Edição 404 | 05 Outubro 2012

O princípio comunitário da teologia e a sabedoria guarani

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Graziela Wolfart | Tradução de Anete Amorim Pezzini

Margot Bremer acredita que a visão guarani da existência humana, que nasceu há milhares de anos na América Latina, “poderia enriquecer enormemente a teologia latino-americana que ainda tem muita casca ocidental em seu modo de pensar teologicamente”

“A teologia das sociedades contemporâneas que se embasa fundamentalmente na filosofia ocidental, na que pensa dando prioridade à razão, expressa-se por meio de tratados, conceitos, definições. A teologia guarani tem seu fundamento na sabedoria, e se expressa com o corpo em dança sagrada e com o canto sagrado dos xamãs. Para ela, a palavra é sagrada, foi criada antes dos humanos, e é a alma de todo o ser humano. Por isso suas expressões teológicas, que se manifestam em seus mitos, são expressas de forma sumamente poética”. Tal reflexão é feita pela biblista Margot Bremer, em entrevista concedida por e-mail para a IHU On-Line. Ela vê como urgente e necessário que “ambas as teologias entrem em diálogo, sem que a teologia guarani tenha de adaptar-se em sua terminologia à teologia cristã para ser compreendida. Ambas as partes necessitam fazer um grande esforço para sair de seu mundo e embrenhar-se no mundo do outro. Estou convencida de que a cosmovisão guarani pode aportar muito à antropovisão cristã, assim como a linguagem que os guaranis usam para falar com Deus e de sua criação”. 

Margot Bremer é biblista, acompanha a pastoral indígena e é membro do Conselho de Redação da revista Acción, Paraguai, bem como da Ameríndia (Paraguai). É irmã da Congregação das Religiosas do Sagrado Coração de Jesus, da província da Argentina – Uruguai, e autora do livro Judit: La refundación del pueblo desde un Dios casero (Editora CEPAG, 1991). Ela estará na Unisinos participando como painelista do Congresso Continental de Teologia, abordando o tema “Teologia e sabedoria guarani”. Saiba mais em http://bit.ly/q7kwpT. 

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como a senhora descreve a teologia e a sabedoria guarani? A partir da convivência com este povo, o que eles ensinam sobre a inter-relação entre o Deus Criador e sua criação?

Margot Bremer – É difícil falar de uma teologia guarani, já que os guarani não têm sequer um termo semelhante ao que chamamos teologia. Quando falam de Deus não O separam da comunidade humana nem da comunidade cósmica: tudo está estreitamente inter-relacionado e tudo está imbuído de divindade e, por isso, tudo é sagrado. Os guarani chamam Deus de Ñanderuvusú, Namandú ou Ñanderu, o que sempre quer dizer “Nosso Pai”, incluindo toda a criação. Não se perguntam como é Deus em si nem como criou o mundo, mas sua pergunta é “para quê?”, e buscam uma resposta na ordem do mundo com seus princípios de vida que manifestam na natureza a presença da sabedoria divina com que foi criado o mundo e, com isso, tentam sintonizar seu ritmo e seu rumo, e entrar neles. Acreditam que, dessa maneira, podem colaborar com o plano criacional de Deus ao cuidar e manter o equilíbrio e a harmonia da natureza. Não têm uma visão antropocêntrica como nós, mas biocêntrica, isto é, centrada na vida em sua totalidade. Os guarani creem que, se os homens não respeitam essa ordem da criação, o Criador tem de remover a cruz com seus quatro pontos cardeais sobre a qual criou a terra e que simboliza a ordem estabelecida desde a criação.

IHU On-Line – Qual a contribuição que a teologia e a sabedoria do povo guarani podem dar ao debate sobre os rumos da Teologia na sociedade contemporânea?

Margot Bremer – Em meu entender, a teologia das sociedades contemporâneas que se embasa fundamentalmente na filosofia ocidental, na que pensa dando prioridade à razão, expressa-se por meio de tratados, conceitos, definições. A teologia guarani tem seu fundamento na sabedoria e se expressa com o corpo em dança sagrada e com o canto sagrado dos xamãs. Para ela, a palavra é sagrada, foi criada antes dos humanos, e é a alma de todo o ser humano. Por isso suas expressões teológicas, que se manifestam em seus mitos, são expressas de forma sumamente poética. Vejo urgente e necessário que ambas as teologias entrem em diálogo, sem que a teologia guarani tenha de adaptar-se em sua terminologia à teologia cristã para ser compreendida. Ambas as partes necessitam fazer um grande esforço para sair de seu mundo e embrenhar-se no mundo do outro. Estou convencida de que a cosmovisão guarani pode aportar muito à antropovisão cristã, assim como a linguagem que os guaranis usam para falar com Deus e de sua criação.

IHU On-Line – Que relação pode ser estabelecida entre a teologia guarani, o Concílio Vaticano II e o livro Teología de la Liberación, de Gustavo Gutierrez?

Margot Bremer – a) A teologia guarani não é um produto de alguns teólogos em particular, mas se trata de saberes sagrados que foram elaborados e reelaborados por gerações em diferentes assembleias (aty guazú), com participação de toda a comunidade. São os xamãs que cuidam dela e transmitem-na, fazendo releituras da tradição de seus antepassados com a comunidade atual. Com isso revitalizam permanentemente sua identidade guarani a partir de suas raízes. É óbvio que se trata de uma teologia comunitária.

b) O Concílio Vaticano II apresentou à Igreja preferentemente a imagem do “Povo de Deus”. O povo constitui-se como tal em assembleias (gahal-igreja), origem etimológica do termo “igreja”. No Antigo Testamento, participavam nessas assembleias representantes das doze diferentes tribos, o que sinaliza uma ordem de pluralidade que consideraram como uma força na construção da unidade. Jesus retomou essa imagem de “Povo de Deus” ao reunir-se com doze discípulos que iriam continuar sua obra em e com Seu Espírito. Desse modo, estabeleceu-se uma nova aliança, “chamando um povo entre os judeus e os gentios, que constituíra uma unidade no Espírito e foram o novo Povo de Deus” (LG II, 9). Também aqui vemos claramente que se trata de uma eclesiologia sumamente comunitária.

c) A Teología da Libertação, livro de Gustavo Gutierrez, é uma síntese das múltiplas reuniões e assembleias que celebraram as Comunidades Eclesiais Cristãs – CEBs, que nasceram depois do Concílio Vaticano II na América Latina em tempo de plena ditadura. Em suas reuniões, essas comunidades, pobres em sua grande maioria, tanto rurais como suburbanas, analisavam a realidade e iluminaram-na com a Palavra de Deus para chegar a um compromisso comum em favor da vida e da convivência com todos. Articulam-se com outras CEBs mediante numerosos encontros regionais, nacionais e continentais. Pouco a pouco, ali renasceu novamente a visão original de um Deus do Povo com sua preferência pelos pobres que Jesus Cristo, Seu Filho, encarnou em sua vida até a morte. Essa Teologia da Libertação brindou consequentemente com uma nova visão da Igreja como Povo de Deus, uma nova eclesiologia.

IHU On-Line – O que caracteriza a teologia latino-americana, e em que medida os povos indígenas e originários contribuem para o traçar de uma marca teológica de nosso continente?

Margot Bremer – A meu ver, o que caracteriza a teologia latino-americana é sua opção preferencial pelos pobres, isto é, que parte da realidade e do escândalo dos pobres, e compromete-se com eles profeticamente em sua defesa por mais justiça e direitos. Nisso, querem ser fiel ao evangelho de Jesus Cristo. Os povos indígenas têm uma visão cósmica, uma existência integral de convivência com a Terra como Mãe (Pacha Mama), que muda o modo de ver, de pensar, de falar e de ser. Não se consideram centro, mas parte da criação, parte da comunidade, parte do conjunto, parte do matrimônio; não há protagonismo nem competição, mas complementaridade, compartilhamento, intercâmbio, reciprocidade dentro de um pensamento holístico. Acredito que essa visão da existência humana, que nasceu há milhares de anos neste continente, poderia enriquecer enormemente a teologia latino-americana que ainda tem muita casca ocidental em seu modo de pensar teologicamente.

IHU On-Line – Considerando a mudança epocal que vivemos e a crise ambiental instaurada em nosso planeta, em que medida os povos originários, com sua visão cósmica milenar, podem iluminar a construção de uma teologia menos centrada no ser humano?

Margot Bremer – A consciência de viver em uma época de mudanças está muito mais presente nos povos indígenas do que na cultura ocidental das nações latino-americanas, muito enredadas em um sistema neoliberal-capitalista que quer distrair e enganar. A cultura ocidental destaca a superioridade da espécie humana sobre as demais espécies de vida. Frente ao meio ambiente converte-se em seu dono absoluto, querendo dominar todas as demais espécies. Desse modo, converte-se em um “especismo” perigoso. A crise ambiental afeta não somente a Terra, mas também o homem que forma uma unidade com a Terra e depende dela muito mais que ela dele. Por causa dessa crise ambiental, a Teologia da Libertação gerou, entre outras, a ecoteologia, inspirada na sabedoria e no conhecimento da natureza dos povos indígenas. Para combater o poder do grande capital que se expressa na destruição e devastação da natureza, necessita-se como alternativa de um poder ético de inclusão e cuidado para com a Mãe Terra e para com toda a vida que ela gera. A teologia da América Latina está no caminho de reconhecer e incorporar essa vertente da teologia indígena que lhe faltava. Pouco a pouco esse aporte está consequentemente transformando sua visão antropocêntrica de Cristo em outra, de um cristo cósmico. Acho que essa contribuição para a Teologia da Libertação não somente a enriquece extraordinariamente, mas também lhe dá tanto mais identidade latino-americana.

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