Edição 412 | 18 Dezembro 2012

Cinema: forma sutil de culto

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Graziela Wolfart

Para Júlio Cézar Adam, o cinema é uma expressão religiosa pelo seu conteúdo e pelo rito que se desenrola em torno dele. “O ato de ir ao cinema, assistir a um filme, em casa que seja, tem algo de litúrgico, de cúltico, de ritual”, destaca
Segundo Júlio Cézar, os filmes nos incitam a uma busca pelo transcendente

Na visão do professor de Teologia, Júlio Cézar Adam, a ida ao cinema representa mais que lazer e entretenimento. “Há algo de religioso aí. Há uma busca pelo transcendente. Os filmes, em sua grande maioria, têm algo que nos liga a uma dimensão maior e que traz um sentido para a existência concreta”. Além disso, continua ele, na entrevista que concedeu por e-mail à IHU On-Line, “o cinema busca perscrutar questões misteriosas da vida, estabelece e reforça valores morais; recupera tradições religiosas e culturais que outrora davam sentido a determinadas culturas e povos. Nesse e em outros aspectos o cinema abre uma possibilidade de encontrar modelos e propostas para responder a questões reais no cotidiano”. E conclui: “como rito litúrgico da contemporaneidade, o cinema está contando mais do que simples e envolvente história. A narrativa cinematográfica enreda seus espectadores em uma aura de transcendência e sentido”.

Júlio Cézar Adam possui graduação em Teologia pela Escola Superior de Teologia (Faculdades EST), de São Leopoldo-RS e doutorado na mesma área pela Universidade de Hamburgo, Alemanha. Atua como professor na área do culto cristão (liturgia e homilética), espiritualidade e religião na contemporaneidade nas Faculdades EST, onde coordena o grupo de pesquisa (CNPq) “Culto cristão, música e mídia na contemporaneidade”. Tambem é professor de Filosofia e Ética na Faculdade Instituição Evangélica de Novo Hamburgo – IENH (Novo Hamburgo-RS). É pós-doutorando do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da PUCRS e autor de, entre outros, Liturgia com os pés: Estudo sobre a função social do culto cristão (São Leopoldo: Sinodal, 2012).

Confira a entrevista. 

IHU On-Line – Em que sentido o filme Avatar pode ser usado para o debate sobre a vivência religiosa contemporânea? Que inspiração ele traz nesse sentido?

Júlio Cézar Adam – A vivência religiosa hoje é hibrida. É uma vivência religiosa misturada em que cada um faz as escolhas de produtos e práticas religiosas de acordo com o seu interesse, sua espiritualidade pessoal (Danièle Hervieu-Léger ). Neste hibridismo religioso, a busca por elementos de uma mística ligada à natureza é intensa. Exatamente elementos dessa mística nós vemos no filme Avatar . A vivência religiosa do povo de Pandora é natural. Não é uma religiosidade de dogmas, livros, cleros, instituições. A própria divindade Eiwa é uma grande árvore. Através dela todos os demais seres estão interconectados. Então, esta vivência religiosa que conecta as pessoas com a natureza é inspiradora para nós, não só na dimensão religiosa. Para a teologia cristã, esta mística da natureza que tanto atrai as pessoas denuncia algo que está em falta. A religiosidade de Avatar acaba sendo uma inspiração para o exercício de uma religiosidade que não só nos ligue a Deus e ao próximo, mas também à natureza, ao universo. Uma espiritualidade cósmica (Leonardo Boff ). Esta perspectiva se torna interessante, principalmente se consideramos a crise ambiental que vivemos. No caso do filme Avatar, o elemento místico-religioso é decisivo na luta contra a devastação de Pandora.

IHU On-Line – Quais as implicações que a obra traz para a teologia prática?

Júlio Cézar Adam – Historicamente teologia prática se dedica à reflexão da prática da Igreja. Há hoje uma ampliação de sua tarefa: refletir sobre a teologia na prática da vida, no cotidiano das pessoas (Wilhelm Gräb e Ruan Ganzevoort, por exemplo). Esta teologia na vida prática pode ser chamada de religiosidade vivida. É uma religiosidade que se dá fora da esfera religiosa institucional e, até mesmo, fora da esfera do sagrado. A religiosidade vivida está presente no cotidiano, na cultura popular, na mídia. Nesse sentido, não só o conteúdo “religioso” de Avatar acaba sendo interessante para a teologia, mas o próprio fato do filme atrair e encantar tantas pessoas. Avatar ou a ida ao cinema representa mais que lazer e entretenimento. Há algo de religioso aí. Há uma busca pelo transcendente. Os filmes, em sua grande maioria, têm algo que nos liga a uma dimensão maior e que traz um sentido para a existência concreta. Este novo olhar da teologia prática, portanto, tem muito para investigar e, necessariamente, a partir desta investigação, se refazer enquanto teologia.

IHU On-Line – Como o senhor define a intensidade de “religião” que pode ser encontrada nas quase três horas de Avatar? 

Júlio Cézar Adam – Avatar não é um filme religioso. O que temos de religioso no filme é algo implícito. Diria que esse elemento religioso implícito aparece em pelo menos três aspectos: 1) uma religião natural, que liga tudo e todos, vivos e mortos, humanoides, animais e plantas; 2) há elementos religiosos que poderiam ser associados a elementos religiosos judaico-cristãos, como o paraíso (Pandora), a árvore da vida (Eiwa), o mal (os exploradores do planeta); um messias salvador, que se torna igual ao povo, morre e volta a viver (Jake), a expulsão do paraíso (saída dos invasores), entre outros exemplos; e 3) a ida ao cinema como uma forma de transcendência, uma experiência de, através do filme ser o expectador mesmo um “avatar”, alguém que vive algo fascinante e arrebatador. 

IHU On-Line – Que relação pode ser feita entre cinema e religião de forma geral? O que o cinema tem de ritual, de simbólico, de transcendente? Em que medida esses elementos são em si religiosos?

Júlio Cézar Adam – Victor Turner , no seu estudo sobre o rito, considera o cinema como uma nova forma de ritualização da e na atualidade. A experiência diante da tela permite ao espectador experimentar algo novo, grandioso, diferente (o que ele chama “liminoid”), de modo que, após a sessão, o espectador já não é o mesmo. Num tempo em que a instituição religiosa, com seus ritos clássicos, não mais atrai pessoas, me parece haver no cinema um tipo de rito religioso diferente. As temáticas dos filmes, dos mais diferentes gêneros, apontam para isso. Suspeito que o cinema busca dar resposta a questões existenciais tais como a morte. Além disso, o cinema busca perscrutar questões misteriosas da vida, estabelece e reforça valores morais; recupera tradições religiosas e culturais que outrora davam sentido a determinadas culturas e povos. Nesse e em outros aspectos o cinema abre uma possibilidade de encontrar modelos e propostas para responder a questões reais no cotidiano. Como irá dizer Jörg Hermann, “o cinema corresponde [...] ao nosso desejo de criar o mundo novamente não como na religião, como uma explicação obrigatória e mais ou menos dogmática, nem como a arte, como irrepetível acontecimento estético, mas como um possível fluir de imagens de diferentes tipos, ilimitadas, ordenadas, significativas e mutáveis, que oferece um sentimento de autocompreensão do mundo e também o fascínio pela surpresa e a vibração”.

IHU On-Line – Estaria o cinema, através de filmes como Avatar, suprindo a sede religiosa do ser humano? Seria o cinema o grande culto dos habitantes da atualidade? O que tem a teologia cristã a ver com tudo isso?

Júlio Cézar Adam – Com certeza, o cinema também é uma forma sutil de culto para muitas pessoas. O cinema é uma expressão religiosa pelo seu conteúdo e pelo rito que se desenrola em torno dele. O ato de ir ao cinema, assistir a um filme, em casa que seja, tem algo de litúrgico, de cúltico, de ritual. A religião se expressa através de conteúdos, e principalmente através de ritos (não esqueçamos que antes do conteúdo existiu o rito!). Poderíamos assim, de fato pensar o cinema como um culto através do qual não só nos encontramos com outros que comungam de uma mesma “crença” e busca, mas nos encontramos com o transcendente, com o mistério da vida que vai além da capacidade de absorção humana. O cinema-culto seria em essência um espelho do seu público. Como diria C. Geertz  sobre o rito: “Trata-se de uma leitura humana da experiência humana, uma história que se conta mutuamente sobre si próprio”. À medida que essa história é contada, abrem-se outras possibilidades, e a fantasia fortalece o grupo como sendo o mesmo e, não obstante, totalmente novo, uma espécie de communitas, no sentido de Turner. Se assim o for, de fato o cinema hoje tem desempenhado o papel que o culto religioso (rito) por civilizações desempenhou: ação representativa do grupo que o ritualiza a própria realidade. Como rito litúrgico da contemporaneidade, o cinema está contando mais do que simples e envolvente história. A narrativa cinematográfica enreda seus espectadores em uma aura de transcendência e sentido.

IHU On-Line – O que faz do cinema uma “máquina de sentido” e como isso se relaciona com a busca humana pelo transcendente?

Júlio Cézar Adam – Máquina de sentido é parte do título do livro de Jörg Hermann . Ele é quem define o filme com uma máquina de sentido. Hermann diz: “O cinema corresponde [...] ao nosso desejo de criar o mundo novamente não como na religião, como uma explicação obrigatória e mais ou menos dogmática, nem como a arte, como irrepetível acontecimento estético, mas como um possível fluir de imagens de diferentes tipos, ilimitadas, ordenadas, significativas e mutáveis, que oferece um sentimento de autocompreensão do mundo e também o fascínio pela surpresa e a vibração”. Num mundo carente de sentido e orientação é quase óbvio que o cinema ou outros produtos e mecanismos da indústria cultural (T. Adorno ) servirão como espaço de abrigo e construção de um sentido.

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