Edição 412 | 18 Dezembro 2012

Bergman e o contínuo turbilhão contraditório da dúvida existencial

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Graziela Wolfart

Para Andreia Vasconcellos, o cineasta sueco arremessa o pessimismo contra a esperança, e o otimismo contra a barbárie, de modo a retratar os sentidos e os ressentimentos de uma época em que a redenção moral parece cada vez mais distante e efêmera
Para Andreia, Bergman pode ser situado na tradição de Dostoiévski e Nietzsche

“O silêncio de Deus retratado pela obra de Bergman configura-se como a centralidade da crise que arremessa o ser humano em um abismo moral que já não possui fundação alguma. Deus como uma instância inquestionável e inabalável foi profundamente tensionado na obra de Bergman. Com isso não queremos dizer que não haja personagens que acreditam em Deus. Afirmamos que a fé em Deus já não reza de maneira orgânica, isto é, sem suscitar profunda angústia e dúvida naqueles que continuam a acreditar na divindade. Nesse sentido, podemos situar Ingmar Bergman na tradição de Nietzsche e Dostoiévski, para quem a morte ou a inexistência da divindade arremessa o ser humano em um turbilhão de relativismo moral em meio ao qual tudo o que é sólido desmancha-se no ar”. A reflexão é da mestranda em Ciências da Religião pela PUC-SP, Andreia Vasconcellos, em entrevista concedida por e-mail para a IHU On-Line. Ao pesquisar sobre a filmografia de Ingmar Bergman, ela aponta que “a obra O sétimo selo pode ser compreendida como uma grande síntese da problemática teológica na obra de seu autor, pois ela apresenta uma genealogia da crise da fé, isto é, o filme em questão procura recuperar o momento histórico a partir do qual Deus já não podia despontar como um sistema inquestionável que continha as respostas para todas e cada uma de nossas dúvidas”. 

Confira a entrevista.

IHU On-Line – O que caracteriza o olhar de Ingmar Bergman sobre questões existenciais, como a mortalidade, a solidão e a fé?

Andreia Vasconcellos – Se pensarmos em um panorama sobre a obra de Ingmar Bergman , creio que chegaremos à dúvida existencial como uma constante que perpassa a totalidade de seus filmes. A dúvida sobre o amor; a dúvida sobre a amizade; a hesitação em relação a Deus e à redenção divina; o silêncio diante da mortalidade. Já em seu primeiro filme, Prisão, de 1949, há a seguinte passagem: 

Após a vida só há a morte. Isso é tudo que vocês precisam saber. Os sentimentais e fracos podem se ajoelhar na igreja, os entediados e indiferentes podem se suicidar... Deus está morto ou derrotado ou como quer que vocês prefiram. A vida não passa de uma vereda cruel e sedutora entre a vida e a morte. Uma grande peça risível, bela e feia, sem piedade ou sentido.

O trecho em questão apresenta uma vertente bergmaniana que tende a se associar ao ateísmo. Tal concepção é muito forte ao longo da obra do cineasta sueco. No entanto, o ateísmo não se configura sem se chocar com percepções e vivências que ainda buscariam a redenção. Eis aqui um primeiro movimento de dúvida existencial que enseja o embate entre posições antípodas. Assim, em O sétimo selo (1957), encontramos o cavaleiro Antonius Block, um ser profundamente angustiado por conta do esfacelamento dos valores medievais que concebiam Deus como uma presença inequívoca em cada momento do cotidiano. Em meio à peste que dizimava a população feudal, Block já não consegue encontrar guarida junto às respostas tradicionais do Deus que cada vez mais se confunde com um completo silêncio. Em contrapartida, O sétimo selo também nos apresenta o artista mambembe Jof, cuja família acolhedora parece não sentir o esboroamento da fé e do sistema divino. Jof, Mia e o pequeno Mikael parecem agraciados com uma insciência que os protege dos questionamentos tautológicos e autofágicos que só fazem solapar o ímpeto do nobre cavaleiro. Sendo assim, como decidir qual polo representa uma tendência totalizante na obra de Ingmar Bergman? Tal exemplo se desdobra ao longo dos demais filmes. Parece-me, nesse sentido, que o movimento da dúvida projeta uma percepção crítica que não procura abstrair os conflitos fílmicos em prol de uma tese que acabe ignorando a presença constante de diversas antíteses. Assim, a mortalidade, a solidão e a fé não podem ser apreendidas, a meu ver, a partir de um sentido unívoco. De fato, a falta de fé, a insciência a respeito do que há além da morte e a solidão contumaz sintetizam muitos dos dilemas que atormentam as personagens. No entanto, o princípio da dúvida nos faz entrever que uma vereda de redenção se insinua sempre que o desfiladeiro parece inescapável. Eis um exemplo extraído ainda uma vez d’O sétimo selo – quem fala agora é o supostamente cético escudeiro Jöns, parceiro leal de Antonius Block: “Se tudo é imperfeito neste mundo imperfeito, então, o amor é perfeito em sua imperfeição”. 

IHU On-Line – Como o silêncio de Deus aparece na obra de Ingmar Bergman? Que leitura pode ser feita a partir da “trilogia do silêncio”?

Andreia Vasconcellos – Em primeiro lugar, é preciso dizer que a “trilogia do silêncio” foi uma construção feita posteriormente. Bergman chegou a afirmar que, à época, era recorrente a construção de trilogias, querendo com isso dizer que, a princípio, não havia efetivamente uma trilogia do silêncio formada por Através de um espelho (1961), Luz de inverno (1962) e O silêncio (1963). Isso posto, não devemos dizer que não haja uma estreita contiguidade temática entre os filmes em questão. O silêncio de Deus retratado pela obra de Bergman configura-se como a centralidade da crise que arremessa o ser humano em um abismo moral que já não possui fundação alguma. Deus como uma instância inquestionável e inabalável foi profundamente tensionado na obra de Bergman. Com isso não queremos dizer que não haja personagens que acreditam em Deus. Afirmamos que a fé em Deus já não reza de maneira orgânica, isto é, sem suscitar profunda angústia e dúvida naqueles que continuam a acreditar na divindade. Nesse sentido, podemos situar Ingmar Bergman na tradição de Nietzsche  e Dostoiévski , para quem a morte ou a inexistência da divindade arremessa o ser humano em um turbilhão de relativismo moral em meio ao qual tudo o que é sólido desmancha-se no ar. Assim, os filmes que compõem a trilogia procurarão levar às últimas consequências o silêncio de Deus. Do mecanicismo litúrgico que leva um pastor ateu a se esconder sob as vestes eclesiásticas a um escritor/pai que usa a loucura crescente da filha para compor a própria obra, entrevemos o silêncio de Deus e o vazio moral dele advindo como o trágico espectro que permeia e esgarça as mais diversas relações humanas. 

IHU On-Line – Como fé, arte e cinema se fundem na filmografia de Bergman?

Andreia Vasconcellos – Bergman sentia uma forte necessidade de comunicação em meio a uma sociedade que tornava tênues e efêmeros os laços de união entre as pessoas. O autor chega a apontar o esfacelamento da comunicação no auge do individualismo moderno. Nesse sentido, Bergman sempre buscou um meio pelo qual pudesse comunicar a torrente de seus pensamentos, sensações e experiências. Dizia que lhe faltavam palavras para se tornar um bom escritor. A música lhe era indômita e a pintura, em verdade, não o tocava profundamente. Assim, a imagem em movimento acabou por se transformar em um profundo mecanismo de expressão artística que se vinculava à arraigada necessidade de comunicação que o autor sentia. Se pensarmos em clássicas imagens de Bergman, nos lembraremos da cena em que o cavaleiro Antonius Block joga xadrez com a Morte em O sétimo selo. Como se a vida, a caminhar sobre uma corda pênsil, estivesse sempre a uma jogada do xeque-mate. Também devemos mencionar as imagens de Jesus crucificado que se reiteram nos filmes. Tanto em O sétimo selo quanto em Luz de inverno, a imagem de madeira do Cristo crucificado já não aparece com a altivez divina das igrejas católicas. Cristo se mostra macérrimo e lacerado, cheio de equimoses e escaras, as costelas à mostra, cupins devoram a madeira que, assim, já não se mostra ungida pela proteção divina. Em contraposição, encontramos cenas de comunhão que dão sobrevida ao ímpeto da fé. Como não mencionar a ceia dos morangos ao leite que aproxima Block da família de artistas mambembes como um breve momento de reconciliação na trajetória do angustiado cavaleiro? Fé e ceticismo caminham lado a lado nas montagens bergmanianas. Como se caminhássemos por um corredor estreito ao longo cujas paredes víssemos o contínuo entrechoque das polaridades imagéticas que arremessam as personagens – e os espectadores – em meio ao contínuo turbilhão contraditório da dúvida. 

IHU On-Line – Que destaque pode ser dado à obra O sétimo selo em relação ao olhar de Bergman sobre Deus e a fé? 

Andreia Vasconcellos – A obra O sétimo selo, sobre a qual venho desenvolvendo minha pesquisa de mestrado, pode ser compreendida como uma grande síntese da problemática teológica na obra de Bergman. Trabalho com a ideia de que O sétimo selo nos apresenta uma genealogia da crise da fé, isto é, o filme em questão procura recuperar o momento histórico a partir do qual Deus já não podia despontar como um sistema inquestionável que continha as respostas para todas e cada uma de nossas dúvidas. A peste bubônica solapa a orgânica sociedade medieval. As mortes em escala crescente prenunciam o Apocalipse. Nesse sentido, Antonius Block tenta conversar com Deus para que Ele lhe forneça a liturgia a fim de que a vida possa seguir seu curso até então considerado normal. O que Block, um niilista avant la lettre, ainda não sabe, é que já não será possível recorrer ao deus medieval. Deus começa a agonizar junto com o outono da Idade Média. Quando pensamos, então, em um diálogo entre O sétimo selo e Luz de inverno, entendemos que as chagas que tanto atormentam Antonius Block se transformaram no cinismo que rege a liturgia do pastor Tomas Ericsson. Block estava inserido em um contexto que não podia trazer as respostas por que ele tanto ansiava. As ruínas medievais não podiam consolá-lo, mas, à época, não havia um desenvolvimento racional historicamente constituído para que Deus fosse questionado profundamente. Ericsson, no entanto, é um pastor em meio ao século XX. O clérigo vivenciara os horrores da Guerra Civil Espanhola. Diante da iconoclasta tradição iluminista, já não é possível aceitar o Apocalipse sem questionar Deus. O ponto é que, no limite, o questionamento a Deus se transforma no questionamento sobre Deus. É assim que entrevemos uma contiguidade essencial entre Antonius Block e Tomas Ericsson. A história torna recíprocos os questionamentos das personagens, de modo que Ericsson pode ser lido como o desdobramento escatológico do nobre cavaleiro d’O sétimo selo.

IHU On-Line – Como o temor pelo fim do mundo aparece na obra O sétimo selo?

Andreia Vasconcellos – O fim do mundo desponta n’O sétimo selo desde o título do filme e de suas cenas iniciais, os quais sofrem profunda influência do Apocalipse. A princípio, um narrador retoma um fragmento apocalíptico diante do céu que se confunde com uma vasta abóboda vazia. Não à toa, a cena seguinte desvela um pássaro negro como o prenúncio da Morte que jogará xadrez com o cavaleiro Antonius Block. Toda a atmosfera do filme é perpassada tanto pelas mortes em decorrência da peste quanto pelo temor disseminado pela Igreja de que o fim do mundo está próximo. Assim, diante do silêncio do Deus, o medo passa a ser o efetivo instrumento da fé. 

IHU On-Line – Que relação pode ser estabelecida aqui entre a Segunda Guerra Mundial e a bomba atômica? Para Bergman, o homem seria o grande responsável pelo apocalipse final?

Andreia Vasconcellos – Da mesma forma que Block estava inserido em uma tradição que entrevia sinais claros de Apocalipse por conta da disseminação da peste, a geração do pós-guerra passou a ver a hecatombe iminente em meio à Guerra Fria como um claro sinal laico de que o mundo seria dizimado. Assim, a semelhança também nos leva às diferenças. Block não tinha como prever qual seria a dimensão da catástrofe disseminada pela peste. Atualmente, no entanto, é possível calcular de antemão quantas vezes o mundo poderá ser destruído por conta do arsenal nuclear. Quando comparamos, então, o dilema de Block à crise de Tomas Ericsson, nos damos conta de que o pastor vive em um mundo que não apenas confina Deus aos limites das igrejas, como também torna inofensivo o dilúvio bíblico em face de Hiroshima  e Tchernobil . Podemos dizer, então, que a responsabilidade do homem perante os acontecimentos do mundo aumenta na mesma medida em que vai se instaurando o silêncio de Deus. Conforme a divindade não mais responde às angústias dos homens, a humanidade deve buscar em si mesma a fonte para a resolução de seus problemas. Assim, a mesma tradição que gera o relativismo moral precisa se estruturar para gerar valores que alicercem a perpetuação da sociedade. 

IHU On-Line – Quem é o ser humano retratado na filmografia de Bergman? Seu foco é mais pessimista ou mais esperançoso em relação à humanidade?

Andreia Vasconcellos – O ser humano retratado na filmografia de Bergman é aquele esmagado pela dúvida a respeito do sentido da existência. Tal dúvida, como vimos sustentando, relaciona-se primordialmente ao silêncio de Deus. No entanto, ela se espraia por todas as esferas da existência, de modo a tornar frágeis e instáveis todas as relações de que tomamos parte. A ausência de sentido mina a perenidade do amor, a confiança na amizade, a reciprocidade das trocas, a fraternidade da família, o conforto da solidão que a contento quereria o contato do outro. É como se Bergman entrevisse o veio tenso de desenvolvimento das ideias e relações e o levasse às últimas consequências para, a partir das ações desdobradas em cenas, extrair o sentido ulterior para o qual nos encaminhamos. Sentido, vale frisar, que pode se transformar em uma completa falta de sentido. Tendo em vista tais pressupostos, afirmamos que Bergman arremessa o pessimismo contra a esperança e o otimismo contra a barbárie, de modo a retratar, pelos mais diversos prismas, os sentidos e os ressentimentos de uma época em que a redenção moral parece cada vez mais distante e efêmera. 

IHU On-Line – Qual o papel da arte para o sentido da continuidade da humanidade, segundo Bergman? 

Andreia Vasconcellos – De acordo com nossa concepção sobre Bergman, seus filmes realizam um profundo diagnóstico de época que tenta apreender os sentidos e os desatinos da condição humana. Assim, a arte, ao refletir sobre o movimento que perpassa a humanidade, pode fazer com que nós, seres humanos, reflitamos sobre o processo que nos engloba. Estamos satisfeitos com os caminhos que temos diante de nós? Ainda conseguimos entrever a felicidade em meio à densa tristeza do mundo? A filmografia de Bergman, ao sintetizar os dilemas humanos a partir do silêncio de Deus, nos faz pensar sobre a frágil possibilidade de mudança em um mundo que já não oferece bases tradicionais para nossas ações contingentes e revogáveis. 

 

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