Edição 406 | 29 Outubro 2012

Concílio Vaticano II e a busca pelo compromisso ecumênico

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

Thamiris Magalhães e Luís Carlos Dalla Rosa

O Concílio afirmou a liberdade religiosa (Dignitatis Humanae) e reexaminou a relação da Igreja Católica com outras religiões (Nostra Aetate) e sua inserção no mundo moderno (Gaudium et Spes), pontua Walter Altmann

Questionado a respeito do Concílio como um evento ecumênico, o moderador do Conselho Mundial de Igrejas – CMI, Walter Altmann, explica que não o foi no sentido de um concílio universal de toda a cristandade, “pois, como sabemos, esta se encontra dividida em um grande número de vertentes confessionais. Nesse sentido, um concílio ecumênico ainda é um anelo sem dúvida profundo do movimento ecumênico, cuja realização, porém, ainda não podemos descortinar”. Para Altmann, o Vaticano II foi um evento ecumênico primeiramente no sentido de reunir os bispos católicos de todo o mundo para deliberação acerca do caminhar da Igreja Católica. “Mas ele foi ecumênico, sobretudo, pelo espírito que o permeou. Os debates foram intensos, ocorreram revisões de posicionamentos tradicionais da Igreja Católica, muitas vezes no sentido que já era adotado por outras igrejas desde sempre (por exemplo, a passagem do latim para o vernáculo na celebração da missa).” E completa: “Houve uma significativa valorização da Bíblia e de sua leitura, algo tão caro para a tradição protestante. O Concílio também convidou observadores de outras igrejas (da América Latina participou o teólogo metodista argentino José Míguez Bonino) e revelou de um modo geral uma aguda sensibilidade para as experiências e convicções dos não católicos, fossem de outras igrejas, outras crenças ou pessoas de boa vontade”. 

Walter Altmann é pastor da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil – IECLB, professor de Teologia Sistemática na Faculdades EST, de São Leopoldo-RS, ex-pastor presidente da IECLB, ex-presidente do Conselho Latino-Americano de Igrejas – CLAI e atual moderador do Conselho Mundial de Igrejas – CMI. Entre suas obras, destacamos Lutero e libertação: Uma releitura de Lutero em perspectiva latino-americana (Editora Sinodal, 1994). 

Confira a entrevista. 

IHU On-Line – Como o senhor acompanhou o Concílio Vaticano II?

Walter Altmann – Coincidentemente, iniciei meus estudos teológicos em 1962, ano da abertura do Concílio Vaticano II. Assim, com naturalidade, o acompanhamento de seus trabalhos esteve inserido em meus estudos, não por último pelo grande impacto que a inesperada convocação do Concílio pelo Papa João XXIII já causara. Um de meus trabalhos, ainda como aluno, publicado em revista teológica argentina, foi precisamente sobre a Constituição Dogmática sobre a Igreja (Lumen Gentium). Posteriormente, minha tese de doutorado, defendida na Universidade de Hamburgo, Alemanha, foi sobre o conceito de tradição em Karl Rahner  eminente teólogo católico e perito teológico assessor do Vaticano II. Ocupei-me, então, mais profundamente com a Constituição Dogmática sobre a Revelação Divina (Dei Verbum). Mas o interesse também foi mais geral sobre o Vaticano II, em particular como a Igreja Católica atualizava e renovava sua herança teológica, no espírito do aggiornamento preconizado pelo pontífice.

IHU On-Line – Em que sentido o Concílio foi um evento ecumênico?

Walter Altmann – Não o foi no sentido de um concílio universal de toda a cristandade, pois, como sabemos, esta se encontra dividida em um grande número de vertentes confessionais. Nesse sentido, um concílio ecumênico ainda é um anelo sem dúvida profundo do movimento ecumênico, cuja realização, porém, ainda não podemos descortinar. O Vaticano II foi um evento ecumênico primeiramente no sentido de reunir os bispos católicos de todo o mundo para deliberação acerca do caminhar da Igreja Católica. Mas ele foi ecumênico, sobretudo, pelo espírito que o permeou. Os debates foram intensos, ocorreram revisões de posicionamentos tradicionais da Igreja Católica, muitas vezes no sentido que já era adotado por outras igrejas desde sempre (por exemplo, a passagem do latim para o vernáculo na celebração da missa). Houve uma significativa valorização da Bíblia e de sua leitura, algo tão caro para a tradição protestante. O Concílio também convidou observadores de outras igrejas (da América Latina participou o teólogo metodista argentino José Míguez Bonino) e revelou de um modo geral uma aguda sensibilidade para as experiências e convicções dos não católicos, fossem de outras igrejas, outras crenças ou pessoas de boa vontade. 

IHU On-Line – Em sua avaliação, como o Concílio contribuiu para a caminhada ecumênica?

Walter Altmann – O movimento ecumênico moderno, como esforço de superação da divisão da cristandade através do diálogo e da cooperação, surgiu na segunda metade do século XIX, no âmbito das igrejas protestantes e anglicana. A Conferência Internacional de Missão, em Edimburgo, Escócia (1910), é um marco histórico na caminhada das igrejas, seguindo-se a Conferência de Vida e Trabalho, em Estocolmo, Suécia (1925), e a de Fé e Ordem, em Lausanne, Suíça (1927), iniciativas que levaram à criação do Conselho Mundial de Igrejas – CMI após a II Guerra Mundial, em Amsterdam, Holanda (1948). Já na primeira metade do século XX, o Patriarcado Ecumênico de Constantinopla manifestara o compromisso ecumênico. Por largo tempo, a Igreja Católica manteve uma postura reticente, para não dizer de rejeição, em relação ao movimento ecumênico. Sua compreensão da unidade da cristandade se resumia ao anelo de “retorno” dos demais cristãos à Igreja Católica, não à construção da unidade através do diálogo e do caminhar conjunto. Contudo, na pesquisa teológica e na experiência das comunidades locais, o ecumenismo foi claramente avançando. A partir do Vaticano II, a Igreja Católica assumiu com clareza o compromisso ecumênico e, considerando que a Igreja Católica é, de largo, a maior família confessional da cristandade, o movimento ecumênico transformou-se num empreendimento verdadeiramente universal.

IHU On-Line – Como o senhor analisa o documento conciliar sobre o ecumenismo, o decreto Unitatis Redintegratio?

Walter Altmann – Como observei, o Vaticano II teve como um todo um nítido espírito ecumênico. Mas é precisamente no decreto Unitatis Redintegratio que a Igreja Católica define seu entendimento e seu compromisso ecumênicos. É um texto relativamente breve, mas com nítida inspiração bíblica, assenta definições básicas para o relacionamento da Igreja Católica com as demais igrejas e comunidades eclesiais. Taxativamente afirma que o Espírito Santo age também nelas produzindo a comunhão dos fiéis e a união íntima com Cristo, princípio da unidade da Igreja. Essa afirmação é de longo alcance, ainda que o documento também estabeleça uma hierarquia nas relações e apenas às igrejas ortodoxas é conferido o nome de “igreja”, denominando-se as demais de “comunidades eclesiais”. Ainda assim, na fé em Cristo e pelo dom do batismo, os fiéis das outras igrejas são considerados como “irmãos” (ainda que “irmãos separados”), de forma alguma como “hereges”. O decreto ainda dá uma série de recomendações e estímulos para o diálogo ecumênico, a oração conjunta, a leitura da Bíblia e a prática da caridade. E, ao final, exorta a que não se coloquem obstáculos à ação do Espírito Santo, precisamente nessas relações e na busca da unidade. 

IHU On-Line – Além de Unitatis Redintegratio, que outros documentos conciliares o senhor destaca como relevantes a partir da perspectiva ecumênica? Que resultados alcançaram?

Walter Altmann – A Constituição Dogmática acerca da Igreja (Lumen Gentium) descreve a Igreja como mistério divino e realça a categoria do povo de Deus, antes de abordar a hierarquia, e a santidade desse povo, antes de abordar a vida religiosa. A doutrina acerca da Virgem Maria é exposta nesse documento acerca da Igreja (ao final), e não em algum tratado acerca da salvação. A Constituição Dogmática acerca da Revelação (Dei Verbum) afirma o Evangelho de Jesus Cristo como a fonte única e plena do conhecimento da salvação, superando o esquema pós-tridentino de “duas fontes da revelação”, a saber, a Escritura e a Tradição. Em especial, a valorização da Bíblia teve notável alcance ecumênico, contribuindo decisivamente, não por último, para o processo de (re)leitura da Bíblia nas comunidades de base. A Constituição Dogmática acerca da Sagrada Liturgia (Sacrosanctum Concilium) encaminhou uma profunda reforma litúrgica que incorporou elementos que são importantes no culto protestante (o uso do vernáculo, a importância da pregação/homilia, a animação para o canto etc.). O Concílio também afirmou a liberdade religiosa (Dignitatis Humanae) e reexaminou a relação da Igreja Católica com outras religiões (Nostra Aetate) e sua inserção no mundo moderno (Gaudium et Spes).

IHU On-Line – Para o senhor, quais foram os limites ou lacunas do Vaticano II?

Walter Altmann – Provinda de alguém que não é católico, mas tem uma clara orientação ecumênica, toda apreciação crítica deve ser formulada como um compartilhar de reflexão “intrafamiliar”, isto é, sobre a premissa da comunhão de fé em Cristo. E não invalida de forma alguma o extraordinário legado ecumênico e espiritual que o Vaticano II nos deixou. Dito isso, observo os pontos a seguir. Os textos conciliares foram produzidos, com o intento de produzir consenso, acolhendo em certos momentos, paralelamente, posições que não eram propriamente coincidentes. Isso deu e dá margem ao que alguns têm chamado de “guerra das interpretações”. Um dilema bem conhecido e de grande alcance nas relações ecumênicas é como entender a afirmação constante na Lumen Gentium de que a Igreja de Cristo “subsiste na” Igreja Católica. Seria uma identificação pura e simples ou haveria margem para entender-se que em algum sentido a Igreja de Cristo ultrapassa as fronteiras institucionais da Igreja Católica? O fato de que o texto original e que foi emendado pelo próprio Concílio rezava que a Igreja de Cristo “é” a Igreja Católica parece sinalizar no segundo sentido, mas a interpretação oficial católica vai ao primeiro sentido. Em alguns documentos, por exemplo, na Lumen Gentium, há citações bíblicas genéricas e descontextualizadas, apenas com o fim de comprovar a afirmação teológica já efetuada. Perturbou os observadores ecumênicos no Concílio e perturba ainda hoje a não católicos o fato de que em vários documentos elaborados pelos padres conciliares tenham sido introduzidas alterações “por autoridade superior”, no caso da Lumen Gentium até mesmo uma “nota explicativa prévia” referente ao capítulo acerca da hierarquia. Esse procedimento sinaliza uma compreensão eclesiológica bastante estranha a outras igrejas.

IHU On-Line – Cinquenta anos após sua abertura, como o senhor analisa a atualidade do Concílio? 

Walter Altmann – O legado do Vaticano II continua plenamente válido. Esses cinquenta anos propiciaram inúmeros encontros e ações fraternas, entendimentos teológicos significativos como a Declaração conjunta católico-luterana acerca da Doutrina da Justificação, e muitas ações sociais conjuntas. Oração e estudo bíblico conjuntos se transformaram em prática comum de muitas comunidades. Ainda assim, à diferença do entusiasmo com a causa ecumênica que se podia registrar nos anos 1960 e imediatamente após o Vaticano II, há hoje certa resignação e, mesmo, frustração com os limites do avanço ecumênico. Por exemplo, não tem sido possível ainda chegar-se a um entendimento para a comunhão eucarística, nem mesmo à chamada “hospitalidade eucarística” em que os fiéis de diferentes igrejas possam ser acolhidos na comunhão da Ceia em outra igreja, por exemplo, em confirmações ou casamentos ou ainda em encontros ecumênicos. Parece haver uma resistência em avançar-se, a dar novos passos e uma tendência das igrejas a recolherem-se em seus próprios muros, para assim enfrentar o desafio da diversidade religiosa. A meu ver, é de se lamentar esse fato, pois é precisamente a diversidade religiosa que torna imperativo o empenho ecumênico.

Leia mais...

Walter Altmann já concedeu outras entrevistas à IHU On-Line. Confira:

Protestantismo: é tempo de refletir. Entrevista especial com Cláudio Kupka, Martin Dreher e Walter Altmann. Entrevista publicada no sítio IHU, de 31-10-2011, disponível em http://migre.me/be5Ao;

500 anos depois: Recordar a Reforma, olhando para os desafios comuns da cristandade. Entrevista concedida à IHU On-Line, edição 370, de 22-08-2011, disponível em http://migre.me/be5uw; 

Lutero hoje, 490 anos depois da Reforma. Entrevista com Walter Altmann. Entrevista publicada no sítio IHU, de 09-11-2007, disponível em http://migre.me/be5JN;

A eclesialidade das igrejas cristãs. Teólogos debatem documento do Vaticano. Entrevistas especiais com José Comblin, Walter Altmann e Faustino Teixeira. Entrevista publicada no sítio IHU, de 12-07-2007, disponível em http://migre.me/be5OV;

“Agora é que o diálogo vai se intensificar. Se temos diferenças, vamos encará-las”. Entrevista com Walter Altmann. Entrevista reproduzida pelo sítio IHU, em 15-07-2007, disponível em http://migre.me/be5Vm.

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição