Edição 199 | 09 Outubro 2006

Jesus e Maria Madalena

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O discutido romance O Código da Vinci. Rio de Janeiro: Sextante, 2004,  de Dan Brown, que também chegou ao cinema, suscitou muitos comentários. Entre os comentários bíblico-teológicos se destaca o livrinho de Bernard Sesboüé, jesuíta, um dos mais renomados teólogos franceses, já membro da Comissão teológica internacional. Seu livro-entrevista Il Codice da Vinci spiegato ai suoi lettori (O Código da Vinci explicado aos seus leitores), Brescia: Queriniana 2006, propõe voltar ao essencial, ou seja, à Bíblia, e restabelece algumas verdades sobre o cristianismo.

A entrevista que segue foi publicada no boletim eletrônico Teologia@Internet, da página www.queriniana.it.
Sobre o filme O Código da Vinci, confira a entrevista especial realizada pela IHU On-Line com o jesuíta Jesús Hortal, reitor da PUC-Rio, intitulada A polêmica de O Código da Vinci e originalmente publicada no site do IHU, www.unisinos.br/ihu, editoria Notícias Diárias, em 20-05-2006. O material também foi publicado pela edição 181 da IHU On-Line, de 22-05-2006. Nessa mesma edição o Prof. MS. Gilmar Hermes resenhou o filme.

Vamos imediatamente ao coração do problema. O que houve entre Jesus e Maria Madalena?

Absolutamente nada. Não impostemos o problema de maneira anacrônica. Maria Madalena é o nome de um personagem composto que atravessou a história e a cultura religiosa ocidental durante dois mil anos. Quando se considera mais de perto o texto dos evangelhos, a gente se dá conta que este personagem é o resultado de uma amálgama entre três mulheres efetivamente mencionadas pelos redatores daqueles textos. Então, a sua pergunta se refere a qual destas três mulheres?

Dan Brown não se deu o trabalho de ir aos evangelhos. Situou o seu romance sobre o personagem apresentado no decurso do tempo sob vultos muito diferentes. Cada época, com efeito, se ‘projetou’ sobre Maria Madalena em função do próprio ideal e das próprias expectativas. Por exemplo, o fato de ser uma mulher era antes uma objeção para os autores do século 19, enquanto nos séculos 20 e 21 se tornou uma grande qualificação. Esta Maria Madalena pertence a uma lenda piedosa e edificante: jamais existiu. Seu sucesso derivou da associação entre a grande pecadora e uma amiga muito próxima de Jesus: tanto mais santa quanto mais fora pecadora.

Houve três Maria Madalena?

Exato. Há, em primeiro lugar, Maria a Magdalena, originária de Magdala, aldeia situada às margens do lago de Tiberíades; há Maria de Betânia, irmão de Marta e de Lázaro, grupo familiar que vivia nessa vila situada nos arredores de Jerusalém; há, enfim, uma mulher que não é chamada pelo nome, mas que é apresentada como ‘pecadora’ na cena da refeição de Jesus em casa de Simão o fariseu .

Maria de Magdala é mencionada três vezes nos evangelhos. Uma primeira vez (Lc 8, 1-3) nos é dito que ela fazia parte do grupo de mulheres que seguiam Jesus e o serviam, isto é, supriam as necessidades de seu grupo e assistiam financeiramente no curso de sua missão. Estas mulheres tinham sido curadas de maus espíritos e de enfermidades. É assim que Jesus havia libertado Maria de Magdala “de sete demônios”.
Isto, em todo o caso, não quer dizer que ela fosse uma pecadora. No espírito daquele tempo o tema da expulsão dos demônios estava ligado à cura das doenças, como se vê com freqüência nos evangelhos. Em seguida, encontramos Maria de Magdala junto com Maria, mãe de Jesus e com uma outra Maria, dita de Cléofas, aos pés da cruz (Jo 19,25, Mt 27, 55 s.), onde, sem dúvida, havia ainda outras mulheres. Muitas mulheres trazem o nome de Maria, então extremamente difundido, o que não facilita a identificação. Encontramo-la de novo, sempre entre um grupo de mulheres, no túmulo de Cristo na manhã da resssurreição, vindas para completar o embalsamamento de Jesus com aromas, e estas mulheres descobrem a tumba vazia (Mt 28,1; Mc 16, 1s.; Lc 24,1).

Nestas três menções de seu nome, Maria de Magdala não tem uma personalidade própria: pertence ao grupo. O fato de seu nome vir precisado mostra somente que ela era uma figura importante do grupo e particularmente fiel a Jesus.

No que diz respeito à ressurreição, as coisas são narradas de maneira diversa no Evangelho de João. O quarto evangelista consagra a Maria de Magdala a primeira narrativa da aparição de Jesus (Jo 20, 11-18). Ela está chorando perto do túmulo. Inclinando-se, vê dois anjos que lhe perguntam por que chora. Responde-lhes que levaram embora o corpo de seu Senhor. Voltando-se, vê então Jesus, mas não o reconhece, confundindo-o com o jardineiro. À pergunta de Jesus sobre suas lágrimas, ela dá a mesma resposta desolada. É então que Jesus a chama pelo nome “Maria!”, e ela lhe dá, em retorno, o título de “Rabbuni”, diminutivo de rabbi, que quer dizer ‘mestre’, com um matiz de ternura. Maria reconhece, então Jesus, o qual detém o impulso dela em direção a ele, dizendo-lhe que não o detenha, por que está voltando ao seu Pai e não é mais do nosso mundo: agora pertence à esfera da vida divina. A cena termina com o envio de Maria em missão, para que comunique aos discípulos a notícia da ressurreição: ela será, assim, a primeira testemunha e a primeira apóstola de Jesus ressuscitado. Esta cena supõe uma relação afetiva pessoal entre Jesus e Maria. É muito, mas não é tudo. Como veremos agora, também as outras duas mulheres atestam um grande afeto para com Jesus.

E a segunda Maria?

A segunda Maria é Maria de Betânia, irmão de Marta e de Lázaro. Também ela está presente nos três episódios. No primeiro, narrado por Lucas (Lc 10, 38-42), Jesus é escutado em sua casa: Marta atende o serviço de preparo da refeição, enquanto Maria escuta simplesmente a palavra de Jesus. Marta protesta pedindo a Jesus que mande a irmã ajudá-la. Jesus responde que Maria é a que escolheu a melhor parte, porque escutou a palavra de Deus. Esta cena escandaliza espontaneamente as mães de família que preparam a refeição na cozinha, enquanto os convidados, o marido e os filhos tomam aperitivos, conversando alegremente na sala ao lado. Jesus não critica Marta: certamente não lhe teria dito nada, se ela não se tivesse lamentado com ele da irmã. Responde-lhe simplesmente que se envolve com muitas tarefas, enquanto uma coisa, sem dúvida um só prato, seria certamente suficiente. Maria foi em busca do essencial. Toda a cena geria em torno desta palavra de Jesus sobre “a melhor parte”. A tradição cristã viu nas duas irmãs o símbolo da vida contemplativa, vale dizer, a vida consagrada principalmente à oração, como aquela dos monges e das monjas, e o símbolo da vida ativa.

A segunda cena se encontra no Evangelho de João (11,1-44): Lázaro, o amigo de Jesus, morreu há pouco. É Marta, mais impetuosa, que corre ao encontro de Jesus para dizer-lhe: “Senhor, se tivesses estado aqui, meu irmão não teria morrido”. Jesus a convida a crer na ressurreição. Marta exprime, então, sua fé na ressurreição no último dia. Jesus lhe responde com a célebre proclamação: “Eu sou a ressurreição e a vida. Quem crê em mim, também se morrer, viverá”. Maria, chamada por Marta, chega chorando a Jesus e lhe declara a mesma coisa que a irmã. À vista de tanto sofrimento, Jesus freme de emoção e se mostra perturbado, devido ao seu afeto por Lázaro. Marta é mais ativa e empreendedora, Maria mais sensível. Mas Jesus não faz diferença entre as duas irmãs. Ele realiza, então, o milagre de restituir a vida a Lázaro.

A terceira cena é a da refeição que Jesus vem consumir em Betânia, em casa dos seus três amigos, nos dias antes da Páscoa. Marta está sempre ocupada em servir. Maria se levanta para ungir os pés de Jesus com perfume de grande valor, enxugando-os com os seus cabelos (Jo 12,1-11), gesto que encontraremos em breve na pecadora de que fala são Lucas. Mateus ((26,6-13) e Marcos (14,3-9) situam a mesma cena em casa de Simão o leproso e não mencionam pelo nome a mulher que cumpre a unção. João parece conhecer os fatos mais de perto.

E há ainda uma outra Maria?

A terceira mulher em causa não tem nome: por Lucas (7,36-50) é chamada simplesmente de “uma pecadora”, o que significa uma pecadora ‘pública’, uma prostituta. Jesus é convidado a uma refeição em cada de Simão o fariseu, que o recebe antes friamente, sem cumprir os habituais gestos de cortesia. Durante a ceia entra aquela mulher e, chorando, inunda os pés de Jesus com as próprias lágrimas, enxuga-os com os seus cabelos, cobre-os de beijos e unge-os com o perfume que trouxe. Simão fica chocado ao ver que Jesus se deixa tocar por esta mulher impura, e o Nazareno lhe narra uma breve parábola para fazer-lhe entender que, se ele pode ser menos pecador que ela, não cumpriu, no entanto, nenhum gesto de afeto para com ele. A mulher, ao contrário, manifestou muito amor e por isso os seus numerosos pecados lhe são perdoados. Quando Jesus diz à mulher “São-te perdoados os teus pecados”, os presentes ficam ainda mais escandalizados, porque os pecados os ode perdoar somente Deus. O amor que esta mulher expressou é um amor de arrependimento, um amor espiritual; e é ainda um amor que se expressa com gestos muito carnais: beijar os pés, ungi-los com perfume e servir-se dos próprios cabelos para enxugá-los.

Jesus amou, então, três mulheres?

Tudo depende do sentido que se dá à palavra ‘amar’. No sentido de um afeto profundo, ele certamente amou ainda outras. Estas relações femininas de Jesus nos dizem simplesmente que ele tinha um coração de homem, capaz de estreitar relações afetivas privilegiadas, com homens e com mulheres: ele amou o jovem rico que o interrogava para saber o que devia fazer de bom para obter a vida eterna (Mc 10,19); amava Lázaro, seu amigo, e chorou diante de seu túmulo, amava de modo mais particular o apóstolo João. Amava sua mãe, amava as duas Marias, a de Magdala e a de Betânia, amou a pecadora. Isto não quer dizer que tenha tido relações sexuais com estas mulheres. Pensá-lo é uma invenção de todo gratuita.

O importante é ver claramente como três mulheres diversas tenham expressado, com um ardor totalmente feminil, o seu afeto por Jesus. Nada indica que Jesus tenha tido relações amorosas com uma ou com a outra. É preciso ser sensível ao clima dos contos evangélicos que nos colocam numa ordem de relações de todo diversa. Acusa-se freqüentemente o cristianismo de desprezar o humano, de não honrar a feminilidade. Os evangelhos mostram o contrário: Jesus é humano, sensível, afetuoso. Por que as suas condutas deveriam, de repente, suscitar suspeitas?

A coisa, na realidade, mais difícil de aceitar é a virgindade de Jesus. A sexualidade tornou-se objeto de tal obsessão que o testemunho de uma castidade perfeita parece coisa inaceitável. Ora, Jesus não hesitou em tomar sobre si o insulto de ‘eunuco’, que lhe terá sido dado sem nenhum escrúpulo. Mas ele precisa que se distinguem três tipos de eunucos: aqueles que nasceram tais, aqueles que se mutilaram, e aqueles que fizeram tal escolha “por causa do reinos dos céus”. E conclui a reflexão com esta palavra: “Quem puder compreender, compreenda!” (Mt 19,12), o que faz pensar que também em seu tempo a coisa não fosse fácil de aceitar. Jesus consagrou todas as forças do seu ser ao anúncio do evangelho e do reino: é sua missão que dá sentido ao seu celibato. Como observou com fineza uma senhora, a virgindade de Jesus é um mistério. Porque a encarnação eliminou apenas este setor da experiência humana, tão central? Porque em sua vida não encontramos a mais remota alusão que indique ter ele participado da experiência física da sexualidade? Por que a tradição exclui com extremo rigor qualquer suspeita desta ordem?

Nós todos, em todo o caso, conhecemos não apenas celibatários que conduzem uma vida autenticamente humana, mas também homens e mulheres que não se casam porque quere consagrar a própria vida a um ideal de serviço dos outros, que os mantém totalmente ocupados. A castidade do celibato não é monopólio da vida dos religiosos, das religiosas e dos sacerdotes. É, em tudo isto não há nada que deva desvalorizar o matrimônio.
 

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