Edição 407 | 05 Novembro 2012

“Não há retorno daquele que nunca foi”

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Graziela Wolfart

Para Rodrigo Coppe Caldeira, as imagens e representações religiosas que povoam nossas mentes sempre vão se expressar a partir da linguagem do possível, nunca sendo, total ou parcialmente evacuadas. São irremovíveis e buscam novos lugares para se manifestarem e expressarem. Por isso, a “revanche de Deus” ou a “volta do sagrado”, pensado nestes termos, é uma falácia

“O sentimento de culpa ou de uma possível exclusão da vida comunitária que se dava em torno da igreja, por exemplo, parece não ser mais uma questão decisiva que leva o indivíduo para dentro dos locais sagrados, mesmo que isso ainda ocorra em certo grau. A secularização, assim, entendida como um processo contraditório, que não leva ao desaparecimento propriamente dito da religião, mas a novas configurações culturais, demanda das instituições religiosas mais tradicionais um repensar como ser presença, como tornar a sua mensagem mais plausível aos sujeitos das sociedades contemporâneas”. A análise é do historiador e cientista da religião Rodrigo Coppe Caldeira, em entrevista concedida por e-mail para a IHU On-Line. Para ele, “o contexto religioso atual, marcado por inúmeras possibilidades de vivência da fé pessoal, traz, ao mesmo momento, a possibilidade do exercício da liberdade individual e a angústia característica de se viver na pluralidade, sem referências únicas e confiáveis de todo. A emergência do tradicionalismo se dá nesta conjuntura, como reação ao pluralismo e, paradoxalmente, só podendo existir nela e por ela”. 

Doutor e mestre em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora e graduado em História pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Rodrigo Coppe Caldeira é professor no Departamento de Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas). É autor do livro Os baluartes da tradição: o conservadorismo católico brasileiro no Concílio Vaticano II (Curitiba: CRV, 2011).

Confira a entrevista.


IHU On-Line - Que relações podem ser estabelecidas entre cristianismo, política e cultura?

Rodrigo Coppe Caldeira -
Se pensarmos na história das religiões, observamos que elas sempre emergem e se consolidam em conjunturas políticas e culturais específicas, levando-as assim a entrarem num diálogo com elas, às vezes de modo mais tranquilo, em outros momentos nem tanto. Quando pensamos o cristianismo, temos dois mil anos de história assinalados por inúmeros aspectos desta relação. Pensando um exemplo mais próximo de nós temporalmente, lembramos o maior evento religioso do século XX, o Concílio Vaticano II. Assinalado pela compreensão inicial daquele que o convocou, o papa João XXIII, o Concílio tinha a tarefa de ler os “sinais dos tempos” e colocar a Igreja numa nova rota, ultrapassando certa intransigência pura e simples que advinha das reações à Revolução Francesa e seus ideais liberais. De fato, Roncalli foi um grande observador ao lançar a Igreja na perspectiva de um aggiornamento (atualização) ao convocar o Vaticano II. Na verdade, o papa, fazendo isso, demonstrava que compreendia a dinâmica da história, tomando consciência, assim, que desde os primeiros momentos do cristianismo, ele se aggiornava. Além disso, ao imprimir no Concílio a perspectiva pastoral, também demonstrava tomar consciência dessa dimensão histórica do cristianismo. De fato, podemos dizer que a maioria dos concílios da história da Igreja foram pastorais, pois, pensavam, cada um a seu modo, de forma mais ou menos marcante, a ação da Igreja no mundo, suas relações com o mundo circundante – como desenvolver uma ação que leve a mensagem evangélica para os povos, encarnando-a nas várias esferas da sociedade.


IHU On-Line - Qual o papel e os espaços que ocupam as religiões e as religiosidades na sociedade atual, marcada pela secularização e pelo chamado “trânsito religioso”?

Rodrigo Coppe Caldeira -
Muitos estudiosos quiseram crer que o avançar do processo de secularização levaria praticamente ao desaparecimento das religiões da esfera pública. De fato, se olharmos ao redor, elas não apresentam o vigor e a força que tinham no início do século passado. Quero dizer aqui no que tange à face institucional da religião. Hoje o que notamos é um alargamento das possibilidades do “ser religioso”, isto é, a possibilidade de exercer sua religiosidade sem estar ligado a esta ou aquela religião. É certo que podemos observar muitos indivíduos se denominando cristãos sem terem uma prática que recorra à instituição. Também notamos, inclusive, que existem aqueles que têm algum tipo de prática – por exemplo, rezam o terço ou seguem exercícios piedosos de determinados tempos litúrgicos, como a quaresma –, contudo, uma prática privatizada, que não demanda uma presença física no templo e seus cultos. O sentimento de culpa ou de uma possível exclusão da vida comunitária que se dava em torno da igreja, por exemplo, parece não ser mais uma questão decisiva que leva o indivíduo para dentro dos locais sagrados, mesmo que isso ainda ocorra em certo grau. A secularização, assim, entendida como um processo contraditório, que não leva ao desaparecimento propriamente dito da religião, mas a novas configurações culturais, demanda das instituições religiosas mais tradicionais um repensar como ser presença, como tornar a sua mensagem mais plausível aos sujeitos das sociedades contemporâneas. No caso da Igreja Católica, como responder a este indivíduo que se relaciona com os conteúdos e práticas religiosas de várias formas sem cair no triunfalismo ou numa nostalgia de uma Idade de Ouro, é o grande desafio dos tempos atuais, para leigos, padres, religiosos e religiosas. Tal questão apareceu recorrentemente em algumas intervenções dos bispos reunidos no XIII Sínodo Ordinário que finalizou em outubro passado. Sobre o trânsito religioso, provocativamente, relembro-me de um trecho do filósofo romeno Cioran  em De l'inconvénient d'être né , em que diz: “Normal que o homem se interesse não pela religião, mas pelas religiões, pois somente através delas poderá compreender as múltiplas visões de seu colapso espiritual”.


IHU On-Line - Podemos afirmar que hoje vivemos um momento de reavivamento da religiosidade? A que isso se deve?

Rodrigo Coppe Caldeira -
Como historiador, marcado por certa influência cética, desconfio das falas que veem em certos movimentos e dinâmicas contemporâneas “reavivamentos”, “viradas epocais” ou o surgimento de uma “nova era”. Não temos a completa capacidade – quiçá num futuro! – de darmos quaisquer tipos de rótulos para o tempo que seja, sendo o que for que esteja sendo vivenciado. Não que as mudanças não existam. Sim, elas existem e muitas vezes são repentinas e violentas. Contudo, ao meu juízo, tais alcunhas para estes momentos de mudança, se dando no momento mesmo em que ocorrem, estão no campo de uma linguagem prática, ideológica, se preferirem. No caso em tela, acredito que só a partir de certa distância temporal temos alguma capacidade de falarmos se, de fato, o que se vivia numa determinada época foi um movimento que demande de nós um conceito diferenciado para abarcá-lo. No que tange ao mundo contemporâneo – entendendo “mundo contemporâneo” como aquele que se constituiu no século XX e que se alonga no início do XXI – observamos o declínio de importância das religiões institucionais, todavia, tal dado é preciso ser matizado. A Igreja Católica, por exemplo, continua tendo relativo grau de importância em muitas partes do mundo, sendo inclusive, mesmo envolta pelos escândalos dos últimos anos, considerada uma das mais confiáveis instituições, como ocorre no Brasil. No que tange especificamente à religiosidade, acredito que ela nunca deixou o século XX, mas que migrou, de certa maneira, para outras formas e conteúdos, uma religiosidade, poderíamos dizer, secularizada, recheada por outros tipos de crença. Se a religiosidade é um aspecto da dimensão humana – e acredito que o seja –, ela sempre está em busca de conteúdos de crença. Assim sendo, muitos homens daquele século não deixaram de crer em momento algum, contudo, embalados pela ideia de perfectibilidade humana, transpuseram elementos religiosos cristãos transcendentes – como o “fim da história” e a ideia do “Reino de Deus” – para à imanência, crendo, “com todo o coração”, nas suas capacidades e na sua profética missão, de chegar a este mundo imaginado. Foi o que Raymond Aron chamou de “religiões seculares”. Também temos o exemplo de certa deificação do mercado, compreendido como aquele que resolveria todos os nossos problemas. Vemos que Deus e o sagrado foram convidados durante este período a se esconderem em novas formas de manifestação, transfigurando-se em meros instrumentos destes ou daqueles grupos políticos. As imagens e representações religiosas que povoam nossas mentes sempre vão se expressar, assim, a partir da linguagem do possível, nunca sendo, total ou parcialmente evacuadas. São irremovíveis, e sendo assim buscam novos lugares para se manifestarem e expressarem. Por isso, a “revanche de Deus” ou a “volta do sagrado”, pensado nestes termos, é uma falácia. Não há retorno daquele que nunca foi.


IHU On-Line - Que leitura você faz da retomada do tradicionalismo e conservadorismo católicos, considerando a forma como as pessoas vivem sua religiosidade hoje?

Rodrigo Coppe Caldeira -
Parto, de certa forma, da mesma perspectiva anteriormente assinalada. Não creio que haja uma “retomada”, mas um novo fôlego. Como já afirmei em outro momento , grosso modo, o conservadorismo se constitui como reação consciente a movimento progressista coerente e sistemático. Se existe um conservadorismo é por que existe um progressismo. O conservadorismo religioso, assim, vive e se constitui em relação e função daquele. Tendo o catolicismo como foco, observa-se que desde o início do século XX uma onda liberalizante – entendida como tentativa de distender as relações entre a Igreja e a modernidade – veio se formando em seu seio, trazendo novas possibilidades de se pensar, mais positivamente, a democracia, a república, os movimentos sociais, as ciências, tentando ultrapassar as condenações dos Syllabus e as proposições da Pascendi Dominici Gregis, tornando-se relativamente vitoriosa no Vaticano II e suas determinações, podendo ser visualizadas em vários pontos das constituições Gaudium et spes  e Lumen gentium , além, claro, da declaração Dignitatis Humanae, sobre a liberdade religiosa. Claro que aqui tomo o “conservadorismo católico” entendido em seu tipo que se constituiu a partir do século XIX, como reação aos princípios liberais e que teve no Brasil seu maior representante no século XX, a Tradição, Família e Propriedade (TFP). Muitos grupos conservadores atuais – aqui relembro especialmente a Fraternidade Sacerdotal São Pio X – leem a crise da Igreja católica como sendo resultado direto do Vaticano II, que segundo eles teria negado a tradição – um barateamento da noção de tradição, que não leva em conta seu caráter vivo e dinâmico.
Assim, emergem aqui e ali discursos deslegitimadores dos feitos do Vaticano II. É certo, que a recepção deste concílio está repleta de contradições, de excessos hermenêuticos, de compreensões equivocadas sobre os significados do que seja a renovação da Igreja, de descompasso com o que os padres conciliares desejaram. Por isso, Bento XVI aponta para a letra como foco principal para a sua implementação, o que traz alguns problemas para a compreensão sobre a recepção . Em meu ponto de vista, a emergência destes grupos está relacionada com a imagem que representam do concílio, como “dessacralizador” e mundano, como traição da tradição cristã. Além disso, é notório o valor dado à dimensão estética da manifestação da fé. Preocupa-se excessivamente com a batina e o hábito, as genuflexões, se o fiel pode ou não receber a comunhão nas mãos. Não que estes elementos não sejam importantes e objeto da atenção dos pastores. De fato, observou-se uma desatenção a eles nos anos pós-conciliares. A questão é que eles aparecem, muitas vezes, como aquilo que realmente importa, como o centro, e não aquilo que deveria de fato – a mensagem evangélica. Pode-se dizer que o contexto religioso atual, marcado por inúmeras possibilidades de vivência da fé pessoal, traz, ao mesmo momento, a possibilidade do exercício da liberdade individual e a angústia característica de se viver na pluralidade, sem referências únicas e confiáveis de todo. A emergência do tradicionalismo se dá nesta conjuntura, como reação ao pluralismo e, paradoxalmente, só podendo existir nela e por ela.


IHU On-Line - Como o Concílio Vaticano II deve ser interpretado nos dias atuais, de forma que atenda às necessidades religiosas da sociedade contemporânea?

Rodrigo Coppe Caldeira -
De fato, como disse acima, as novas configurações do religioso demandam da Igreja Católica novos posicionamentos e formas de ação que respondam aos desafios das necessidades das pessoas hoje, que vivem sua religiosidade de maneira subjetiva, individualista e autocentrada, buscando afastar a qualquer custo qualquer mensagem religiosa que não vá ao encontro de seus desejos particulares, de suas vontades imediatas, de seu, diríamos, bem estar. O Deus flagelado e nu, dilacerado, o “Cristo de ânsia e paroxismo”, como dizia o escritor mineiro Lúcio Cardoso em seu Diário em meados do século XX, não é aquele desejado pelas massas, mas sim aquele ideal ao nosso tempo, adaptado e talhado às nossas necessidades, um Deus tranquilo, que não me demande grandes esforços e sacrifícios, ou seja, um Deus na medida de nosso tempo. Esta é uma questão muito importante, certamente, pois os representantes da Igreja devem estar a se perguntar, já há algumas décadas, como responder aos desafios dessa religiosidade, sem cair em respostas fáceis ou estratégias pragmáticas, muito semelhantes às das seitas que pipocam por todos os lados, oferecendo um “Deus fácil” para gostos diferenciados. Não ouso responder à pergunta de como o Vaticano II deve ser interpretado. Muito menos em vista dessa religiosidade. Não quero, exatamente, cair numa perspectiva que pudesse sugerir que a pergunta tenha uma resposta simples e direta, pois, como já foi dito, “para todo problema complexo existe uma solução clara, simples e errada” (Bernard Shaw).  De fato, o drama é exatamente este: as necessidades religiosas atuais, assinaladas, brevemente, pelas características que trouxe acima, exigem da Igreja respostas fáceis, ao sabor dos desejos contingentes, estratégias estreitas e imediatas que respondam a estas necessidades? Por outro lado, poderia responder parcialmente a esta pergunta tendo em vista outras questões, como o desafio da pobreza generalizada, do sempre estar aberto ao encontro com os cristãos das variadas denominações – o ecumenismo –, com as demais tradições religiosas – o diálogo inter-religioso – a necessidade de estar atenta à liberdade religiosa, cada vez mais em risco em várias partes do mundo... Assim, na minha interpretação, acredito que o Vaticano II deva sempre estar em foco como o lugar que deva buscar elementos norteadores para a ação da Igreja neste século que se inicia.

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