Edição 405 | 22 Outubro 2012

Um Universo belo e assimétrico

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Márcia Junges

Apesar de “bela”, a ideia de que há uma teoria final da Natureza não possui suporte nas observações feitas do Universo, pontua Marcelo Gleiser. Imperfeições e assimetrias é que possibilitam a complexidade do cosmos

Entender o surgimento do cosmos é uma das dúvidas mais antigas e inquietantes que a humanidade possui. Contudo, pondera o físico brasileiro Marcelo Gleiser, pode ser que essa explicação não seja possível de ser dada. “A ciência tem limites e só funciona dentro de um patamar conceitual que não consegue explicar-se a si mesmo”, disse na entrevista que concedeu por e-mail à IHU On-Line. A partir da descoberta do Bóson de Higgs tem-se mais “uma comprovação de que nossos modelos que descrevem as propriedades subatômicas da matéria funcionam bastante bem. O Higgs tem pouco a dizer sobre a origem da vida, sendo uma partícula elementar bem distante da bioquímica dos seres vivos. Mas nos remete aos primórdios da era cosmológica, ajudando-nos a chegar cada vez mais perto do ‘momento inicial’”. Gleiser assinala, ainda, que a ideia de perfeição e simetria, tributária dos platonistas, não condiz com a realidade. Segundo ele, sejam as partículas de matéria, as galáxias ou mesmo as incontáveis formas de vida, devem-se à imperfeição e à assimetria. “Quanto mais aprendemos sobre o mundo mais vemos o quão é bela esta assimetria transformadora; proponho uma nova estética da Natureza, onde o imperfeito é o que importa. O perfeito é uma abstração muito inspiradora, mas apenas isso”.

Marcelo Gleiser é graduado em Física pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio, mestre em Física pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ e doutor em Física Teórica pelo King’s College, em Londres. É pós-doutor pelo Fermilab e pela Universidade da Califórnia, Santa Bárbara, nos Estados Unidos. Leciona no Dartmouth College, em Hanover, nos Estados Unidos. Tem uma vasta produção acadêmica, além de inúmeros artigos e livros publicados, dentre os quais citamos Cartas a um jovem cientista (Rio de Janeiro: Campus, 2007); Conversa sobre fé e ciência (São Paulo: Agir, 2011), escrito com Frei Betto; Criação imperfeita (Rio de Janeiro: Record, 2010) e A dança do universo (Rio de Janeiro: Companhia de bolso, 2006).

Confira a entrevista.


IHU On-Line – A comprovação da existência do Bóson de Higgs muda alguma coisa em relação à nossa compreensão sobre o surgimento do Universo e da vida?

Marcelo Gleiser –
Sim. Com essa descoberta temos mais uma comprovação de que nossos modelos que descrevem as propriedades subatômicas da matéria funcionam bastante bem. O Higgs tem pouco a dizer sobre a origem da vida, sendo uma partícula elementar bem distante da bioquímica dos seres vivos. Mas nos remete aos primórdios da era cosmológica, ajudando-nos a chegar cada vez mais perto do “momento inicial”.


IHU On-Line – A teoria do Big Bang precisa ser revista a partir da constatação dessa partícula? Por quê?

Marcelo Gleiser –
De jeito algum. A existência do Higgs já era algo esperado pela comunidade científica. A menos que ele ainda nos surpreenda, e isso é possível, pois não temos todas as suas propriedades medidas, nada de muito diferente ocorrerá com as teorias atuais. Caso algo de novo surja da análise mais detalhada dos dados, teremos que esperar e ver. Mas em ciência, o novo e inesperado é sempre bem-vindo.


IHU On-Line – O que a comprovação do Bóson de Higgs representa para a Física? Há outras descobertas dessa magnitude cujas pistas já estejam dadas?

Marcelo Gleiser –
Representa a constatação de como nossos modelos ultrassofisticados que usamos para descrever as propriedades da matéria a altíssimas energias funcionam bem. Existem ainda muitas outras questões em aberto, como a composição da chamada “matéria escura”, que desconhecemos. Sabemos que ela está pelo Universo, em torno de galáxias, mas não sabemos o que é.


IHU On-Line – Tomando em consideração a provocativa parábola sobre Aristóteles e Higgs  que o senhor compôs, como podemos interpretar a comprovação do Bóson de Higgs e a tentativa de explicação e desvelamento de tudo o que existe? O que há por trás dessa vontade de saber?

Marcelo Gleiser –
O homem é um ser curioso, nunca satisfeito com o que sabe. Quer sempre aprender mais sobre o mundo em que vive, na tentativa de aprender mais sobre si mesmo. Esta curiosidade está por trás de nossa inventividade, seja nas ciências, seja nas artes. Queremos estabelecer contato com algo maior, algo que transcenda nossa curta existência neste planeta. A filosofia e a ciência oferecem uma opção de vida, um caminho para que possamos atingir um patamar moral e intelectual mais elevado. O mundo precisa de ambas as coisas.


IHU On-Line – Como podemos compreender o que seja matéria e antimatéria? Há conexão delas com o Bóson de Higgs?

Marcelo Gleiser –
Toda partícula de matéria, como um próton ou um elétron, tem sua parceira de antimatéria. A diferença mais essencial entre as duas é que as partículas de antimatéria têm carga elétrica oposta as de matéria: se o elétron é negativo, o pósitron, sua antipartícula, é positivo. O interessante é que segundo as leis da física, matéria e antimatéria deveriam existir em pé de igualdade. Mas como explico em meu livro Criação imperfeita (Record, 2010), isso não ocorre: o Universo é quase que exclusivamente composto de matéria. A antimatéria que vemos é feita em laboratórios ou aparece em raios cósmicos, radiação que vem dos céus após a colisão com moléculas na nossa atmosfera. O Higgs não muda este quadro; o mistério da assimetria entre as duas continua em aberto.


IHU On-Line – O que o senhor quer dizer com criação imperfeita?

Marcelo Gleiser –
Quero dizer que o cosmo e as estruturas que nele existem – das partículas de matéria às galáxias e as formas de vida – devem sua existência a imperfeições e assimetrias na Natureza. Caso o cosmo fosse perfeitamente simétrico, como queriam (e querem) os platonistas, nós não estaríamos aqui. Quanto mais aprendemos sobre o mundo mais vemos o quão é bela esta assimetria transformadora; proponho uma nova estética da Natureza, onde o imperfeito é o que importa. O perfeito é uma abstração muito inspiradora, mas apenas isso.


IHU On-Line – A Teoria do Big Bang possui alguma aproximação com a arché aristotélica (a causa incausada), ou com a causa sui dos neoplatônicos (a causa como causa de si mesma)?

Marcelo Gleiser –
Apenas em parte, pois todos sofrem da questão da Primeira Causa. As soluções de Aristóteles e Platão, sendo filosóficas, são bem diferentes das propostas pela física moderna, que depende de teorias e modelos atuais que só são aceitos após comprovação experimental. Ainda não temos uma explicação científica para a origem do Universo e talvez ela não seja mesmo possível. A ciência tem limites e só funciona dentro de um patamar conceitual que não consegue explicar-se a si mesmo.


IHU On-Line – Por que o senhor afirma que não há uma unidade por trás de todas as coisas? O que há por trás da tentativa de encontrar uma teoria geral que explique o Universo?

Marcelo Gleiser –
A ideia de que existe uma teoria final da Natureza, bela que é, não encontra suporte nas observações que fazemos do Universo. A ordem e a simetria são ferramentas teóricas muito úteis, especialmente quando tentamos simplificar algo bem complexo através de aproximações. Exemplo disso é tomar a Lua como sendo perfeitamente esférica. Mas devemos ter cuidado para não transformar uma ferramenta, um preconceito filosófico vindo dos pitagóricos e de Platão, em dogma científico. No final, a decisão vem da Natureza, e não das nossas teorias.


Leia mais...

Marcelo Gleiser
já concedeu outras entrevistas à IHU On-Line. Confira:

* O perigo do obscurantismo e da prepotência. Entrevista publicada na edição 403 da revista IHU On-Line, de 24-09-2012

* A crença na miraculosa capacidade humana da descoberta. Entrevista especial com Marcelo Gleiser. Notícias do Dia 10-10-2012

 

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