Edição 408 | 12 Novembro 2012

“Para os palestinos, a perspectiva de uma paz verdadeiramente justa é improvável”

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Thamiris Magalhães / Tradução: Luís Marcos Sander

Creio que o Kairós Palestina deu aos cristãos no mundo árabe um modelo novo e diferente de como necessitam participar de sua própria sociedade, de seus assuntos e suas lutas; procura lembrar às pessoas de que não faz sentido nos isolarmos e vivermos com medo, aponta Rifat Odeh Kassis

O documento Kairós Palestina: “Um momento de verdade”, é a voz dos cristãos palestinos e sua mensagem é para si mesmos, em primeiro lugar, e depois para o mundo, explica Rifat Odeh Kassis, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Segundo ele, a mensagem surgiu do coração do sofrimento, mas está repleta de fé, esperança e amor. “Levou algum tempo até o documento ser concluído por causa das origens diferentes dos autores, da complexidade da situação e da dificuldade de analisá-la e chegar a um acordo quanto à análise. A finalidade do documento é enviar uma mensagem ao nosso povo para ser paciente, firme e para resistir a seus ocupantes e opressores de modo não violento”, diz. E completa: “Também é uma mensagem às igrejas no mundo inteiro para se envolverem na luta e não serem cúmplices dos opressores permanecendo em silêncio. Elas precisam erguer a voz contra as injustiças cometidas contra os palestinos nas mãos do Estado israelense; precisam trabalhar construtivamente para suspender essa opressão e conceder aos palestinos seus direitos inalienáveis”.

Nascido em Beit Sahour, na Cisjordânia, Rifat Odeh Kassis atua há muito tempo na luta palestina numa série de frentes não violentas. Em 1991, fundou a primeira ONG palestina independente para os direitos das crianças, uma seção nacional do movimento pelos direitos humanos das crianças com sede em Genebra. Em 2005, foi eleito presidente desse movimento em nível mundial e reeleito em 2008. Desde novembro de 2008, também dirige a seção palestina do movimento. Em janeiro de 2005, trabalhou em Genebra como coordenador internacional e gerente de projetos do Programa de Acompanhamento Ecumênico na Palestina e em Israel do Conselho Mundial de Igrejas – CMI. Ele foi a força motriz e um dos coautores do documento Kairós Palestina “Um momento de verdade” e foi coordenador geral do Grupo Kairós Palestina desde seu início. Em 2006, publicou seu primeiro livro, intitulado “Palestina: Uma ferida sangrenta na consciência do mundo”, e, em 2008, foi coautor de um livro intitulado “Cristãos palestinos: fatos, números e tendências”. Em 2011, publicou seu terceiro livro, “Kairós para a Palestina”.

Confira a entrevista.


IHU On-Line – Em sua opinião, a analogia do que ocorre entre israelenses e palestinos na região com o apartheid sul-africano tem sentido? Em que medida?

Rifat Odeh Kassis –
Sim. Há muitas semelhanças entre Israel e a África do Sul do apartheid. Muitas das marcas de separação e discriminação são semelhantes: dois tipos de leis, dois tipos de estradas, dois tipos de tratamento, etc. Mas, embora as semelhanças sejam úteis para a reflexão, a questão aqui é que Israel está se tornando um Estado de apartheid por conta própria, e não há necessidade de comparações com a África do Sul. O tribunal Russell que teve lugar na África do Sul em 2011 condenou Israel por infligir tratamento de apartheid aos palestinos.


IHU On-Line – O que é e no que consiste o documento Kairós Palestina? Onde se originou e qual seu objetivo?

Rifat Odeh Kassis –
O documento Kairós Palestina: “Um momento de verdade ” é a voz dos cristãos palestinos e sua mensagem é para si mesmos, em primeiro lugar, e depois para o mundo. A mensagem surgiu do coração do sofrimento, mas está repleta de fé, esperança e amor. Levou algum tempo até o documento ser concluído por causa das origens diferentes dos autores, da complexidade da situação e da dificuldade de analisá-la e chegar a um acordo quanto à análise. A finalidade do documento é enviar uma mensagem ao nosso povo para ser paciente, firme e para resistir a seus ocupantes e opressores de modo não violento. Também é uma mensagem às igrejas no mundo inteiro para se envolverem na luta e não serem cúmplices dos opressores permanecendo em silêncio. Elas precisam erguer a voz contra as injustiças cometidas contra os palestinos nas mãos do Estado israelense; precisam trabalhar construtivamente para suspender essa opressão e conceder aos palestinos seus direitos inalienáveis.


IHU On-Line – Que resultados já alcançou em relação ao conflito no mundo árabe?

Rifat Odeh Kassis –
O documento Kairós teve um grande efeito, tanto em nível nacional como internacional. Mais de três mil figuras cristãs palestinas assinaram o documento e o assumiram. Ele foi bem acolhido pelas lideranças palestinas e todos os seus partidos políticos. Também foi bem acolhido pelos clérigos e eruditos muçulmanos. Além disso, muitos grupos judaicos que representam a corrente principal veem o documento como uma nova base para o diálogo inter-religioso, um diálogo baseado na justiça e na necessidade de pôr fim à opressão dos palestinos a fim de assegurar uma paz justa para todos.

 
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Em nível internacional, o documento foi recebido por muitas igrejas, muitas das quais responderam positivamente. Dentro do mundo árabe, vários indivíduos e comunidades o receberam como um sinal bastante positivo, e muitos artigos foram escritos sobre o documento, descrevendo-o como uma iniciativa cristã altamente valorizada e necessária nesta época de grande distanciamento e ásperas fricções entre muçulmanos e cristãos. Creio que o Kairós Palestina deu aos cristãos no mundo árabe um modelo novo e diferente de como necessitam participar de sua própria sociedade, de seus assuntos e suas lutas; procura lembrar às pessoas de que não faz sentido nos isolarmos e vivermos com medo. Essa é a importância da conclamação do Kairós: envolver-se, participar. Afinal, esse é nosso país e essa é nossa sociedade.


IHU On-Line – Que posição o Conselho Mundial de Igrejas – CMI tem frente ao conflito entre Israel e Palestina? Quais suas recomendações e ações visando contribuir para a paz na região?

Rifat Odeh Kassis –
O Conselho Mundial de Igrejas – CMI tem mantido uma política muito estável em relação a Israel/à Palestina desde seu surgimento em 1948. Por um lado, reconheceu o Estado de Israel; ao mesmo tempo, reconheceu o direito dos palestinos a um Estado independente, o direito dos refugiados de retornar e o direito à autodeterminação. Desde aquela época, o CMI permaneceu envolvido através de diferentes meios e programas. O Programa de Acompanhamento Ecumênico na Palestina e em Israel é um exemplo desse envolvimento. O mesmo se aplica ao Fórum Ecumênico Palestina/Israel, onde se tenta coordenar todas as iniciativas de defesa de direitos tomadas pelas diferentes igrejas em todo o globo e colocá-las sob um único guarda-chuva para aumentar sua eficiência. Muitos outros programas mostraram a mesma solidariedade com os oprimidos em geral e com os palestinos em particular, conclamando a uma paz justa na região – uma paz em que os palestinos assegurem sua liberdade, independência, autodeterminação e o direito de retornar para os refugiados, e em que toda discriminação racial contra os palestinos que vivem em Israel tenha fim.


IHU On-Line – Quais os prós e contras da criação de dois Estados independentes na região de conflito? De que maneira isso mudaria o conflito? Que outra solução você vê para o conflito israelo-palestino?

Rifat Odeh Kassis –
Em minha opinião, qualquer solução, quer estabeleça um Estado, quer dois, precisa se basear na justiça e igualdade para todos. A solução da criação de dois Estados não será completa se os palestinos que permanecem dentro de Israel não receberem direitos iguais. Qualquer solução que não reconheça o direito de retornar dos refugiados será incompleta, e tampouco porá fim ao conflito. Assim, para mim, o que temos de examinar são as condições da solução, e precisamos assegurar que essas condições sejam justas.


IHU On-Line – Qual o número de cristãos e suas principais denominações no território Israel/Palestina?

Rifat Odeh Kassis –
Os números são uma questão complicada na parte do mundo em que nós vivemos; eles dependem da forma como se conta. Ao contar os cristãos, algumas estatísticas incluem os russos que emigraram para Israel recentemente bem como outras pessoas de procedência internacional que vivem na Palestina, ao passo que outras só contam os árabes. Isso faz com que seja difícil obter um número claro. Nossa estimativa é que haja 120 mil cristãos dentro de Israel e 60 mil dentro da Palestina. Além disso, cerca de 600 mil vivem na diáspora.


IHU On-Line – Quais foram as causas pelas quais você foi preso? O trânsito de não judeus em território israelense é seguro?

Rifat Odeh Kassis –
Fui preso por causa de meu engajamento político e social. Nunca foi condenado e fui preso administrativamente, o que significa que no processo foram usados arquivos ocultos que ninguém, inclusive os advogados, podia ler. Os palestinos não podem entrar em Israel sem permissão e autorização de segurança. O mesmo se aplica à Jerusalém Leste ocupada. Israel nos trata como suspeitos e com uma atitude de “culpado até prova em contrário”. Não é fácil obter permissões, especialmente para as pessoas politicamente atuantes ou presas por Israel.


IHU On-Line – A questão dos direitos humanos tem sido respeitada pelas autoridades em ambos os lados?

Rifat Odeh Kassis –
O histórico de Israel no tocante ao respeito aos direitos humanos é muito ruim e tem sido criticado por todas as instituições de direito internacional e pela Organização das Nações Unidas – ONU. A Autoridade Palestina tampouco tem um histórico excelente em termos de respeito aos direitos humanos, embora haja julgamentos para responsabilizar seus integrantes, e a maioria das organizações de direitos humanos aqui trabalha nessa área. É importante acrescentar que a Autoridade Palestina não tem autoridade real; no que diz respeito à maioria das violações dos direitos humanos, como a detenção de ativistas, ela segue as instruções de Israel.


IHU On-Line – Do que se trata a “Paz Justa” e de que maneira ela vem sendo trabalhada para a resolução do conflito no mundo árabe?

Rifat Odeh Kassis –
Para os palestinos, a perspectiva de uma paz verdadeiramente justa é improvável. Estamos falando sobre uma paz justa relativa, já que os palestinos foram tirados de seus lares e de seu país em 1948 e uma ocupação estrangeira tomou sua terra. A própria solução da partição da terra foi irresponsável e negou aos palestinos seus direitos em sua própria pátria. Assim, a paz justa relativa é, para os palestinos, ter seu próprio país com o direito à autodeterminação, o direito de retorno para os refugiados e que os palestinos que estão dentro de Israel obtenham direitos iguais sem limitações.


IHU On-Line – Como você avalia o conflito no mundo árabe? O que de fato está em jogo?

Rifat Odeh Kassis –
Esta pergunta merece um artigo inteiro, mas tentarei ser breve em minha resposta. Em primeiro lugar, sempre há conflito entre os regimes árabes e o povo. A maioria desses regimes é de ditadores que governam contra a vontade de seu povo; muito poucos foram eleitos. Isso está relacionado com a forma como o mundo árabe foi dividido pelas potências coloniais durante e após a Primeira e a Segunda Guerra Mundial. A divisão ocorreu arbitrariamente, e, na maioria dos casos, as potências coloniais instalaram as minorias para governar as maiorias – um fator importante de impedimento da democracia, pois a minoria não pode governar a maioria por meios democráticos. Além disso, nossa região sempre serviu de campo de batalha para superpotências mundiais, mesmo durante a era da Guerra Fria; a guerra foi muito quente em nossa região e nós tivemos de arcar com suas consequências. Além disso, a criação de Israel na terra palestina e no coração do Oriente Médio teve um efeito negativo na caminhada rumo à democracia, pois todos os regimes tomaram a causa palestina como desculpa para implementar economias de guerra e negligenciar o desenvolvimento de seus países sob o pretexto de preparar-se para a guerra com Israel. Tudo isso levou à deterioração da estabilidade econômica e política, ao aumento da pobreza e do desemprego; a maior parte do mundo árabe ficou de fora da revolução tecnológica. Essa realidade criou inquietação principalmente entre os jovens de nossa região, impelindo-os a se revoltar contra seus regimes. Infelizmente, os partidos progressistas e democráticos estabelecidos não estavam prontos para assumir, e, assim, os grupos que se beneficiam da situação são os movimentos islâmicos, que, como podemos ver, estão florescendo atualmente. Os movimentos islâmicos não têm uma resposta para os problemas com que se defronta o mundo árabe e, mais cedo ou mais tarde, usarão os mesmos métodos usados pelos regimes anteriores para silenciar o povo – o que desencadeará outra revolução. Espero que as organizações democráticas e progressistas estejam prontas dessa vez.

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