Edição 405 | 22 Outubro 2012

O fecundo jogo de interrogações mútuas entre fé e razão

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Márcia Junges, Luís Carlos Dalla Rosa e Graziela Wolfart | Tradução simultânea de Vanise Dresch

Para Paul Valadier, na própria secularidade os homens estão em busca de um absoluto, de uma transcendência, de uma espiritualidade que os ajude a viver e a empreender

Na visão do filósofo e jesuíta Paul Valadier, a Igreja “não pode se fechar em si mesma, falar unicamente a seus fiéis e desertar o espaço público. O Evangelho é, em princípio, uma luz para todos os homens. A Igreja deve tentar aclarar, iluminar os espíritos e, em primeiro lugar, aclarar-se a si mesma. E ela o fará participando no debate com todos, deixando-se interrogar pelas questões contemporâneas, buscando ver como o Evangelho pode nos ajudar a lançar luz sobre nossos problemas”. Em entrevista concedida pessoalmente à IHU On-Line, por ocasião de sua vinda à Unisinos para participar do XIII Simpósio Internacional IHU Igreja, cultura e sociedade. A semântica do Mistério da Igreja no contexto das novas gramáticas da civilização tecnocientífica, promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, na primeira semana de outubro, Valadier defendeu que nem os cristãos nem a hierarquia da Igreja podem esperar que “a opinião pública se ponha de joelhos diante das propostas que são apresentadas a esta razão pública. Desse ponto de vista, a Igreja nem sempre é capaz de ouvir as objeções e aceitá-las para ver além daquilo que ela diz”. “Parece-me, então”, continua ele, que o papel das igrejas seja levar a sério as novas formas de religiosidades, educá-las e não explorá-las como, a seu ver, fazem as seitas evangélicas. “Em vez de libertar os homens, elas os isolam e os aprisionam em suas angústias e medos, apresentando um deus raivoso, que condena, ao passo que o Deus de Jesus Cristo é um deus de misericórdia”.

Paul Valadier é professor emérito de Filosofia Moral e Política nas Faculdades Jesuítas de Paris (Centre Sèvres). É licenciado em Filosofia pela Sorbonne, mestre e doutor em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Lyon. Foi redator da revista Études e é autor de uma vasta bibliografia. Escreveu, entre outros, Nietzsche et la critique du christianisme (Paris: Cerf, 1974); Essais sur la modernité, Nietzsche, l’athée de rigueur (Paris: DDB, 1989); La part des choses. Compromis et intransigeance (Paris: Lethielleux – Groupe DDB, 2010) e Elogio da consciência (São Leopoldo: Unisinos, 2001). No XIII Simpósio Valadier proferiu a conferência “Crise da racionalidade, crise da religião: desafios e perspectivas para o discurso cristão na atualidade” que, em breve, será publicada nos Cadernos Teologia Pública.

Confira a entrevista.


IHU On-Line – Tendo em conta a cultura pós-moderna, como é possível inserir a condição cristã no horizonte da condição humana?

Paul Valadier –
Eu diria que não há uma resposta genérica para esta pergunta, pois ela depende do testemunho e do carisma de cada cristão e do contexto em que se insere. Portanto, um médico, um pedagogo, um pai ou uma mãe de família, vão inserir de maneira diferente a sua fé cristã no contexto particular ao qual pertencem, e seus testemunhos podem mostrar a vida em que estão inseridos. Não há uma resposta geral a não ser que possamos esperar que cada um, em sua área, viva a partir de uma visão cristã, na perspectiva de doação de si mesmos, no amor, encontrando, a partir de suas situações humanas, meios para inventar modos de proceder que sejam originais ou próprios. Então, insisto em dizer que não há uma resposta geral, a não ser a caridade, mas que pode ser vivida de mil formas possíveis, independentemente se temos boa saúde, se estamos doentes, se somos jovens ou velhos. As respostas não serão as mesmas em função disso. No entanto, sempre é a caridade que inspira.


IHU On-Line – Como a Igreja tem assumido ou pode assumir a razão pública e democrática como marco da condição cristã contemporânea?

Paul Valadier –
Em primeiro lugar, acredito que a Igreja deve fazê-lo. Ela não pode se fechar em si mesma, falar unicamente a seus fiéis e desertar o espaço público. O Evangelho é, em princípio, uma luz para todos os homens. A Igreja deve tentar aclarar, iluminar os espíritos e, em primeiro lugar, aclarar-se a si mesma. E ela o fará participando no debate com todos, deixando-se interrogar pelas questões contemporâneas, buscando ver como o Evangelho pode nos ajudar a lançar luz sobre nossos problemas. Parece-me que a Igreja, a começar pelos próprios cristãos, mas sobretudo pelo seu magistério, já participa do debate público, na medida em que se posiciona em relação à questão da solidariedade internacional, da justiça no mundo, da preocupação com o meio ambiente; também em relação aos problemas da sexualidade, em relação aos problemas do sofrimento e da morte e o sentido dessas questões. A Igreja, seja por parte dos fiéis ou por parte da hierarquia, nem sempre tem a linguagem desejada para ser ouvida no espaço público. Porém, tentar encontrar uma linguagem audível faz parte das obrigações de participação na vida pública. Nesse ponto, todo mundo sempre deve se converter para alcançar um discurso mais pertinente. A partir do momento em que os cristãos e a Igreja participam da razão pública, devemos esperar que ela receba críticas. A sociedade é pluralista e democrática, pressupõe a discussão, a contestação da posição dos outros e, portanto, que haja um engajamento na discussão. Nem os cristãos nem a hierarquia podem esperar que a opinião pública se ponha de joelhos diante das propostas que são apresentadas a esta razão pública. Desse ponto de vista, a Igreja nem sempre é capaz de ouvir as objeções e aceitá-las para ver além daquilo que ela diz.


IHU On-Line – Quais os desafios e as tarefas que dizem respeito à Igreja, diante de um contexto cultural impregnado pelo relativismo moral e secularismo? Nesse aspecto, qual é a atualidade do pensamento de Nietzsche para um revigoramento do agir?

Paul Valadier –
Acredito que sempre temos interesse em ouvir os grandes pensadores da tradição filosófica e ouvi-los não significa necessariamente que concordemos em todos os aspectos com o que eles dizem. Porém, eles podem servir de estímulo, podem nos ajudar a sair de nossos preconceitos, abandoná-los. E certamente Nietzsche , um espírito crítico virulento, excessivo, também pode nos ajudar a ver mais além, mais adiante, e a deixar de lado certas ideias prontas, pré-concebidas. Não se trata aqui de fazer uma conversão a Nietzsche, mas sim de ouvir algumas questões que ele nos lança. Nesse sentido, Nietzsche é um profeta, um antecipador em relação aos problemas da sociedade moderna. Suas intuições, que são muito intensas e muitas vezes severas, podem nos ajudar a observar os enfraquecimentos das nossas sociedades e das vontades humanas. Em particular, a sua crítica à democracia, certamente contestável sob muitos aspectos. Ela aponta a tendência ao gregarismo, ao conformismo, à recusa das pessoas dentro da sociedade em se distinguirem, se diferenciarem, e serem elas mesmas. Desse ponto de vista, Nietzsche pode nos ajudar a sair do conformismo, não para sermos críticos sistemáticos e sim para sermos afirmadores, como diz ele, ou seja, alguém capaz de assumir seus atos e, portanto, suas responsabilidades. Nesse sentido, ele pode nos ajudar muitíssimo a perceber que a grandeza e a beleza do homem estão em saber dizer sim para o mundo, em vez de se fechar em um conformismo, no medo, na renúncia, ou talvez naquilo que ele denomina como ressentimento. Novamente, cabe a cada um definir o que significa dizer sim, na sua própria situação. Portanto, eu diria que Nietzsche não dá outra mensagem além desta, de dizer sim à vida, e podemos, então, ver que é bom e bonito viver.
Nietzsche sempre foi muito marcado pela arte, pelos artistas. Sua grande referência é precisamente a criação artística. Um grande artista, um arquiteto, um músico, um poeta, é aquele que não se contenta em imitar seus antecessores, em se conformar com o que já foi feito. Ele tenta inventar coisas novas que tragam satisfação para o espírito e quer que essas criações sejam belas. É nesse sentido que Nietzsche faz um apelo a cada um para fazer da sua vida uma obra de arte, não no sentido estético fácil, mas de uma obra que se constrói. Assim como Michelangelo  fez suas estátuas ou Johann Sebastian Bach  escreveu missas ou concertos.


IHU On-Line – Na relação fé e razão, como as duas podem se articular, em vista da superação de dogmatismos como do fideísmo ou do racionalismo?

Paul Valadier –
Você emprega a palavra articular, o que significa que não há uma identificação entre as duas. A meu ver, não pode realmente haver uma concordância simples entre fé e razão. Porque a razão ou as racionalidades, sejam elas científicas ou filosóficas, têm seu próprio regime, suas próprias regras, seus procedimentos, que devem ser respeitados. Por outro lado, a fé, quando reflete sobre si mesma, quando se torna teologia, também têm suas próprias regras, seus procedimentos, que devem ser respeitados igualmente. Portanto, temos duas áreas que não correspondem exatamente às mesmas abordagens e às mesmas formas de proceder intelectualmente. Eu diria, antes, que deve haver uma interpelação mútua, recíproca entre as duas, sem que se busque uma concordância muito fácil, muito simplificada, até porque isso pode nem ser muito sadio nem positivo. Por exemplo, a razão científica não para de evoluir, descobrindo novas coisas – na astronomia, na genética – e isso vai nos trazer novos problemas para a razão moral ou para a própria fé cristã. Portanto, devemos prever que os avanços científicos que ainda não conhecemos nos trarão no futuro ou trarão para as gerações futuras problemas que ainda nós não conhecemos. Isso é algo positivo, pois mostra que o espírito humano não para de evoluir e também significa que da parte da fé cristã deve-se aceitar ouvir as novas questões para que se possa tentar enfrentar esses novos desafios. Desafios como o problema do meio ambiente, da ecologia, que nos trazem – a nós como homens e crentes – questões que ignorávamos provável e erroneamente no século XIX. Mas cabe a nós analisarmos esses problemas e ver o que nos diz a fé cristã em relação ao respeito para com a criação. Não é uma questão de dizer que devemos renunciar à empreitada científica, que deve se renunciar a conhecer o mundo, a explorar as riquezas do planeta, mas significa que tudo isso deve ser feito com comedimento e sabedoria, para não deixar às gerações futuras um planeta devastado.

Então, não há necessariamente uma concordância entre as duas, mas um jogo de interrogações mútuas que, para mim, é fecundo tanto para a razão como para a fé. O pior seria se houvesse um afastamento entre as duas, cada uma se mantendo do seu lado e ignorando-se mutuamente.


IHU On-Line – Quais as debilidades ou fraquezas da religiosidade contemporânea, sobretudo a partir do âmbito cristão? Nesse contexto, como entende o fundamentalismo religioso?

Paul Valadier –
Em primeiro lugar, devemos observar que, na nossa sociedade, às vezes dita pós-moderna, a religiosidade está sempre viva. Ao passo que muitos pensavam que, com a secularização da sociedade, das mentes e dos espíritos, as pessoas seriam cada vez menos levadas a se abrirem aos sentimentos religiosos, ou que as pessoas se tornariam positivistas, como pensava Augusto Comte  e seu lema “ordem e progresso” e que se contentariam com fatos, sendo que as mentes humanas se satisfariam em descobri-los. No entanto, percebemos que na própria secularidade os homens estão em busca de um absoluto, de uma transcendência, de uma espiritualidade que os ajude a viver e a empreender. A dificuldade, então, está no fato de que a religiosidade corre muitas vezes o risco de ser selvagem. Porque ela pode levar a toda espécie de idolatria, ideias falsas, a caricaturas de Deus. E esta religiosidade pode se voltar contra o próprio homem. Por exemplo, nas religiões tradicionais antigas, pode-se ter pensado que, para agradar às divindades, era preciso não somente se sacrificar, ou então sacrificar animais, mas às vezes sacrificar seus próprios filhos. Então, uma religiosidade deixada por sua própria conta corre o risco de enlouquecer. E podemos temer que o desenvolvimento de seitas ou de fundamentalismos jogue com esse sentimentalismo para levar os homens a cometerem excessos. Por exemplo, quando eu vejo na televisão que os pregadores evangélicos que pedem dinheiro às pessoas para que elas sejam curadas ou para alcançarem a salvação, fico apavorado, porque se trata de uma exploração da credulidade popular, que leva as pessoas a dar um dinheiro que é necessário para que elas possam criar e educar seus filhos. Então, tenho muito medo de que essa religiosidade leve a cometer excessos. Isso sem falar do lado afetivo, não controlado, fenômenos de massa mesmo, em que se corre o risco de cometer desvios graves nas relações entre os homens. Em suma, é uma análise muito rápida, muito superficial, mas acredito que a Igreja Católica deve, ao mesmo tempo, levar em conta esta demanda de religiosidade, mas também educá-la, como uma criança que ainda não fala, que deve ser educada para falar português, ou chinês, ou árabe, mas justamente precisamos ajudar a criança a falar corretamente a língua – qualquer que seja –, sem o que a criança vai dizer qualquer coisa ou simplesmente será capaz apenas de emitir gritos. Parece-me, então, que os papéis das igrejas é levar a sério essas formas de religiosidades, mas educá-las e não explorá-las como, a meu ver, fazem as seitas evangélicas. Em vez de libertar os homens, elas os isolam e os aprisionam em suas angústias e medos, apresentando um deus raivoso, que condena, ao passo que o Deus de Jesus Cristo é um Deus de misericórdia.


IHU On-Line – Teologia e filosofia têm raízes comuns? E em que medida as duas se afastam, enquanto caminhos independentes?

Paul Valadier –
Esta questão formula muito bem os dois aspectos das duas coisas. A filosofia e a teologia, no Ocidente, baseiam-se na ideia do logos. Para os gregos, está o fato de que o universo é compreensível, e para os cristãos há a ideia de que no começo está o verbo – portanto a palavra. Então, não se compreende isso da mesma maneira, mas se há uma fonte comum, ela está justamente na ideia da palavra, da linguagem, como instância de compreensão, tanto compreensão do mundo como compreensão entre nós. É a linguagem que nos une acima de tudo. Nesse plano, existe uma raiz comum entre o mundo grego e o mundo judaico-cristão. Por outro lado, você tem razão em dizer que os caminhos da teologia e da filosofia se afastaram cada vez mais, desde o século XVI, isso por múltiplas razões, em particular por causa do desenvolvimento das ciências que, como eu disse acima, não dependem da teologia e têm seus procedimentos e seus modos de proceder que são próprios. Então, estabeleceu-se cada vez mais uma diferenciação entre a teologia e a razão – como as diversas racionalidades e as diversas ciências. Mas nós percebemos hoje que precisamos encontrar relações que não sejam de unificação, mas de interrogação mútua e recíproca. Desse ponto de vista, parece que estamos entrando em uma nova era intelectual em que nenhum domínio da realidade, nenhum terreno do conhecimento pode ignorar totalmente os outros. Precisamos, então, encontrar na razão pública um diálogo cada vez maior e com todos.


IHU On-Line – O pensamento fraco é a marca fundamental da filosofia hoje? Por quê?

Paul Valadier –
Essa ideia está muito ligada a Gianni Vattimo  e à interpretação que ele faz da Filosofia. Se quisermos entender por “pensamento fraco” que a Filosofia não tem mais a apresentar um sistema global, coerente, suficiente, neste caso, seguramente, só nos resta concordar. Mas, se por pensamento fraco entendermos a ideia de recusar levantar as questões fundamentais da existência humana, aí não podemos concordar, porque essas questões dizem respeito à vida, à nossa aventura comum, ao sofrimento e à morte. Todas elas são perguntas que nos fazemos, sejamos crentes ou não. Então, acho um erro da parte dos filósofos desertar o campo destas questões como pretexto de quererem ser modestos ou com a ideia do pensamento fraco. Talvez os filósofos não tenham uma resposta segura sobre estas questões, mas, pelo menos, eles precisam mostrar aos homens que essas questões merecem ser consideradas e levantadas e faz parte da grandeza do homem enfrentar e conduzir essas questões. Poderíamos dizer que isso é próprio do homem: saber que é mortal e por isso a vida vale a pena ser vivida. E aqui vamos novamente ao encontro de Nietzsche.


Leia mais...

Paul Valadier já concedeu outras entrevistas à IHU On-Line. Confira.

* Investidas contra o Deus moral obsessivo. Publicada na edição 127 da Revista IHU On-Line, de 13-12-2004

* O futuro da autonomia, política e niilismo. Publicada na edição 220 da Revista IHU On-Line, de 21-05-2007

* “A esquerda francesa está perdida”. Publicada nas Notícias do Dia do site do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, em 27-05-2007

* Narrar Deus no horizonte do niilismo: a reviviscência do divino. Publicada na edição 303 da Revista IHU On-Line, de 10-08-2009

* O desejo e a espontaneidade capciosa. Publicada na edição 303 da Revista IHU On-Line, de 10-08-2009

* A intransigência e os limites do compromisso. Publicada na edição 354 da Revista IHU On-Line, de 20-10-2010

* A filosofia precisa de mais audácia. Publicada na edição 379 da Revista IHU On-Line, de 07-11-2011

* “A Igreja Católica só terá credibilidade se admitir em seu seio o pluralismo”. Publicada na edição 403 da Revista IHU On-Line, de 24-09-2012




>> Paul Valadier tem duas publicações pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU. Confira.

* Investidas contra o Deus moral obsessivo. Publicada na edição 15 dos Cadernos IHU em Formação

* A moral após o individualismo: a anarquia dos valores. Publicada na edição 31 dos Cadernos Teologia Pública

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