Edição 199 | 09 Outubro 2006

A antropologia teológica de João Paulo II e a diversidade sexual

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IHU Online

Susan Ross é professora de Teologia na Loyola University de Chicago, onde ensina desde 1985 e onde cursou seu doutorado. É autora de Extravagant Affections: A Feminist Sacramental Theology (Continuum, 1998), e de For the Beauty of the Earth: Women, Sacramentality, and Justice (Paulist, 2006).

Susan Ross foi diretora do Women's Studies Program na Loyola, e participa do conselho editorial da Concilium, revista teológica internacional, editada em várias línguas, inclusive o português. No Brasil a revista é publicada pela Editora Vozes. Confira, a seguir, a entrevista que ela concedeu, por e-mail, para a revista IHU On-Line, na qual, fala que “a antropologia teológica de João Paulo II é muito mais Mariana do que Cristã”.

IHU On-Line - Como a senhora caracteriza a antropologia teológica de João Paulo II? Qual era sua visão sobre a homossexualidade?  

Susan Ross -
Eu caracterizaria a antropologia teológica de João Paulo II como sendo “complementaridade”: quer dizer, João Paulo II vê homens e mulheres como igualmente criados à imagem de Deus, mas esses homens e essas mulheres são diferentes e únicos biológica e espiritualmente. Ele vê isso esculpido na história da criação no Gênesis 2:3, em que Deus criou a mulher para que o homem não ficasse sozinho. Esta criação de seres humanos em relação é moldada depois da Trindade, onde o próprio ser de Deus está no relacionamento. Para ele, homens e mulheres se “completam” uns aos outros (assim, “complementaridade”) e ser homem ou mulher não é apenas diferença de funções, mas uma diferença de espiritualidade. Deus está relacionado à humanidade como um marido à esposa, ou, para usar sua terminologia, como um noivo está relacionado à sua noiva. Estes papéis não são intercambiáveis.

Por causa da visão da humanidade de João Paulo II, ele (assim como o Vaticano) enxergava práticas homossexuais como violações do intento de Deus na criação de homem e mulher. Homossexualidade, na linguagem do Vaticano, é uma “desordem ou desvio intrínseco”, uma maneira de dizer que há algo errado. O Vaticano vem pensando que a maioria dos homossexuais não “escolhe” sua orientação, mas se descobre atraída pelo mesmo sexo. Isso é um infortúnio, mas não significa que este desejo tenha que ser posto em prática. Pessoas que sentem atração por pessoas do mesmo sexo são chamadas a lembrar do sofrimento de Cristo e a viver vidas celibatárias. Relações homossexuais não correspondem ao modelo “noivo-noiva” que foi padronizado para a humanidade. Conseqüentemente, simplesmente ser homossexual não é pecado (embora seja um sinal de que algo está errado), mas é pecado praticar esta orientação.

IHU On-Line - Quais as concepções que apareciam nos textos do último Papa sobre o homem e a mulher? Quais seriam os principais problemas desses conceitos?

Susan Ross
- Existe uma consistência nos ensinamentos de João Paulo II sobre homem e mulher, como esbocei na primeira resposta. João Paulo II não é terrivelmente diferente de seus predecessores, mas é único em seu enfoque sobre sexualidade, como se pode ver em seu Teologia do corpo. Não acredito que os papas anteriores tenham gasto tanto tempo no tópico “sexualidade” como ele.
O que acho problemático nos escritos de João Paulo II é um “essencialismo” que enxerga mulher e homem como tendo qualidades “essenciais” (por isso o nome), originais de seus sexos. Homens são aqueles que são ativos, têm iniciativa, e, quando padres, podem esculpir Cristo para a humanidade. Mulheres são receptivas, ouvintes, e, como Maria, recebem o amor e a palavra de Deus, enquanto ambas as qualidades podem ser verdadeiras em ambos os sexos (homens podem receber, mulheres podem tomar a iniciativa). João Paulo II enxerga essas qualidades não apenas como o intento de Deus na criação humana, mas também na semelhança de todas as mulheres através do tempo e do espaço: mulheres são, por natureza, ouvintes, receptoras/receptivas, e criadoras/educadoras. Homens são os atores [que são ativos], os iniciadores e líderes. Ele vê as mulheres como “especialistas” em relacionamento, e essas mulheres têm uma “concretude” em seus interesses que salva o homem de ser tão abstrato. Acho que essas idéias reproduzem concepções estereotipadas das mulheres que são reforçadas pelas tradições sociais. Finalmente, essas idéias significam que os homens são mais semelhantes a Deus que as mulheres, o que contradiz o Gênesis 1:27-28 (Deus criou a humanidade a sua imagem e semelhança, homem e mulher). Então os textos de João Paulo II são problemáticos quanto às relações humanas (sugerindo a subordinação das mulheres aos homens) e à teologia (em como pensamos Deus/no que pensamos de Deus).

IHU On-Line - Quais as conseqüências antropológicas e teológicas que poderiam surgir do fato de que a Igreja Católica tem uma mulher (no caso Maria, mãe de Jesus) como um modelo universal para todas as mulheres?

Susan Ross
- Maria é compreendida por João Paulo II, e por outros antes dele, como modelo para as mulheres. Se isso significa, como sugerido por João Paulo II, que as mulheres são “essencialmente” receptoras, ouvintes, obedientes, então vejo um problema, pois este modelo reforça imagens estereotipadas das mulheres. Como sempre, elas são o número 2: respondendo, ouvindo e obedecendo ao número 1 (homens, Deus). Nem todas as mulheres são mães, e nem todas as mulheres são apropriadas para ser mães. Mas se Maria é vista como modelo para toda a humanidade, todos nós, homens e mulheres semelhantes, respondemos ao chamado de Deus com todo nosso coração, corpo e mente. Então, acho que Maria é um bom modelo de papel, mas não apenas para as mulheres. Isso depende de como Maria é compreendida. Existe uma longa tradição de gente que acha Maria mais “próxima” de si que Jesus ou seu Pai, uma vez que ela é totalmente humana e compreende as experiências pelas quais passamos. Não tenho problema com isso. Na verdade, vejo isso como uma maneira de recuperar um lado feminino do divino que se perde quando Deus é visto como completamente masculino. Mas tenho, sim, um problema com isso quando sugere que as pessoas simplesmente aceitem seu sofrimento, especialmente quando é injusto.

IHU On-Line - No pensamento de Wojtyla, qual seria a visão teológica e antropológica de Jesus?

Susan Ross
- No pensamento de João Paulo II, Jesus é o redentor da humanidade (veja sua Encíclica Redemptor Hominis). Eu caracterizaria a Cristologia de João Paulo II como Cristologia “alta”, significando que ele começa com a segunda Pessoa da Trindade que caiu do paraíso para salvar a humanidade (ao contrário de uma Cristologia “baixa” que enfatizaria o Jesus de Nazaré humano vindo a ter consciência de sua missão divina). João Paulo II vê Jesus como sempre ciente de sua missão como redentor e nunca separou a natureza humana da natureza divina de Cristo. Então, de um modo bastante interessante, a antropologia teológica de João Paulo II é muito mais Mariana do que Cristã. Isso porque Maria é um ideal e um modelo humano. Jesus é divino e humano, então não deve ser jamais considerado como apenas humano. Nós, como seres humanos, somos chamados a seguir Jesus e moldar nossas práticas nas suas: então somos chamados a obedecer ao Pai, como Jesus; para sofrer, como foi com Jesus.

IHU On-Line - Como a teologia e a antropologia podem contribuir para um melhor entendimento da homossexualidade, da heterossexualidade e da boa familiaridade entre ambas as tendências?

Susan Ross
- É preciso refletir sobre como a teologia e a antropologia teológica podem contribuir para uma melhor compreensão de nossa sexualidade, tanto a homossexualidade, como a heterossexualidade. A teologia, como a entendo, é extraída de pelo menos quatro fontes: as Escrituras, a Tradição, a razão e a experiência. Ainda, a boa teologia também precisa ser fiel a estas quatro fontes, então a boa teologia não pode contradizer abertamente os sentidos das Escrituras, nem contradizer nossa experiência humana (nem a razão, nem a tradição). Mas em alguns casos, uma dessas quatro dimensões pode ser enfatizada mais do que as outras, dependendo da questão.

O contexto das Escrituras

Para ter uma teologia da sexualidade fiel às Escrituras, ainda que não-baseada em uma interpretação literal (palavra por palavra), deve-se estar ciente do contexto das várias afirmações das Escrituras, especialmente aquelas que dizem respeito à homossexualidade. Alguns que as têm usado contra a homossexualidade pegam passagens fora de contexto e não compreendem que as concepções antigas de sexualidade diferem significativamente das nossas. Alguns artigos do livro (DiVito, White, Malina, D’Angelo) expressam, melhor do que eu posso expressar aqui (não sou estudiosa das Escrituras), como essas passagens são vistas pelos especialistas. No entanto, sobretudo, eu diria que a visão bíblica da sexualidade é a do amor, da fidelidade e da intimidade. Também é preciso ser dito que as relações heterossexuais na Bíblia são comumente retratadas de forma muito desigual, onde é dito às mulheres que obedeçam a seus maridos, onde Israel é comparada a uma esposa infiel. Aqueles que apelam para Bíblia para sustentar a relação heterossexual saudável poderiam apontar as mesmas idéias de amor, fidelidade e intimidade.

Novamente a importância do contexto

Quando se trata de Tradição, novamente devemos ver como as afirmações da Igreja se relacionam com seu contexto. A homossexualidade como assunto específico só apareceu no último século ou pouco mais que isso (mesmo o termo foi cunhado apenas no século XIX). A maioria dos que se opõem à homossexualidade argumentariam que a Igreja não tem tradição de honrar relações entre sexos iguais, e se sim, é a de que é uma anormalidade. Aqueles que argumentam em favor de que a Igreja tenha uma atitude mais positiva para com a homossexualidade apontariam para uma outra tradição da Igreja que mudou, como a antiga tolerância da Igreja à escravidão que mudou para a condenação da escravidão. A tradição da Igreja também mudou no que tange às relações heterossexuais: as mulheres não fazem mais votos de obediência aos maridos, e a reciprocidade é mais fortemente enfatizada.

Uma combinação de psicologia e cultura

Com relação à razão, os teólogos procuram consultar as melhores fontes de conhecimento. Neste caso, os teólogos chegarão ao fato de que psicólogos e psiquiatras não mais vêem a homossexualidade como desvio/desordem mental que necessita ser “curada”. Temos um avanço da pesquisa com homossexuais hoje em dia que mostra sua “saúde” espiritual e mental. No que se refere aos heterossexuais, ainda estamos aprendendo grandes coisas sobre como mulheres e homens compreendem sua sexualidade. É uma combinação daquilo que nos é “dado” (nossa psicologia) e daquilo que “aprendemos” (nossa cultura, etc.) de maneira que é impossível classificar, mas que inclui ambos. As feministas discutem que os modelos de papéis tradicionais precisam ser cuidadosamente pensados no que é relativo às suas implicações, uma vez que muitas dessas tradições são baseadas em idéias de “inferioridade” feminina.

A experiência

E, finalmente, com relação à experiência, os teólogos chegarão a experiências de várias pessoas atualmente de relações homossexuais como saudáveis e capazes de ser modelo de bons relacionamentos aos heterossexuais; das graças que relacionamentos homossexuais podem conferir aos parceiros e àqueles que os amam. Casais heterossexuais apontariam para caminhos em que mulheres e homens possam assumir novos papéis e desafios que beneficiem ambos. Acho que estes dois últimos indicam uma antropologia da sexualidade assim como uma teologia.
 
IHU On-Line - Quais as principais dificuldades para a metáfora do casamento atualmente? Como isso nos ajuda na compreensão da relação humano-divino?
 
Susan Ross
- Sobre esse tópico eu apontaria o ensaio de Cristina L. H. Traina  no livro Diversidade sexual e Catolicismo que sugere o que alguns dos problemas com a metáfora do casamento podem acarretar quando aplicados ao casamento. Acrescentaria a isso que, quando Deus é visto como apenas o noivo, então os homens são vistos mais como Deus do que as mulheres. E, como disse acima, acho isso uma contradição da mensagem bíblica, que diz que homens e mulheres são criados à imagem de Deus. Novamente, quando mulheres são vistas apenas para receber, ouvir, obedecer e responder, suas capacidades humanas inteiras e sua agência/gerência moral são reduzidas. Se esta metáfora não é compreendida de forma demasiadamente literal, isso permite que todos os seres humanos se vejam como a noiva em relação ao Deus como noivo. Mas nós, seres humanos, somos talhados por nossa linguagem mais do que percebemos, e esta metáfora tende a reforçar uma imagem de Deus como mais masculino do que feminino. Eu sugeriria uma maior confiança sobre a idéia da Trindade na dança do relacionamento (perichoresis ) que tal confiança cega nessa metáfora do casamento.

 

 

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