas é mútua. Ocorre não apenas no trânsito livre e na troca recíproca dos cineastas de um polo a outro do globo, mas também nas assimilações subterrâneas e quase imperceptíveis por meio da qual todas as culturas se formam. Para pensarmos a partir de conceitos de Deleuze , essa relação oriente/ocidente se daria por capilarizações, rizomas e polinizações, não por meio da sobreposição de camadas homogêneas ou de uma relação simétrica filme a filme, cineasta a cineasta.


Oriente da alma

Por isso, quando me refiro ao cinema oriental, no sentido hermenêutico e propriamente filosófico e poético, penso na concepção de oriente da alma, desenvolvida por Avicena . Preservado do século XIII ao XVIII em tradições sufi, herméticas e teosóficas, na modernidade esse conceito de oriente da alma se secularizou em artistas como Hölderlin , Artaud , Barba. Essa hipótese da secularização do oriente da alma se encontra in nuce nos belos trabalhos do islamista Christian Jambet, em seu conceito de lógica dos orientais e na sua definição dos orientais, que não tem nenhuma relação com o Oriente geopolítico. A lógica oriental não é uma orientação empírica e espacial, mas sim uma região anímica e eterna. Embora Jambet não desenvolva essa hermenêutica contemplando a arte, tal como eu sugiro aqui, demonstra a manutenção dessa lógica oriental em diversos nomes da filosofia moderna ocidental, de Spinoza  a Heidegger . Aliás, vale lembrar que o termo Abendland (“terra do fim do dia” ou “terra do poente”), por sinal inspirado em Hölderlin, é usado por Heidegger como sinônimo de Ocidente, ou seja, este é pensado como “a terra do ocaso do ser” e como o “poente do ser”. Nesses termos, o oriente é uma cartografia da alma. Falar em oriente é falar de uma geografia anímica e de uma disposição atrativa da alma em busca de seu polo de luz. No caso do cinema, a minha hipótese é a de que a região geográfica e a anímica coincidem. E, paradoxalmente, no século XXI, o nada é o polo de luz que se oferece à nossa redenção. Como mariposas se dissipando contra a luz, os artistas são aqueles que se aniquilam alegremente contra o nada.


IHU On-Line – Como os conceitos de niilismo e transcendência aparecem no cinema oriental?

Rodrigo Petronio –
Para mim, esses dois conceitos surgem como uma forma pertinente de definir o cinema oriental sem recorrer a critérios substancialistas, como mencionei. Qual seria então a especificidade do cinema oriental? Quais seriam as suas características cinematográficas, filosóficas ou poéticas comuns? Para responder a esta pergunta, acredito que seja preciso justamente seguir uma corrente subterrânea do próprio processo universal de modernização. Ela não apenas unifica Oriente e Ocidente como, ao mesmo tempo, explicita alguns traços específicos dos orientais e que os distingue do cinema produzido na Índia, no Oriente Médio, na Europa ou na América. Essa corrente subterrânea é justamente a articulação entre dois conceitos caros à filosofia da religião: niilismo e transcendência. Nas últimas décadas, os cineastas japoneses, chineses e coreanos são aqueles que conseguiram trazer à superfície de modo impecável e, pode-se dizer, da maneira mais avassaladora e definitiva possível a relação existente entre niilismo e transcendência. Por isso, a especificidade do cinema oriental não está em uma hipotética orientalidade ou em quaisquer outras definições substancialistas. Está, ao contrário, na maneira mesma pela qual os cineastas japoneses, chineses, coreanos e sul-asiáticos conduziram o processo universal de modernização do mundo. Ao aprofundar o niilismo, que é o coração do processo modernizador, esses cineastas conseguiram atingir a sua outra margem e tocar a outra face do nada: a transcendência. Entendido nesses termos, não apenas o cinema mas quase toda a arte produzida no Oriente pode fornecer iluminações preciosas sobre o futuro das religiões e sobre o próprio destino desse fundo sem fundo abissal no qual a expansão global do capitalismo nos lançou. E que talvez seja uma das maiores aventuras antropológicas da humanidade.


IHU On-Line – A partir da concepção de que o niilismo surge como uma das “armas mais poderosas do projeto moderno” e como o “fruto mais robusto do capitalismo”, em que sentido isso aparece na arte cinematográfica oriental?

Rodrigo Petronio –
Em termos históricos, a primeira vez que se cunhou o termo niilismo foi em âmbito russo, no século XIX, mais precisamente no romance Pais e filhos  de Turgueniev . Bazárov, o naturalista ateu, espécie de precursor do homem revoltado de Camus , é um destruidor de todos os valores – um niilista. O niilismo consiste em desfazer a fundamentação de todos os valores, demonstrando sua arbitrariedade, falsidade, artificialismo. Ou seja, o niilismo é aquilo que todas as crianças hoje em dia aprendem no jardim da infância. No sentido macroestrutural, é nesse sentido que eu defino o niilismo como uma poderosa arma do projeto modernizador e como o fruto mais robusto do capitalismo. Isso se dá porque praxiologia e axiologia, produção de ações (pragma) e produção de valores (axis), não se convertem uma na outra. Porém, a questão do nada na filosofia e na espiritualidade é muito mais antiga e estabelece uma conexão profunda com o tema do ser. Há duas matrizes no pensamento metafísico: a ontologia (estudo do ser) e a meontologia (estudo do não-ser). Durante dois mil anos de metafísica, a hipótese de uma raiz meôntica da realidade, ou seja, a hipótese de que o nada seja a substância mesma do real, foi escamoteada pela metafísica aristotélica. Tampouco encontrou abrigo nos diversos sistemas de pensamento modernos. Parafraseando ironicamente Heidegger, não vivemos o esquecimento do ser, mas o esquecimento do nada. Para onde ele foi? Na modernidade, eviscerado do pensamento filosófico e expulso de todas as igrejas, o nada é o filho pródigo que retorna ao seu lar de origem: a arte. Por sua vez, o conceito de acaso, entendido como realidade formativa de toda a vida e de todo o universo, presente no pensamento evolucionário, tem sido no último século a cereja do bolo na festa universal do niilismo.


IHU On-Line – Que inspiração o cinema pode oferecer para a relação com o nada na filosofia e na espiritualidade? Como essa “ausência” estabelece uma conexão profunda com o tema do ser?

Rodrigo Petronio –
Em termos filosóficos, a articulação entre ser e nada ocorre por meio do conceito de transcendência. Mas como isso se dá? E como falar em transcendência em um pensamento radicalmente antimetafísico como o pensamento moderno de modo geral? Como nos lembra Heidegger, recorrendo à etimologia, existir é estar permanentemente ek-sistere, ou seja, fora da permanência. O homem é o único ente capaz de desvelar seu próprio ser. Mas só o faz quando consegue transcender todo modo de relação entitativo, obtendo assim um estado de excentricidade em relação a todas as estratégias de entificação do ser. Nesse sentido, transcendência não é o que nos legou a metafísica, mas sim a abertura de um ente isolado à totalidade dos entes, a saída da opacidade à transparência, do estado de isolamento à pluralidade dos mundos, abertura mundana por excelência. A própria relação do homem com o mundo é transcendente à medida mesma que escapa ao regime entitativo definidor do que venha a ser homem e mundo, ou seja, quando se constitui como um horizonte de possibilidades. Transcendência é ultrapassagem. Travessia. Essa ultrapassagem não é uma fratura da imanência rumo a um além-ser chamado Deus, nem a dedução transcendental de Kant , tampouco a superação de um fosso que separaria sujeito e objeto. Consiste em apreender a abertura originária e a condição de possibilidade mesma das categorias eu, outro, sujeito, objeto, mundo, Deus. A saída da caverna não é uma ascensão rumo ao sol das ideias, onde nos tranquilizaremos a salvo, na paz perpétua das formas, mas a abertura que nos torna ex-cêntricos a todo regime intramundano e que esboça os traços fugidios de nosso rosto nas águas impermanentes da decomposição, da temporalidade, da morte, da finitude. Em outras palavras, transcender é superar o ente rumo à iluminação do ser que desvela a totalidade das aberturas mundanas inscritas no tempo. Mais que isso, como enfatiza Heidegger, é preciso atravessar o nada para chegar ao ser.


IHU On-Line – Qual o papel de Nietzsche e Heidegger na “anatomia do niilismo na modernidade”, principalmente levando em conta o retorno do nada à esfera da arte?

Rodrigo Petronio –
Nietzsche e Heidegger são os autores que mais se destacam em suas respectivas análises do niilismo, de sua relação com a modernidade e com a própria filosofia. Quando Nietzsche pensa o niilismo, pensa-o em uma dupla articulação, uma negativa e outra positiva. Entende-o tanto como a mortificação produzida pelo pensamento metafísico que aprisionou a vida em gaiolas conceituais e em esferas suprassensíveis, mas também como uma das maiores potências de que dispomos: apenas quem olha o nada nos olhos vê a substância mesma de que é feita a vida. Apenas este pode transvalorar. Apenas este produz o atravessamento desse não-lugar chamado humano rumo ao eterno vir a ser do além do homem. Ecoando Spinoza, Nietzsche vê na capacidade de ser afetado pelo nada uma potência. Uma abertura mundana (Offenheit) e uma possibilidade de desvelamento, como dirá mais tarde Heidegger. O deslocamento de Nietzsche é antropológico: não somos nós que observamos as estrelas e o abismo dos espaços infinitos. Eles é que nos observam e aguardam para nos devorar em sua indiferença. Apenas os fracos negam esta verdade. O forte é aquele que atravessa sorrindo o sem-sentido da existência e produz o grande sim afirmativo à abjeção de estarmos vivos. Regozija-se ao estraçalhar a presa. Mas se regozija ainda mais em saber-se presa de outros predadores futuros que o estraçalharão, no ciclo infinito e afirmativo do eterno retorno de tudo. Nascem os conceitos de niilismo passivo e ativo. Heidegger parte deles, mas propõe superá-los.


O niilismo de Heidegger

Para Heidegger, todo processo do desvelar-ocludente da verdade no Ocidente é niilista. A filosofia, ao se enunciar como desocultamento do ser em esferas transcendentes, exilou-o na abóbada celeste, desenraizou-o da região pura da facticidade no qual o ser germina, esvaziou a experiência primeira da vida humana: a finitude e o ser para a morte (Sein zum Tod). O Dasein (ser-aí) não é uma consciência, nem um sujeito, nem um ego, nem uma subjetividade. Ele é o modo de ser da facticidade. Pura impermanência, pura nadificação. Com Heidegger, o niilismo atinge sua viragem epistemológica. O niilismo deixa de ser uma vaga possibilidade inscrita na análise meontológica antiga ou moderna, torna-se o próprio processo universal de entificação do ser. Paradoxalmente, o niilismo surge do esquecimento da aliança estrutural entre nada e ser. As utopias metafísicas de um ser incorruptível, imortal, infinito, eterno, perfeito, entre outros adjetivos tão luminosos quanto vazios, escondem a infinita ação do nada, apenas mediante a qual o ser se ilumina e o homem se humaniza. Não há ser sem nadificação. Não há ser sem a apreensão da nadidade de todo ente tomado enquanto ente. O Dasein humano só se revela em sua humanidade à medida mesma que consegue captar sua situação derelicta de ser-lançado no deserto da existência, procriando estupidamente sobre o cadáver de Deus. Para tanto, é preciso atravessar o nada para chegar ao ser. Recuperar a aliança indissolúvel entre nada e ser, dividida por dois mil anos de metafísica. Para Heidegger, esse atravessamento não se dá como exercício da potência nem como imperialismo da vontade. E esta é sua a polêmica crítica a Nietzsche, que ainda estaria preso a uma metafísica voluntarista. O atravessamento se dá como serenidade (Gelassenheit). Abandonar-se de si e deixar-se atuar. Ser o que se é e o que não se é. Lançar-se ao aberto para que a clareira do ser surja na mais pura autenticidade, na mais pura impermanência.


IHU On-Line – Quais os principais destaques do cinema oriental (pensando em obras e diretores) que o senhor poderia trazer, principalmente à luz da oscilação oriente/ocidente presente na abordagem do niilismo?

Rodrigo Petronio –
Um dos filmes que melhor traduzem essa oscilação oriente/ocidente presente na abordagem do niilismo é justamente uma produção alemã e japonesa, assinada pela impecável cineasta alemã Doris Dörrie: Hanami – cerejeiras em flor (2008). Aí é possível observar um projeto quase didático de vincular a matriz do pensamento niilista em sua vertente ocidental, especialmente alemã, às condições estruturais da modernidade, à globalização do capital e à vida no Japão, captada com uma sensibilidade e uma delicadeza ímpares. Essa luta contra a entificação/reificação da vida é materializada em uma obsessiva abordagem da violência. Alguns de seus maiores expoentes no japonês Takeshi Kitano, no chinês Wong Kar-Wai  e no coreano Kim Ki-Duk . Para mim estes três estão entre os maiores cineastas em atividade hoje no mundo. Tais processos de alienação, violência e nadificação dos valores são encontráveis em diversos outros cineastas, como a japonesa Naomi Kawase, o chinês Jia Zhang-Ke e os coreanos Park Chan-Wook, Lee Chang-Dong, Bong Joon-Ho, Hang Sang Soo. Também estão presentes nas obras excêntricas do taiwanês Hao Hsiao Hsien, de Rithy Pahn, do Camboja, e nos insólitos enredos de Tsai Ming Liang, da Malásia, como em Sabor de melancia, de 2005. Mas acho que vale a pena nos determos um pouco em uma análise do niilismo a partir de uma perspectiva lírica. Abordemos o filme A partida, do japonês Yojiro Takita , com uma boa repercussão de bilheteria e vencedor do Oscar de melhor filme estrangeiro em 2009. Justamente por ser um filme de apelo público e bastante convencional do ponto de vista narrativo, demonstra bem a inserção do debate sobre o niilismo no nosso cotidiano, no começo do século XXI, para além de pesquisas estritamente estéticas e filosóficas.


A partida: enredo

Daigo Kobayashi é violoncelista em uma orquestra de prestígio em Tóquio. De repente, ela é dissolvida por seu dono. Daigo acabara de se casar e investira todo seu dinheiro na compra de um violoncelo. Vê-se na rua do dia pra noite, em problemas financeiros. Retorna à sua cidade natal, no norte do Japão, junto com a esposa. Mas a pequena cidade tem pouco a lhe oferecer profissionalmente. Aceita então um inusitado emprego: torna-se um nokanshi, um mestre em lavar e vestir cadáveres. Trata-se de uma antiga tradição japonesa: deixar o morto limpo, belo e bem tratado para seu último momento, função antes exercida pelas famílias, mas agora esquecida e confiada a profissionais. Daigo consegue o dinheiro de que precisava, mas esconde seu emprego vergonhoso da mulher e amigos. Ele mesmo se sente desprezível ao ser obrigado às vezes a tratar as partes íntimas e dejetos dos cadáveres, entre outras aventuras.

Porém, uma metanoia começa a se operar no personagem. Passa a desenvolver um novo olhar sobre a cidade natal. Além disso, sua sucessiva exposição ao sofrimento, à morte e às circunstâncias das famílias que velam seus mortos gera uma transformação interna. Sobretudo ao observar a relação que seu mestre funerário estabelece com a morte, algo nele também começa a mudar. Por exemplo, seu mestre insiste em comer com a mão, sem parcimônia, todo tipo de carne que lhe apareça, logo depois do preparo dos cadáveres. Em outra cena, Daigo se vê obrigado a compartilhar com seu mestre deliciosos nacos de esperma cozido de salmão. Daigo, por sua vez, após o trabalho, chega em casa e, ao ver um frango aos pedaços, em uma vasilha, nauseado, vomita. Mas a fatalidade da morte vai aderindo à sua pele. Transforma sua maneira de se relacionar com o próprio sentido da vida e do corpo. Conforme se adapta à profissão, começa a perceber a sua importância. A morte deixa de ser vista como um acontecimento material, mas tampouco é vista sob um ângulo metafísico, do ponto de vista da alma ou da eternidade. Trata-se apenas de ritualizar os últimos momentos do corpo na Terra. Nada mais.

O trabalho do nokanshi começa a ser compreendido como uma função nobre. A limpeza dos cadáveres passa a lhe dar um prazer e a lhe sugerir uma beleza até então inimaginável. Para isso, basta que a partida deste mundo seja digna. E o último adeus da família – belo. Paralelamente a essa transformação do protagonista, o filme desenvolve três linhas narrativas. Primeiro, a situação maldita de Daigo, hostilizado pelos amigos e pela própria esposa que, ao descobrir sua profissão, envergonha-se. Segundo, a relação conflituosa que mantém com a música, sem saber se a retoma ou não. Terceiro, a pequena cidade lhe traz de volta imagens da infância e da relação mal resolvida com o pai, que desaparecera há muitos anos. Esta última é a mais importante.

A volta à terra natal é uma volta à memória e também faz emergir a lembrança nebulosa do rosto de um pai do qual ele sequer retivera os contornos. Em um dos momentos da infância, ambos haviam travado um jogo às margens do rio. Pai e filho trocaram uma pedra que simbolizava respectivamente o que cada um trazia no coração. Trata-se da antiga tradição nipônica das pedras-cartas, nas quais cada um transmite ao outro uma mensagem que traz no coração, confiando-a à pedra. Daigo ainda guardava a sua pedra, ofertada pelo pai, na velha casa natal. Mas quanto ao pai, mal sabia se estava vivo ou morto. Descobre-o em um telegrama, endereçado à agência funerária. Cabe justamente a ele preparar o cadáver do pai que, ausente por tantos anos, foi achado em abandono, em um quarto pobre, tendo como bagagem de toda vida apenas uma mala.

Ao chegar, sequer o reconhece. O rosto do morto não preenche os vagos traços que Daigo retém da infância. Ao fazer o ritual de preparo do corpo, a mão do morto enrijecida deixa escapar um pequeno objeto: uma pedra fechada tenazmente em sua palma. Nesse instante de surpresa e emoção, sob o olhar de anuência da esposa, Daigo consegue finalmente visualizar o rosto de seu pai nos traços daquele rosto. As formas nebulosas do passado ganham nitidez. Pode então revê-lo, no passado, à beira do rio, e a si mesmo, oferecendo-lhe a pedra que ele, agora morto, traz junto a seu peito.


Um banho de niilismo e transcendência

O filme de Takita pode ser lido em diversas chaves. Pode ser visto tanto como uma desterritorialização da tradição, presente no deslocamento de funções tradicionais autóctones que passam a ser desempenhadas por especialistas com a ascensão do capitalismo, quanto como uma análise sociológica da ocidentalização do Japão, com o impacto de dinâmicas profissionalizantes em ofícios antes desempenhados pelos próprios membros da família, ou seja, com a instrumentalização de tudo, inclusive da morte. Mas acredito que acima de tudo este seja um filme banhado de niilismo e transcendência por todos os lados. Apenas ao absorvermos a morte e a impermanência e ao fixarmos os olhos na nadificação de toda vida acessamos uma transformação interna. Apenas ao reconhecermos que tudo é morte e que os processos violentos são internos à essência mesma da natureza, em um ciclo infinito de devoração e autodevoração, o sem-sentido da vida e da morte recebem outra luz. Essa transformação põe em xeque os próprios lugares institucionais das convenções. Deixar a orquestra e a música erudita em uma das maiores metrópoles do mundo para embalsamar cadáveres no interior do Japão é uma travessia que implica dor e crescimento. Nunca retrocesso.

O trajeto de Daigo, por sua vez, é uma contínua e profunda incorporação da facticidade. Não é o que se passa além da vida e suas nomenclaturas metafísicas que lhe interessam: alma, eternidade, virtude, recompensa, punição, esperança. Interessa-lhe o último minuto, o último rosto, a última contemplação. Em uma palavra: partida. Paradoxalmente, essa apreensão da beleza da morte só ocorre com a superação do ente enquanto ente, ou seja, numa travessia interna pela decomposição, pela morte, pela finitude que nadificam toda matéria, mas deixam vazar em um último lampejo e em uma última fresta algum resquício de luz para além da miséria intramundana. Acima de tudo, as partidas encenadas no filme preparam o grande reencontro: tecem cena a cena a reconstrução do rosto do pai. Esse reencontro e essa busca da face do grande Outro não se dá em um além, mas na própria temporalidade nas quais todos nós buscamos algum sentido provisório para o nada fundamental que nos habita. Por isso, em suas piras funerárias e nos seus corpos inertes em despedida, a nadificação de todos os valores nos deixa nus e a sós com os únicos dois mistérios da existência: a compaixão e o perdão.

Em uma de suas falas, o mestre de Daigo se diz aberto a todas as tradições religiosas: budistas, hinduístas, islâmicas, judaicas, cristãs, entre outras. Para além das instituições confessionais, ironicamente o agente funerário se transforma em um dos maiores agentes do ecumenismo religioso. E o faz simplesmente ao reestabelecer, em uma sociedade cada vez mais asséptica, o simples gesto de tocar, lavar, pintar e vestir corpos mortos. Sua esposa tinha sido sua primeira cliente, ele mesmo diz. Amor e cuidado entrelaçam vivos e mortos, literalmente. O cuidado (Sorge), em termos heideggerianos, é o que afiança a preservação do ser. O corpo em decomposição produz a nadificação e o esvaziamento de toda expectativa metafísica. E assim a vida recupera outra dignidade em sua viagem rumo ao nada.


IHU On-Line – Em que sentido os cineastas orientais partem de um pressuposto niilista para fazer suas obras?

Rodrigo Petronio –
Você apontou muito bem. Esta é minha hipótese. Acredito que diversos cineastas orientais partem de um pressuposto niilista. Desenham o nada em suas películas como substância última do real. No Japão, desde os clássicos de Ozu, Mizoguchi e Kurosawa, observamos esta oscilação pendular entre uma concepção trágica da vida e sua redenção por meio de paisagens de impermanência e finitude. O processo de entificação da vida se confunde com a reificação e com o impacto do capitalismo nas estruturas monárquicas, produzindo os traumas da ocidentalização, o desmantelamento das comunidades, a desterritorialização das tradições, movimento este apreendido não apenas pelo cinema, mas também nas obras agônicas de escritores como Akutagawa e Mishima, e cujo ponto de viragem é a Segunda Guerra.


IHU On-Line – O senhor considera que o niilismo seja uma boa ferramenta teórica para abordar o cinema oriental?

Rodrigo Petronio –
A produção cinematográfica dos países orientais há uma década tem se destacado como uma das melhores do mundo. Mesmo em sua diversidade, é possível identificar alguns temas que a perpassam estruturalmente: o confronto positivo/negativo com a ocidentalização, o conflito capitalismo/tradição, a tecnologia e seus desdobramentos humanistas/anti-humanistas, a solidão, a destruição da subjetividade e do conceito de identidade e, por fim, a morte. Acima de todos esses temas há um tema obsessivo e unânime: a violência. Tanto que a cinematografia oriental está entre as produções mais violentas no panorama da arte contemporânea mundial. Porém, paradoxalmente, no âmago dessa exploração exaustiva da violência, tais cineastas têm produzido algumas das obras mais comoventes e líricas dos últimos anos. Justamente por essa postura paradoxal diante da análise da natureza humana, que a revela sempre em sua síntese precária de iluminação e desgraça, acredito que haja uma espiritualidade laica na obra desses cineastas. Ela não consiste em uma valorização da violência, mas em uma travessia necessária do nada, entendida como única forma possível de acessar a transcendência. À revelia da temerosa tentativa de se definir o cinema oriental como um todo, acredito que o niilismo seja uma boa ferramenta teórica para abordá-lo. Nesses termos, o cinema oriental não teria uma sustância sui generis, uma hipotética e extremamente duvidosa orientalidade. Ele seria apenas aquele que conseguiu levar mais longe o projeto niilista universal que caracteriza a modernidade e seus cineastas, aqueles que dissecaram a flor fétida da ferida niilista em todo o seu esplendor.


IHU On-Line – Como cinema e poesia se relacionam, tendo em vista a questão da sensibilidade humana? Qual o papel do transcendente nesse sentido?

Rodrigo Petronio –
O cinema como toda obra de arte é um conjunto de afectos, perceptos e conceptos, como diria Deleuze. Ele articula em si paixões, conceitos e percepções da realidade. Nesse sentido ele é uma poiesis, uma atividade cuja essência consiste em desdobrar potências e faculdades da alma, materializadas e organizadas em uma relação de formas. Quanto ao transcendente, creio que hoje em dia seja preciso devolver esta palavra a um grau zero de sentido e reinaugurá-la. Se não fizermos isso, toda reflexão sobre as religiões e a espiritualidade está fadada ao fracasso. Um primeiro passo nessa reformulação é pensar o transcendente não como um puro Outro ou como uma pura alteridade que me observa, mas como uma relação excêntrica que o eu estabelece com todos os pontos e partículas do universo, em um desdobramento infinito. Essa talvez seja uma crença que ainda não está inscrita nos códigos das religiões de salvação. Não a crença de que o mundo se salvará se cada um de nós se salvar. Mas a de que tudo se salvará apenas quando tivermos perdido tudo. Quando deixarmos de pensar a vida como uma relação com o mundo ou com um deus, e começarmos a viver o nada como o tranquilo destino das criaturas. Essa visão pode nos devolver ao âmago do nada, de onde fomos exilados. Pode nos retirar da ilusão da substância, sobre a qual construímos nossos dez mil anos de sedentarismo metafísico. O século XX nos ensinou que apenas o nada nos une como espécie. Em outras palavras, apenas o nada conseguiu de fato ser católico, ou seja, universal. Acredito que essa intuição poderosa do filósofo Vilém Flusser  seja um bom convite para pensarmos o niilismo no mundo contemporâneo. Mais do que isso: para concebermos o niilismo não como um ponto de chegada da modernidade, mas como o ponto de partida de uma grande aventura antropológica. O niilismo provavelmente será a matéria-prima das religiões do futuro. Nessa perspectiva, os artistas e todos os investigadores da vida em sua miséria e esplendor, sejam eles ocidentais ou orientais, alheios a quaisquer ilusões e para além de questões estritamente estéticas, podem estar tateando timidamente a substância escura da santidade. Talvez eles estejam propondo uma profecia para além de toda a fé. Talvez eles sejam, como diz Bataille, os místicos de um mundo sem Deus.

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