Edição 407 | 05 Novembro 2012

“O fator religião parece cada vez mais vivo”

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Graziela Wolfart

Sem estudá-lo e sem levá-lo a sério, torna-se impossível compreender os grandes conflitos da atualidade e do passado, defende Ronaldo Vainfas

Para o historiador Ronaldo Vainfas é muito importante refletir sobre as religiões e as religiosidades na sociedade atual, pois “os conflitos mundiais na atualidade passam pela religião. Basta ver o radicalismo islâmico contra o Ocidente, sem falar nas lutas fratricidas entre sunitas e xiitas nos países muçulmanos. O famoso 11 de setembro tem a ver com religião. A crise na Síria tem a ver com o conflito dentre do Islã”. Na entrevista que concedeu por e-mail à IHU On-Line ele fala sobre as relações entre judaísmo e martírio a partir de Isaque de Castro e sobre as religiões na contemporaneidade. Na visão de Vainfas, a religiosidade nunca desapareceu. “Foi desmerecida, no Ocidente, desde o século XVIII, século das Luzes e do racionalismo ilustrado. A Revolução Francesa secularizou a religião e exportou este modelo laicizante. No Brasil, que também se deixou influenciar pelas Luzes, a religiosidade nunca desapareceu, sobretudo no seio das classes populares. Basta ver a força da umbanda e do candomblé, sem falar nas igrejas evangélicas e pentecostais e, claro, no catolicismo, que é mais forte do que se imagina”.

Vainfas possui graduação em História pela Universidade Federal Fluminense (1978), mestrado em História pela Universidade Federal Fluminense (1983) e doutorado em História Social pela Universidade de São Paulo (1988). É professor titular da Universidade Federal Fluminense. Dentre outros, é autor de Traição: um jesuíta a serviço do Brasil holandês processado pela inquisição (São Paulo: Companhia das Letras, 2008) e Antônio Vieira, Jesuíta do Rei (São Paulo: Companhia das Letras, 2008). Sobre esta última obra, leia uma resenha publicada no sítio do IHU e que está disponível em http://bit.ly/SHNzWe

Confira a entrevista.


IHU On-Line – Que relações podem ser estabelecidas entre judaísmo e martírio?

Ronaldo Vainfas –
Relações complicadas. Os judeus nunca consideraram o martírio como virtude. Sempre sustentaram a valorização máxima da vida. Exceção: a dissidência dos hebreus que veio a se tornar cristã. Cito um caso de um cristão-novo que se tornou judeu, foi preso pelo Santo Ofício no século XVII, voltou a ser cristão, porém, uma vez solto, correu de volta para o judaísmo. Um grande rabino do Marrocos foi consultado para ajuizar sobre o caso e disse: recebam o jovem, porque “a lei do Sinai foi feita para se viver por ela, não para se morrer por ela”.


IHU On-Line – Como Isaque de Castro  aparece nessa relação a partir da memória e da história?

Ronaldo Vainfas –
A comunidade judaica de Amsterdã construiu o mártir ao saber da execução de Isaque na fogueira inquisitorial. Vários panfletos, poemas e outros textos louvaram o martírio dele. Nisso reside o fundamento da memória de Isaque de Castro. Muitos historiadores escreveram sobre Isaque baseados e/ou inspirados nesta memória. O melhor exemplo é o de Elias Lipiner, seu maior biógrafo. Examinei a fundo o processo inquisitorial contra Isaque e constatei que, na verdade, ele somente assumiu a defesa radical do judaísmo quando se viu perdido. Até então insistia em que não tinha sido batizado no cristianismo. Quando esteve na Bahia, tentou mesmo se “reduzir” ao catolicismo junto ao bispo Pedro da Silva e Sampaio. Não quero com isso desmerecer Isaque de Castro, que de fato morreu na fogueira, queimado vivo (o que era raro), mas apenas restaurar a verdade histórica sobre o personagem. Os que acham que a história não tem verdade deviam renunciar ao ofício de historiador.


IHU On-Line – Enquanto judeu de origem portuguesa, como foi a passagem de Isaque de Castro pelo Brasil holandês?

Ronaldo Vainfas –
Medíocre. Tentou fazer comércio em Pernambuco como mascate de terceiro escalão de um grande grupo, liderado por Duarte Saraiva ou – nome judeu – David Senior Cronel (1575-1646). Isaque era desastrado como comerciante. Mau pagador e mau credor. Brigou muito. Teve que fugir para a Bahia porque, ao que tudo indica, matou um credor ou devedor com golpe de cutelo. Na Bahia, há indícios de que foi professor de judaísmo, por pouco tempo, de filhos de cristãos-novos graúdos. Isaque era um intelectual. Estudioso. Superdotado. Não tinha a menor vocação para o comércio.


IHU On-Line – Em que sentido Isaque de Castro pode ser tomado como exemplo de um judaísmo inquebrantável?

Ronaldo Vainfas –
Só na fase final do processo, quando percebeu que a Inquisição sabia que ele tinha sido batizado na França como cristão. Ali ele assumiu totalmente o judaísmo. Chegou a dizer que, se Cristo era judeu, ele, Isaque, como judeu, vivia na “lei de Cristo”. Um sofisma. Desafiou os inquisidores. Escolheu a morte. O martírio.


IHU On-Line – Qual a importância de refletir sobre as religiões e as religiosidades na sociedade atual, marcada pelo chamado “trânsito religioso”?

Ronaldo Vainfas –
Importância máxima. Os conflitos mundiais na atualidade passam pela religião. Basta ver o radicalismo islâmico contra o Ocidente, sem falar nas lutas fratricidas entre sunitas e xiitas nos países muçulmanos. O famoso 11 de setembro tem a ver com religião. A crise na Síria tem a ver com o conflito dentre do Islã.


IHU On-Line – O senhor percebe que, mesmo diante da marca da secularização, vivemos um momento de reavivamento da religiosidade?

Ronaldo Vainfas –
A religiosidade nunca desapareceu. Foi desmerecida, no Ocidente, desde o século XVIII, século das Luzes e do racionalismo ilustrado. A Revolução Francesa secularizou a religião e exportou este modelo laicizante. No Brasil, que também se deixou influenciar pelas Luzes, a religiosidade nunca desapareceu, sobretudo no seio das classes populares. Basta ver a força da umbanda e do candomblé, sem falar nas igrejas evangélicas e pentecostais e, claro, no catolicismo, que é mais forte do que se imagina. Em uma perspectiva mundial, então, o fator religião parece cada vez mais vivo. Sem estudá-lo, sem levá-lo a sério, torna-se impossível compreender os grandes conflitos da atualidade e do passado.


Leia mais...

>> Ronaldo Vainfas já concedeu outras entrevistas à IHU On-Line. Confira:

• Movimento Santidade de Jaguaripe é discutido. Publicada na edição número 161, de 24-10-2005

• Um ensaio sobre a nossa história. Publicada na IHU On-Line número 205, de 20-11-2006

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