Edição 199 | 09 Outubro 2006

Existe uma esquerda na América Latina?

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Alain Touraine, sociólogo francês, autor do livro recém-publicado no Brasil, Um novo paradigma para compreender o mundo de hoje, Petrópolis: Vozes, 2006 e na França, ele acaba de publicar o livro Le Monde des Femmes. Paris: Fayard, 2006, escreveu o artigo Existe uma esquerda na América Latina?, publicado no jornal Página/12, 8-10-2006. Eis o artigo, que está disponível no site www.unisinos.br/ihu nas Notícias Diárias de hoje, 9-10-2006:

“O resultado de muitas das eleições realizadas na América Latina nos últimos meses levou muitos observadores a descrever a evolução para uma esquerda distante das posturas dos EUA, que se apoiaria em setores sociais que poderiam chamar-se de “populares”. Entretanto, resulta de pouco proveito empregar expressões que foram inventadas para um contexto totalmente diferente. A linguagem correspondente a um regime parlamentar se aplica necessariamente mal a uma linguagem presidencial ou semipresidencial. No caso latino-americano, se ajusta tão mal que creio ter boas razões para defender uma posição bem distante da que se expressa mais freqüentemente. Que Alan García tenha ganhado as eleições no Peru e que Felipe Calderón se tenha imposto no México não significa, evidentemente, que a América Latina esteja avançando para a direita.

A hipótese que deve ser formulada é que o continente se afasta mais de um modelo senão parlamentar, pelo menos, apoiado em mecanismos de oposição entre grupos de interesses e de ideologias diferentes. Hoje a América Latina parece mais longínqua de encontrar uma expressão política para seus problemas sociais que há trinta anos. Nisto radica o essencial: isso é o que está em jogo e aí está o fracasso.

Na América Latina, não se constituiu um laço entre os movimentos sociais, fundados nos trabalhadores, em setores urbanos ou, inclusive, em grupos étnicos, e os partidos políticos aceitem colocar claramente as lutas sociais dentro de um marco institucional que se poderia chamar, ao menos formalmente, democrático.

Incapaz de elaborar uma política fundada nos direitos democráticos e de empreender reformas estruturais profundas, a América Latina nunca conseguiu sair de uma mescla confusa de nacionalismo e populismo – cujo exemplo mais conhecido foi o peronismo -, o qual conduziu a duplo fracasso: o fracasso ou o desaparecimento do sistema político e a ausência de transformação social. Isso se pode observar na crise argentina de 2001, que não representou o levantamento da classe operária, mas, pelo contrário, a queda massiva da classe média.

Os últimos acontecimentos políticos em vários países do continente não animam de nenhum modo a idéia de um movimento geral para a esquerda.

Novamente se impõe a conclusão: o fracasso perdurável e profundo de uma democracia social vigorosa. O problema que é preciso formular claramente, hoje, é o das oportunidades da nova política de ruptura inspirada por Fidel Castro e representada pela Venezuela. Hugo Chávez tem, diante desse modelo, as chances de um voluntarismo político e social muito mais radical, em particular em contraste com os países do Cone Sul.

O lugar, porém, onde se decide a vida política do continente não é a Venezuela. É que, apesar dos progressos conseguidos desde sua eleição, o de Chávez segue sendo um modelo fraco de transformação social, se consideramos os imensos recursos obtidos pelo aumento brutal do preço do petróleo. A chave da política do continente e da sua capacidade de inventar um modelo político e social capaz de operar sobre uma situação extremamente difícil é, sem dúvida nenhuma, a Bolívia. Parece existir uma consciência geral sobre a necessidade de aceitar o modelo boliviano tal como se está conformando, em sua radicalidade, seu nacionalismo e seu heroísmo, nos seus excessos de linguagem e também de ações. Estou entre aqueles que pensam que o futuro político do continente depende hoje antes de tudo das oportunidades da Bolívia de construir e fazer realidade um modelo de transformação social e, ao mesmo tempo, ganhar independência na relação com a retórica de Chávez.

No que diz respeito à Argentina, parece-me que, como para os demais países, fracassou o modelo nacional-populista das décadas passadas. O país começa a emergir da catástrofe que destruiu a economia e sua sociedade sem que os resultados obtidos ponham de manifesto progressos importantes na governabilidade, já que a recuperação se sustenta em três fatores: o forte aumento das exportações para a China, a ajuda financeira dada por Chávez e a rápida concentração do poder nas mãos de Kirchner.

Se a Argentina tivesse que inventar um novo modelo de desenvolvimento, este deveria ser mais de tipo liberal, dada a importância do comércio internacional na economia e, sobretudo, dado que o futuro do país depende em grande medida da sua capacidade de dotar-se de elites políticas, administrativas e econômicas. Tampouco é possível, no caso da Argentina, falar de esquerda e direita; a lógica da situação avança para soluções voluntaristas, mas liberais, que não podem ser equilibradas pela resistência e a capacidade ampliada de decisão do presidente Kirchner.

Ninguém pode assegurar o triunfo ou o fracasso da América Latina. No momento, o retorno da fé fez muitos países se consolidarem, apesar das imensas dificuldades, um clima, se não eufórico, pelo menos moderadamente otimista. Em todo o caso, na América Latina se percebe uma confiança no futuro que não existe em nenhuma parte do mundo, com exceção da Espanha. Assim sendo, a conclusão com a qual quero me comprometer, ao menos na medida da minha capacidade de análise, é que somente uma radicalidade política muito maior que do período recente permitirá aos países latino-americanos escaparem das aparentes soluções que na realidade implicam um grande perigo: por um lado, um governo de elites liberais apoiadas numa economia mundial globalizada e, por outro lado, o que se poderia chamar uma “ilusão neocastrista”. Essa conclusão bem inquietante não condiz com a imagem que tem de si mesmo um país importante do continente: Chile, que se sente cada vez menos pertencente à América Latina e que espera, de acordo com a célebre frase do ex-presidente Lagos, enriquecer com o comércio com o Leste e o Oeste do mundo, como o fez a República de Veneza. Esta é uma alternativa extrema para uma das soluções possíveis, da globalização exitosa; a outra é a que, apesar da sua fragilidade, toma forma na Bolívia. Hoje me parece difícil definir outras soluções possíveis entre essas duas tendências profundamente opostas."
 

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