Edição 412 | 18 Dezembro 2012

A complexidade das relações entre cinema/religião e religião/cinema

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Graziela Wolfart

“Sinto que se algum ‘Deus’ aqui alocado ameaçar de fato com o Apocalipse, nós brasileiros mudaremos para outra religião onde esta ameaça não exista, mesmo que alguns fiquem inicialmente preocupados com isso”, provoca Luiz Vadico
Vadico: "Relações entre cinema/religião e religião/cinema são complexas "

Especialista no chamado cinema mainstream, ou cinema de massa, o professor Luiz Vadico percebe que este elaborou “deuses” inócuos, sem qualquer chance de se sustentarem após a projeção da película. “E esta representação de Deus serve exatamente para não incomodar ninguém, de nenhum público e de nenhum país, ela é apenas um pano de fundo. O tema dos filmes é outro, não é Deus”. Na entrevista que concedeu por e-mail para a IHU On-Line, ele defende que, se o cinema pode cooperar para o surgimento de alguma espiritualidade é através da reformulação e reedição de velhos modelos centrados no melodrama. “É esta forma narrativa que é capaz de despertar emoções interessantes para as religiões, como fé, esperança, piedade, misericórdia e caridade. Deste tipo de filme as pessoas costumam saírem ‘gratificadas’ e não ‘atormentadas’ com problemas existenciais contemporâneos. Nesse caso a “espiritualidade” sai do filme enquanto tema, mas se desenvolve no espectador enquanto emoção positiva”.

Licenciado e bacharelado em História pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp, Luiz Vadico possui mestrado e doutorado em Multimeios pela mesma instituição. É professor titular da Universidade Anhembi Morumbi, supervisor do Centro de Estudos do Audiovisual – UAM, e professor de Comunicação, Estética e Cultura de Massa no curso de Extensão em TV para a Televisão Pública de Angola – TPA, em Luanda, Angola. É também membro do Conselho Editorial da revista Interatividade e membro da Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual – Socine. Além disso, Vadico é escritor e poeta. Escreveu Filmes de Cristo. Oito aproximações (São Paulo: Editora à Lápis, 2009).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – De forma geral, como o senhor define e caracteriza a relação entre cinema e religião e entre teologia e cinema?

Luiz Vadico – Antes de responder a essas duas questões, gostaria de estabelecer o lugar a partir do qual tecerei meus comentários. O meu campo de pesquisa é o chamado cinema mainstrean, ou simplesmente o “cinema comercial” como muitos o conhecem, seja ele hollywoodiano/americano ou de outra origem, como francesa ou italiana. A palavra “religião”, por sua vez, possui uma acepção extremamente ampla, e tomada desta forma pulverizaria e fragmentaria qualquer conclusão a que poderíamos chegar. Falamos, portanto, a partir do ocidente, a partir da experiência cristã, e nossas conclusões não se aplicam necessariamente a outras religiões e religiosidades. Então, no que tange ao vetor cinema/religião, o interesse da indústria cinematográfica sempre foi o lucro. O cinema é uma arte industrial. O filme é um produto desta indústria, um produto caro (mesmo quando de baixo orçamento) que necessita ser vendido e dar retorno financeiro. Esta indústria, desde o início da sua história, desejou elaborar um produto que pudesse atingir o público das igrejas, pois isso lhe daria maior respaldo social, e no início do século XX era difícil encontrar um espectador que não estivesse ligado a uma confissão qualquer. Nesse sentido, a nascente indústria desejou fazer um produto que pudesse agradar este público e cativá-lo, minimizando os seus riscos. A religião, seus sentidos e significados, não fazia parte de seu interesse propriamente dito.

“Ligas pela Moral”

Esta necessidade do cinema surgiu frente ao desenvolvimento das chamadas “Ligas pela Moral”, um movimento social bastante significativo na virada do século XIX para o XX, e que possuía ramificações em diversos países, como Itália, Suíça, Grã-Bretanha, França, Estados Unidos e Brasil. As Ligas, que inicialmente lutavam contra a pornografia (cartões postais, impressos e literatura), posteriormente passaram também a questionar a qualidade moral dos filmes e se empenharam em fechar as insipientes salas de cinema, em nome da moral e dos bons costumes. É importante notar que, apesar de contar com o aval das instituições religiosas, as ligas foram organizadas por componentes da sociedade civil. Este processo culminaria com o estabelecimento do British Board (órgão de censura britânico), em 1913, e do conhecido “Código Hays” de autorregulamentação cinematográfica, nos Estados Unidos, cujos efeitos se fariam sentir desde a sua pré-elaboração, nos anos 1920, até o seu desaparecimento em fins dos anos 1960.

No outro vetor possível religião/cinema as relações foram múltiplas e complexas, pois não há como se dizer que uma “religião” lidou desta ou daquela maneira, mas o que parece ter havido foi uma multiplicidade de reações particulares destes ou daqueles representantes de uma determinada religião, disseminados pelo planeta inteiro. 

Catolicismo e cinema: catequese

No que tange ao catolicismo, a reação da Igreja desde o surgimento do cinematógrafo foi razoavelmente positiva, pois nele viu de imediato a chance de continuar a sua catequese. Nesse sentido, a Igreja Católica sempre esteve pronta para abraçar novas tecnologias que permitissem um melhor desenvolvimento da sua catequese. Desde o longínquo passado foi ela que financiou a arte, e durante toda a chamada Idade Média, a arte era a sacra, e isto se alterou pouco quando se estabeleceu o período do Renascimento. A Igreja era a patrona das artes, e estas serviam aos seus propósitos (a arte também se serviu da Igreja). Já no século XVIII e no seguinte, a Igreja se apropriou mui rapidamente da Lanterna Mágica, invenção de um jesuíta alemão, Athanasius Kirchner , para com as imagens projetadas encantar crianças e adultos com a vida de Cristo ou com diversas passagens bíblicas.

Porém, o cinema não era a Lanterna Mágica, e pouco depois do seu surgimento uma indústria se formou. E esta indústria não tinha como estar sob o controle de nenhuma igreja. Pois o contexto histórico era o da laicização do estado em diversos países. Então, restou-lhes pressionar e negociar para que os filmes originados pudessem ser de alguma utilidade ou qualidade moral para atender às necessidades de seus fiéis. 

O campo do filme religioso

É neste embate entre o campo do filme (indústria cinematográfica) e o campo do religioso (instituições religiosos e seus seguidores) que surgiu o Campo do Filme Religioso . Um campo que se organizou e se reorganiza conforme os conflitos de interesses de um e de outro. As comunidades cristãs lidaram com o cinema de formas muito variadas, umas aceitando-o muito rapidamente e buscando agregá-lo e outras questionando ou rejeitando. Até onde nossas pesquisas progrediram parece que os protestantes tiveram maior dificuldade em lidar com as imagens em movimento do que os católicos. Essa resistência, apesar de significativa, foi derrotada perante o interesse dos espectadores e da indústria cinematográfica, provavelmente, segundo a pesquisadora americana Pamela Grace, em seu livro The religious film (2009), por causa desta capacidade “mágica” do cinema em recriar contextos e estórias das quais todos gostaríamos de ter participado ou ver como realmente ocorreram. A Igreja Católica só realmente se pronunciaria oficialmente a respeito do cinema já na década de 1930. Para alguns padres o cinema significava uma grande oportunidade de educação espiritual e moral das massas, às vezes lamentavam-se da qualidade do produto que tinham de assistir. Já outros eram francamente contra, chegando a dizer que era uma “invenção do Diabo” . 

A teologia entra em cena

Na busca de verificar e pensar a qualidade do conteúdo dos filmes é que aos poucos a teologia vai entrando em cena. Aqui, precisamos entender a teologia em seus diversos níveis, não necessariamente falamos dos teólogos, mas da teologia adotada em determinados contextos históricos e que formou nitidamente as pessoas comuns e os representantes das instituições religiosas. É através da teologia interiorizada que os olhos deles irão filtrar a qualidade dos filmes. Este tipo de prática mantém-se até a atualidade. Nesse sentido, dizemos que mesmo os cineastas possuem pressupostos teológicos envolvidos em suas produções mesmo que o ignorem, pois nasceram num meio cristão mergulhado em leituras e práticas teológicas vazadas pela religião. Então, de maneira direta ou indireta a teologia influencia na manufatura dos filmes de assunto religioso. E esta teologia pode ser – no que respeita ao cristianismo – católica ou protestante . 

Já em meados dos anos 1910 as primeiras revistas de crítica cinematográfica, organizadas pioneiramente por católicos, começaram a circular e a ter um papel relevante na indicação da qualidade moral dos filmes que seus fiéis poderiam ver. Muito rapidamente essas revistas passaram a se preocupar também com a qualidade estética dessas películas. Preocupavam-se em formar um público que soubesse lidar com o cinema, muito mais do que censurar ou reprimir, havia o desejo de que o espectador pudesse reconhecer as qualidades e os defeitos dos filmes. Esta posição da crítica católica, francamente favorável a uma qualidade artística do filme, terminaria se impondo como uma prática adotada até mesmo pelos protestantes. A conjunção de qualidade moral e artística, não necessariamente da Igreja, mas com certeza da prática da crítica Católica, iria aos poucos desembocar na sua conhecida preferência pelos “filmes arte” ou “cult” e, sobretudo, os “autorais”, como sendo os mais dignos de análise e aqueles nos quais eles teriam plenas condições de encontrar reflexões cristãs e teológicas de qualidade. Essa posição ficou ainda mais clara com o surgimento do chamado “cinema autoral” em fim dos anos 1950, e que havia se iniciado com a “política dos autores”, sob a influência direta de François Truffaut , na revista francesa Cahiers du Cinèma.

O cinema de massa

Esta não foi apenas a posição dos críticos católicos, mas também a de pesquisadores e teóricos franceses e brasileiros relativamente à dignidade do objeto de estudo. Até pouco tempo atrás falar em cinema de massa, ou mainstrean, nos meios acadêmicos era uma espécie de blasfêmia, punida com o ostracismo e a ridicularização. Pois o mainstrean era o “cinema americano” contra o qual se lutava, pois era amigo da alienação do proletariado, etc. Nem é necessário dizer que, por mais sincera que houvesse sido esta escolha pelos filmes mais artísticos, ela significava evidente elitismo. Seria uma elite pensante que diria o que serve e não serve para as massas. No entanto, atualmente as massas – graças às novas mídias – parecem ter se imposto, e é necessário saber – minimamente – o que estas veem e por que gostam de ver o que veem e como lidam com isso. E, para nós, isto parece pedir uma mudança de postura relativamente ao que se fez no passado. Nem por isso devemos minimizar o importante papel das igrejas na formação do público de cinema e da cinefilia; uma das raízes evidentes do chamado Cinema Moderno está plantada na formação dos cineclubes na Europa, que eram majoritariamente de origem católica.

Cinema e a produção de teologias

Os teólogos que se voltaram para a análise do filme fizeram-no em busca de encontrarem temas teologais e também buscando verificar a adequação das adaptações bíblicas. Ainda era um campo de pesquisa bastante inicial e não tiveram a preocupação de verificar se o cinema era capaz de produzir teologias e quais os seus significados. Partia-se da teologia para o filme e não do filme para a teologia. Esta preocupação é bem recente e data tão somente de fins dos anos 1990, com trabalhos de teólogos como William Telford, Clive Marsh e Lloyd Baugh. Há pouco tempo descobri haver também uma vertente italiana destes estudos, mas com a qual ainda não pude me familiarizar. Hoje essas duas vertentes de estudos convivem.

Observemos que as relações entre cinema/religião e religião/cinema são complexas e necessitam ser observadas nos seus diversos contextos históricos e sociais para serem bem compreendidas, caso contrário perderemos os seus reais significados.

IHU On-Line – De que forma o cinema pode cativar pela espiritualidade sem um “deus” único específico?

Luiz Vadico – Acho que a resposta a esta questão é: não pode. Como comentado acima, o cinema não tem e nem quer para si esta responsabilidade; quando desperta algum interesse relativo a questões espirituais o faz como uma espécie de excrescência do processo, chamariz ou mal necessário. Aqui, evidentemente me mantenho no cinema mainstream. A postura relativamente a “Deus” encontrada em algumas produções recentes, como Avatar ou ainda mais antigo como a coprodução americano-japonesa Final fantasy (Hironobu Sakaguchi, Monotori Sakakibara, 2001), que trouxeram formas ditas panteístas da manifestação da divindade. Não estavam de fato preocupados com Deus, mas em vender para uma larga faixa de público filmes cujo principal chamariz eram os efeitos especiais, e no caso de Final fantasy, aproveitar a popularidade do game que deu origem ao filme. Nessa perspectiva, percebamos que o mainstream elaborou deuses inócuos sem qualquer chance de se sustentarem após a projeção da película. E esta representação de Deus serve exatamente para não incomodar ninguém, de nenhum público e de nenhum país, ela é apenas um pano de fundo. O tema dos filmes é outro, não é Deus. Isto é o que interessa ao cinema, no entanto, em sua pergunta está implícita outra: Como o cinema poderia contribuir para a melhor formação do público religioso? Talvez pudéssemos alterá-la sutilmente para: de que forma o cinema pode contribuir para o comportamento religioso das pessoas? Bem, aí teríamos muitas possibilidades, não apenas contemporâneas, mas oriundas da própria formação do Cinema. 

Melodrama: gosto popular

A estrutura básica na qual todas as narrativas cinematográficas se assentam – com muitas variações – é a do melodrama, forma narrativa surgida no teatro em meio à Revolução Francesa e que cairia no gosto popular ao longo do século XIX. Os diversos desenvolvedores do melodrama tinham a preocupação de educar as massas, lhes dar modelos adequados de comportamento ético e moral; apesar de possuir fundamento judaico-cristão, essa moral era perpassada pela afirmação e busca de identificação com os valores burgueses. Griffith, um dos mais conhecidos cineastas americanos, será um dos responsáveis pelo estabelecimento desta forma narrativa nos filmes. Ainda estamos imersos na lógica do melodrama, ainda vemos filmes onde o Bem vence o Mal, onde se lutam contra injustiças, onde os valores familiares sempre terminam defendidos, mesmo que tenham sido questionados ao longo do filme. A lógica do melodrama é a emoção, tanto quanto a lógica do cinema, causar sensações e emoções. Ele deseja atingir o público com textos curtos e simples, numa narrativa impulsionada pelas ações mais do que pelas palavras. É o melodrama que também está por trás dos diversos gêneros cinematográficos: simplificação, emoção, estéticas reconhecíveis e aguardadas, e repetição do modelo. Se você associou isso à novela televisiva, não está equivocada (o).

Então, apesar de reconhecer a qualidade da reflexão ética e estética de filmes de cunho autoral, acredito que se o cinema, visto aqui de forma ampliada, pode cooperar para o surgimento de alguma espiritualidade é através da reformulação e reedição de velhos modelos centrados no melodrama. É esta forma narrativa que é capaz de despertar emoções interessantes para as religiões, como fé, esperança, piedade, misericórdia e caridade. Desse tipo de filme as pessoas costumam saírem “gratificadas” e não “atormentadas” com problemas existenciais contemporâneos. Nesse caso a “espiritualidade” sai do filme enquanto tema, mas se desenvolve no espectador enquanto emoção positiva.

Chico Xavier e Dois filhos de Francisco

Não tenho nenhum bom exemplo de filme católico atual sobre este assunto, mas sinto que um filme espírita como Chico Xavier (Daniel Filho, 2010) realizou bem esta função, ou até mesmo um filme não religioso como Dois filhos de Francisco (Breno Silveira, 2005) tinha muito mais a dizer sobre espiritualidade e religião para o povo brasileiro do que qualquer filme de Tarkovsky ; pois nele vimos ascensão social através do trabalho, o fortalecimento dos laços de família, e uma aposta na melhor qualidade dos valores humanos. Seria isto espiritualidade? 

Evidentemente não se está colocando aqui “a realidade ou não” da estória contada no filme, isso interessa pouco em termos cinematográficos. Ainda não pude ver o filme sobre o Luís Gonzaga, o Rei do Baião, De pai pra filho (Breno Silveira, 2012), mas as suas chamadas parecem ir ao encontro do melodrama e dos valores da família. E, novamente, este é um filme tranquilo para o espectador, que não é alienado nem nada; ele espera ver os seus valores reforçados na tela, ao se identificar com estes valores, que ele aprendeu desde cedo serem bons, retorna ao seu lar gratificado. Foi isso que ele foi buscar no cinema: entretenimento e gratificação. Se o filme de assunto religioso puder se manter nesta lógica obterá sucesso, sucesso tanto de público quanto de mensagem.

Filmes de família

O Campo do Filme Religioso possui em si diversos gêneros cinematográficos, entre os quais os chamados “filmes de família”, como este último citado. Sentimos que é através da manutenção da produção de gêneros que atendam este campo que o cinema pode vir a dar a sua real colaboração para o espectador; como já deu no passado. Claro, isso se quisermos sair de uma posição elitista, voltada para uma análise também elitista e cuja finalidade se encerra em si mesma, uma vez que não atingirá o espectador médio. 

Vemos como acerto os investimentos realizados pela TV Record em séries bíblicas; tanto quanto o cinema que deseja produzir filmes que atinjam os seus diversos nichos de mercado, essas produções da TV falam a um público específico, podendo interessar a um público mais amplo. Tendemos a pensar que o contrário não funciona bem, partir de uma espiritualidade ampla não levará a uma espiritualidade específica. O público do “difuso” e do “fragmento” não é o público do específico; não quer dizer que alguém que vá ver um filme deste tipo não se sinta tocado espiritualmente, e que possa até mesmo vir a se interessar pelas infinitas possibilidades do sagrado, mas isso é algo de foro íntimo. O cinema não lhe dará nada que já não estivesse lá.

IHU On-Line – Se o cinema é “um registro do imaginário social de uma época”, o que ele pode dizer sobre quem é o ser humano contemporâneo, principalmente em relação à forma como ele se relaciona com o transcendente?

Luiz Vadico – Há pouco tempo tivemos a oportunidade – ampliando o escopo de nossas pesquisas – de escrevermos três artigos, ainda em fase de análise para publicação por revistas acadêmicas, chamados: “Novas linguagens, novos Jesuses. Hibridações de gênero e estéticas na formação de uma contra imagem de Jesus Cristo”, “Por que não se ri de Cristo?” e “E se Jesus fosse gay, zumbi, ou fosse salvo pelo Exterminador do Futuro? Teologia Reflexiva Popular a partir da produção midiática via internet”. Neles analisamos a imagem de Jesus Cristo construída em três pequenos vídeos produzidos e distribuídos através do site YouTube: Jesus Christ! The musical, de Javier Prato (2007), The greatest action story ever told, produzido pela Mad TV (2006) e The Passion of Zombie Jesus, de Ira Hunter (2006). 

Os seus autores se utilizaram de práticas e formas estéticas e narratológicas originadas no cinema, lançando mão da hibridação de gêneros e das citações e referências. Os três filmes analisados produziram imagens cristológicas claras e reconhecíveis. O importante não é que tenham feito isso de forma eficiente, mas a função destas imagens formadas. Verificamos que estes vídeos tocavam muito pouco à pessoa de Jesus Cristo, ou à espiritualidade propriamente dita. No entanto, singularmente os três dialogavam com formas teológicas típicas do cristianismo, questionando-as; coisa que acabamos chamando de Teologia Popular Reflexiva. Nestes vídeos não se desejou estabelecer uma imagem de Cristo como verdadeira ou interessante, mas questionar a imagem que vem sendo passada tradicionalmente, por isso a chamamos “reflexiva” não porque impõe uma reflexão, mas porque espelham a tradição, invertem-na e reenviam a imagem para os seus produtores teológicos, as igrejas e o cinema. 

Relação com o sagrado

Este longo preâmbulo para responder à sua questão é para chamar atenção para o fato de que, apesar do imaginário social estar presente nos filmes mainstream e de que é efetivamente interessante estudá-lo, verificamos que tão importante quanto este, o produto midiático elaborado por pessoas distantes da grande indústria nos dão acesso mais direto à forma como estas mesmas estão se relacionando com a imagem do sagrado. Nesse sentido, respondendo à sua pergunta inicial, o ser humano contemporâneo é um sujeito ativo no processo de produção midiática e consequentemente na produção da imagem do sagrado. E este é um passo muito importante que está sendo dado. Talvez exageremos um pouco na afirmação seguinte, mas parece-nos que neste início do século XXI é a massa quem está desejando dizer “Quem é Jesus Cristo”, ou participar de forma mais efetiva na elaboração teológica, criticando-a e informando o quão perto ou distante das suas necessidades a teologia tradicional se encontra. 

Então, da mesma forma que no distante passado os religiosos tiveram de lidar com representantes da indústria cinematográfica criando imagens relativas ao sagrado, e que pareciam incitar o público a seguir esta ou aquela direção, agora temos o público que está dizendo imageticamente o que deseja, e o que questiona. E nem sempre questionam o sagrado, mas as representações que dele se fizeram. Pode se dizer que mesmo em pequena escala estes vídeos ainda são uma produção autoral, e o são de fato. No entanto, essa produção autoral agora é de outro tipo. Estes autores, por não terem que lidar com um mercado cinematográfico e nem terem uma preocupação direta com o lucro econômico de seus filmes (o que não quer dizer que não haja outros lucros), estão muito mais livres para dizerem de forma objetiva, e com poucos filtros, o que sentem e o que pretendem. Apesar de o cinema ser a matriz do audiovisual, atualmente já não podemos olhar apenas para este em busca de respostas. Necessitamos verificar todo o universo deste cinema expandido, inclusive estes produtos midiáticos diretamente descendentes da produção cinematográfica, como os citados acima. Em termos teológicos os autores destes vídeos expressam o seu desconforto com a imagem cristológica tradicional, e não se trata apenas de “desconforto”; eles evidentemente dizem onde está o problema com ela. Esta liberdade nunca se teve antes.

IHU On-Line – O que o senhor pode falar sobre a cristologia através do cinema? A partir de suas pesquisas, como descrever a imagem de Cristo como um ícone cinematográfico? Como isso interfere na questão da fé cristã?

Luiz Vadico – Esta questão pode ser resumida e realinhada da seguinte forma. A imagem de Cristo produzida pelo cinema resulta na produção de cristologia e as suas sutis diferenças relativamente às imagens cristológicas tradicionais determinam uma alteração na forma como o espectador conhece Jesus Cristo, e no Jesus Cristo que ele conhece. As consequências disso ao longo das décadas nos parecem um descompasso entre o discurso teológico das igrejas e o conteúdo retido pelo seu público, que também é o mesmo do cinema. Nesse momento, retomamos a questão anterior, pois alguns elementos que constituem este público estão realizando produtos midiáticos nos quais expõem o seu desconforto com a tradição, e isso provavelmente é originado neste claro descompasso, entre o Cristo das igrejas e o produzido pelos meios audiovisuais. É, em certo sentido, a democratização do “discurso sobre Deus”. Nos três vídeos citados anteriormente, poderíamos resumir de cada um as suas propostas. Num deles a imagem é a de um “Jesus Gay”, que é atropelado por um ônibus ao final do filme. A sua grande questão é: Que Deus autoritário e machista é este que castigaria o seu próprio filho se ele fosse gay? No outro, a pergunta seria mais simples: por que Jesus, cuja mensagem é tão importante, tem de morrer na cruz? Por que não posso salvá-lo? E no último, Jesus Zumbi: Que história é esta da Ressurreição da carne? Quem volta dos mortos em corpo de carne depois de ser enterrado é Zumbi! Nem é preciso dizer muito para que percebamos a quantidade de crítica e espanto que existem nestas produções relativamente à teologia tradicional. Entre os muitos papéis que a teologia pode ter, me parece que um deles é dar respostas claras para estas questões, prestando atenção que não são perguntas que desejam a resposta óbvia; elas são críticas, retóricas. Elas são uma negação da tradição. Traduzamo-las de forma afirmativa: Não quero um Deus autoritário. Não quero que Jesus morra injustamente. Não compreendo a ressurreição da carne, ela parece absurda.

IHU On-Line – Qual a importância da obra do diretor polonês Krzysztof Kieslowski, principalmente pensando no “Decálogo”, para a reflexão sobre a relação entre fé e cinema?

Luiz Vadico – Depois de tudo o que foi afirmado desde o início desta entrevista, qualquer coisa que eu pudesse dizer soaria provocativa, o que não é o caso. Sem desmerecer de qualquer maneira a intensidade da obra deste diretor, a importância que dela resulta me parece bastante ligada à escolha da tradicional crítica católica por este tipo de obra. Reflexões existenciais, procurando soluções éticas para além do religioso, são produções que sempre me inspiram a seguinte pergunta: onde está o conforto e a gratificação para o fiel, para o cristão? Por que, apesar das questões abordadas, estes filmes não podem resultar em alegria e incentivo para o bem, como atitudes positivas e gratificantes que são? Por que temos de sair ensimesmados destas exibições em vez de motivados? Agora, infelizmente passarei para um campo bastante subjetivo. Mas, sendo um leitor constante dos Evangelhos, excetuando a crucificação de Jesus Cristo, todos eles me parecem carregados de mensagens positivas, altruístas, e de certa forma felizes. Ora, já não deveria ser tão difícil estar na Terra se acreditássemos verdadeiramente que o sacrifício de Jesus nos redimiu. E, para além da reforma que Jesus faz no judaísmo, se ele ressuscitou a mensagem só pode ser de alegria e otimismo, não é mesmo? Não se consola os que sofrem, nem se os motiva para o bem, enfiando-lhes o dedo nas feridas.

IHU On-Line – Em que medida o filme Avatar contribui para pensar as relações entre a revolução tecnológica e a questão da sensibilidade humana diante da fé e da mística?

Luiz Vadico – Fico satisfeito que após minha entrevista de 2010 , o filme Avatar reapareça em nossa conversa. E a resposta provavelmente será a mesma, mas agora respaldado pela passagem do tempo. Em que medida ele contribui? Em nada. Relativamente a estas questões o filme jamais teve nada a dizer. Como nós afirmávamos na época, a grande questão relativa a esta obra eram os efeitos especiais e o quanto se estava avançando neles naquele momento. Apesar de todo ruído suscitado na mídia, na internet e até mesmo em veículos religiosos, o efeito deste filme foi apenas nos deslumbrar com a tecnologia, e atualmente poucos se lembram até de mencioná-lo. Os que se lembram criticam o roteiro simplista. Avatar é um típico filme da indústria contemporânea, escudado na tecnologia e na hibridação de gêneros; é ao mesmo tempo um filme de guerra, de ficção científica e de romance. Está carregado das representações estéticas e ético-morais dos filmes de guerra do Vietnã. Então, nem neste quesito ele era novo. Assim como naquela época, volto a afirmar: o “panteísmo” ali colocado, e que preocupava algumas pessoas, era apenas um pano de fundo inócuo para os efeitos especiais, e que por ser “inócuo” não iria incomodar as lideranças ou os espectadores que possuem uma fé religiosa. Não incomodou, não fez discípulos e já passou. Se ele pode contribuir para as nossas reflexões que seja para que não caiamos nos discursos arrojados do marketing cinematográfico e que nem saiamos dizendo que as questões espirituais pipocam por todos os lados. Elas estão no Campo do Filme Religioso, nos filmes que assumidamente se pretendem religiosos. No mais, são apenas fragmentos de discursos e elementos do sagrado que não se constituem numa imagem mais clara ou definida do que é o sagrado, e nem pretendem que as pessoas adotem as suas concepções.

IHU On-Line – Qual a especificidade da obra cinematográfica de Bergman, em especial falando de O sétimo selo, em relação ao debate sobre as metáforas e angústias contemporâneas? O que representa o protagonista do filme jogando xadrez com a morte?

Luiz Vadico – Esta é uma pergunta para um especialista em Bergman, o que não é o meu caso. Direi apenas um pouco do que conheço. Bergman realiza um cinema sobretudo autoral e que, portanto, está permeado por sua experiência pessoal. Filho de um pastor protestante numa sociedade bastante laica, como já o era a Suécia naquele momento, a sua obra reflete suas angústias e contradições. Anteriormente eu havia afirmado que achava fantástica a cena do protagonista jogando xadrez com a morte. O que ela significa? Esta é apenas uma interpretação subjetiva. Todos cotidianamente jogamos xadrez com a morte. Em última instância, é a morte que sempre nos preocupou. Parte de nossa relação com Deus é dada pela mediação com a morte. Cotidianamente oramos para exorcizar o nosso medo dela. Comportamo-nos bem objetivando a vida após a morte. Então, pensemos em toda a complexidade de um jogo de xadrez, seus movimentos refletidos e pensados, a busca de se vencer o jogo derrotando o adversário, e todo o prazer de um jogo que dura mais quanto mais é disputado. Gosto desta cena, pois ela é irônica, trágica e cheia de esperança. É evidente que a morte ganhará o jogo, mas a esperança habita no tempo de duração deste jogo que reside em nossa capacidade de sermos estrategistas. No tabuleiro necessitamos olhar a posição de todas as peças e avaliar constantemente a evolução e a reconfiguração do jogo. É um conjunto de sutilezas. É ao mesmo tempo cerebral e emocional, pois para a realização de uma boa partida se exige disciplina, paciência, bom senso, sagacidade, perseverança e fé, pois não se pode desistir quando aparentemente estamos perdendo. Isso porque basta um lance de sorte para o jogo todo virar. Muito depende de nós e muito depende do adversário. Mas, neste caso, o adversário é a morte. O que importa é apenas o jogo e o tempo que ele demora, pois a vitória não nos pertence. O nosso prêmio é a extensão dele pelo maior tempo possível. Isso é angustiante, mas belo.

IHU On-Line – Quem é o Deus do cinema brasileiro e como ele se difere do Deus de obras cinematográficas europeias e hollywoodianas?

Luiz Vadico – Não possuímos muitas produções no Brasil onde Deus seja o assunto. No entanto, as poucas realizadas nos últimos dez anos conseguiram com certa felicidade instaurar uma imagem de Deus bastante concorde com a nossa cultura. Gosto da imagem que fizemos de Deus para nós. O filme Deus é brasileiro, do diretor Cacá Diegues, de 2003, é bastante emblemático. É uma comédia. Deus está cansado de cuidar das tolices dos homens e seus erros e quer tirar umas férias, mas para isso precisa de um substituto à altura. Então, vem para o Brasil e com a ajuda do personagem Taóca, vivido por Wagner Moura, irá sair em busca deste substituto. Taóca, como não poderia deixar de ser – pois é um brasileiro esperto – irá procurar resolver os seus problemas pessoais se beneficiando desta inusitada relação. O filme irá explorar com leveza as questões relativas ao livre-arbítrio. O seu título é um antigo dito popular “Deus é brasileiro”, que sempre fez referência à abundância que existe em nosso país e ao fato de que não vivemos como em outros lugares do mundo catástrofes naturais constantes. Não temos vulcões, nem terremotos, e até há pouco tempo também não tínhamos furacões. Possuímos um imenso litoral coalhado de praias maravilhosas e um clima que varia de ameno a quente. Muito sol, muitas matas, rios e cachoeiras. Enfim, um território que sempre beirou ao paradisíaco ainda mais se comparado a outras regiões do globo. Não é de se estranhar que este dito popular tenha aqui nascido. E, se Deus é brasileiro, também não é de se estranhar que ao pensar em tirar as suas merecidas férias ele desse uma passada antes por aqui para encontrar um substituto. O protagonista é vivido pelo ator Antônio Fagundes. Conhecido por protagonizar vários papéis importantes nas telenovelas da Rede Globo, ele traz para o seu personagem os elementos típicos que desenvolveu e agregou junto da sua atuação ao longo dos anos. É um ator marcado pela masculinidade evidente, por seu “trato” com as mulheres, e aquilo que algumas pessoas definem como charme, sempre relacionado à sedução, seja para angariar simpatia ou algo mais. Um ator carismático, cujos personagens sempre tiveram alguns traços de “bonachão”. Ás vezes sério, sempre de caráter íntegro, em geral duro e correto, mas “amolecendo” no final, terminando por ser condescendente com os que estão à sua volta. Poderíamos vê-lo como uma espécie de “paizão”, cumpre o seu papel masculino, encantando as mulheres, é amigo do correto, no entanto, é compreensivo diante dos contextos difíceis.

A diferença entre o nosso deus e o deles

Neste filme de imediato já notamos a diferença entre o nosso deus e o de Hollywood, como Oh, God (1977), ou os seus representantes como em O céu pode esperar (diversas versões), ou ainda a sua versão com Morgan Freeman em O Todo Poderoso (Tom Shadyac, 2003), nosso deus não usa terno e gravata. Ele aparece com uma simples camisa xadrez e com uma calça folgada sustentada por suspensórios, e só não está de chinelos por que o papel de Deus parece exigir ao menos esta seriedade. Os seus gestos físicos são tranquilos e relaxados, nada de posição majestática e nem de falas longas e arrastadas. Um brasileiro. Ah, detalhe, um brasileiro classe média alta. O que garante certo distanciamento entre ele e seus beneficiados. É importante notar como esta imagem é bem parecida com a que nos será proporcionada no filme Maria, Mãe do Filho de Deus (Moacyr Goes), de 2003. O Jesus Cristo estabelecido pelo ator Luigi Barricelli tem muito das características citadas acima. É um homem doce e cordial, afável com as pessoas e está constantemente abraçando os seus amigos e sorrindo. O seu corpo é tocado constantemente pelas pessoas, até mesmo o Diabo, vivido por José Dumont, toca-o, chegando mesmo a acariciá-lo. A diferença entre aquele Deus e este é que este Jesus é mais classe média baixa, ainda mais próximo do povo. Até o momento esta é a imagem de Deus no Brasil. Um homem com características comuns, amigo dos amigos, correto, charmoso, fisicamente próximo, ao mesmo tempo duro e condescendente. Bastante distante do deus hollywoodiano, como por exemplo, de Os Dez mandamentos, que era uma coluna de fogo. O nosso também é diferente daquela voz over dos filmes televisivos dos anos 1970, impositiva, cheia de majestade e autoridade. Ainda difere daquele que aparece nas comédias, de terno e gravata, com ares de executivo. Simpático, mas fisicamente distante e de gestos recatados, e que diante das pessoas sempre faz o papel de inflexível, até o momento final do filme, onde termina se tornando uma espécie de cúmplice dos personagens, mas sem revelá-lo. Podemos especular até que o Deus brasileiro é um deus cotidiano, ele está próximo, não aguarda grandes momentos para manifestar-se. É um pouco como a diversidade cultural e religiosa de nosso país, vive em paz com todas as diferenças. Ele é maleável. Assim como parte da população brasileira que muda de religião conforme algumas circunstâncias da vida, e diz sem o menor constrangimento que “Deus é o mesmo em todas elas”.

IHU On-Line – Como aparece no cinema a posição humana diante do fim dos tempos, do Apocalipse? Que obras o senhor destaca como mais significativas em relação a esse tema? Melancolia é uma delas?

Luiz Vadico – Os diversos filmes massivos, cujo tema é a destruição global, têm sempre nos mostrado personagens aturdidos com o anúncio do fim iminente. Relativamente aos protagonistas estes aparecem como pessoas de ação. Eles até aceitam a catástrofe. No entanto, irão buscar minimizar as suas consequências ao máximo, salvando o maior número possível de pessoas. É bastante comum o autossacrifício em diversas personagens ao longo da narrativa. E todas estas produções têm embutidas em si o sentimento de culpa. Essa culpa se traduz atualmente como o resultado da exploração excessiva do planeta; a ambição e arrogância desmedida dos ricos. Vemos muitas vezes, principalmente nos filmes americanos, o Estado à frente das medidas necessárias para minimizar a catástrofe, sendo a figura presidencial uma das centrais. Nesse sentido, mesmo que os “executivos” sejam ruins, o Estado americano é bom, e de fato – no filme –, representa os interesses do povo americano. Também nos é mostrado como este Estado possui um papel de liderança no mundo, chegando a coordenar diversos países e nações diante da terrível notícia do apocalipse. É interessante como as personagens em geral se decidem pelo heroísmo diante do inevitável. Há muita misericórdia e abnegação. Os laços familiares e de companheirismo são muito estreitados. Talvez um pouco como gostaria Calvino , o escolhido por Deus comporta-se com a dignidade característica de quem ganhou os céus.

Infelizmente, mesmo sendo um pesquisador ligado diretamente ao cinema massivo, sinto que não conseguiria escolher uma obra que pudesse ser “significativa” sobre este tema. Pois, sem minimizar de qualquer forma a importância do gênero, não se trata de um tipo de produção que se deseja “significativo”; é entretenimento, puro e simples entretenimento. São filmes que geralmente atraem o público que deseja ver os efeitos especiais de destruição em massa. As cenas que mais marcam são as de cidades sendo engolidas pelo mar, os monumentos sendo destruídos por meteoros, etc. É sobretudo uma estética da destruição. Não podemos deixar despercebido o grande valor moral dos protagonistas destas produções. Que são, de alguma forma, modelos inspiradores. E a mensagem evidente é o valor dos americanos enquanto indivíduos e nação.

Melancolia

Talvez Melancolia possa vir a se destacar ao longo dos anos como um filme que teve uma proposta relativamente diferente junto ao tema. Provavelmente serão escritos artigos sobre como o humano se defronta com o Apocalipse, e aqui não o humano “massa”, mas as pessoas comuns, onde o Estado não tem um papel evidente. Mas isso de alguma forma me incomoda, pois até o momento esta não parecia ser uma questão. A questão anterior, numa outra entrevista, era algo como: por que o cinema insiste em fazer filmes apocalípticos? Por que a questão do “humano” diante do apocalipse não se impôs desde o início? A questão surgiu por que é um filme de Lars von Trier? Por ser um filme autoral? Bem, se este for um dos motivos, é importante lembrar que o autor também realiza esta produção num momento em que o merchandising apocalíptico está no auge, mostrando certo oportunismo antes já percebido neste diretor, como foi o caso do lançamento do Dogma 95. O pouco que vi do filme apenas me mostrou mais personagens torturadas física e emocionalmente como várias outras elaboradas por ele. Esteticamente é um filme que deixa a desejar, reiterando a utilização da câmera na mão, retornando à estética do real; que é apenas uma estética, e não o “real”. No que tange ao estilo de Lars von Trier não vi novidades. Com certeza é um filme que irá cair no gosto de um determinado nicho de mercado, o dos cinéfilos, onde também não há mal algum.

O que chamo atenção é que a questão do humano diante do apocalipse já poderia ter sido feita, mesmo que ela não fosse evidente. Será que um filme autoral tem realmente mais a nos dizer sobre isso do que toda a produção do gênero? Sinto que não devemos fazer uma hierarquização destes filmes como objeto de atenção, ou até mesmo de pesquisa, pois resvalaremos novamente numa postura elitista. Como pôde ver acima, sem muito esforço consegui citar Calvino para o comportamento de alguns personagens. Há valores morais e comportamentos que inspiram para o Bem. Isso sem fazer uma análise profunda, deve existir muita coisa religiosa lá que tem sido deixada de lado por se tratarem de filmes do mainstrean, e isto é um evidente equívoco.

IHU On-Line – Gostaria de acrescentar mais algum comentário sobre o tema?

Luiz Vadico – O apocalipse como assunto quer seja do cinema, da televisão ou da internet, começou a ser insuflado há poucos anos por uma série de programas televisivos sensacionalistas, levados a cabo pelo Discovery Channel e pelo History Channel. O motivo, como todos sabem, é o suposto “Apocalipse Maia”. Cinco anos atrás pouca gente sequer sabia da existência dos Maias quanto mais do seu calendário. Os que possuem acesso à TV paga ou à internet sabem que fomos bombardeados semanalmente com programas documentários que instauraram o problema. “Estariam os Maias corretos? E se estavam corretos, como será o fim do mundo? O mundo irá mesmo acabar em 21 de dezembro de 2012?” Sinto que mais do que um interesse real da população, este foi um problema criado pela mídia. Nos Estados Unidos e em outros países a repercussão disso foi muito maior, afetando de fato algumas milhares de pessoas. Em outra oportunidade, chegamos a dizer que isso, no que tange à religiosidade americana, é bastante compreensível graças à forma de protestantismo que lá se estabeleceu. Mas, no que tange ao Brasil, o que fizemos foi bem característica a série televisiva: “Como Aproveitar o Fim do Mundo?”, que só podia ser uma comédia. E acho que os assuntos ali propostos merecem uma análise detida. Por que não, em vez de se preocupar com Melancolia, não verificarmos a série televisiva? Afinal a proposta é a mesma, diante do Apocalipse como o ser humano se comporta? É algo que venho reiteradamente chamando atenção. O fato de vivermos numa sociedade midiatizada e de recebermos muitos produtos americanos, ou de outros países, e lidarmos com estes produtos, não quer dizer que as suas questões sejam nossas questões, ou, sendo condescendente, que a sua forma de lidar com o problema seja a nossa. Diante da preocupação séria de alguns segmentos da população americana, o melhor que conseguimos fazer foi rir. Este é o nosso país. Sinto que se algum deus aqui alocado ameaçar de fato com o Apocalipse, nós brasileiros mudaremos para outra religião onde esta ameaça não exista, mesmo que alguns fiquem inicialmente preocupados com isso. Se o Apocalipse vier realmente a acontecer, sei que alguns dirão: “E não é que desta vez era sério!”

Leia mais...

>> Luiz Vadico já concedeu outras entrevistas à IHU On-Line. O material está disponível no sítio do IHU (www.ihu.unisinos.br).

O “Cristo da Fé” e o “Cristo Cinemático”. As imagens de Jesus no cinema. Entrevista publicada na IHU On-Line, número 288, de 06-04-2009, disponível em http://migre.me/46kDM 

Cinema e religião: as sutis alterações causadas na teologia tradicional. Entrevista publicada no sítio em 16-01-2010, disponível em http://bit.ly/12phMgk 

A atualidade da cristologia fílmica. Entrevista publicada na IHU On-Line, número 355, de 28-03-2011, disponível em http://bit.ly/eVEkFJ 

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