Edição 404 | 05 Outubro 2012

O Bem Viver e uma teologia indígena

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Graziela Wolfart | Tradução de Anete Amorim Pezzini

“Certamente, a contribuição indígena, tomada da sabedoria ancestral e milenar de nossos povos, pode ajudar na solução da crise de credibilidade das instituições religiosas”, opina Eleazar López Hernández

O tema da teologia indígena é o que inspira a entrevista a seguir, concedida por e-mail para a IHU On-Line pelo teólogo Eleazar López Hernández, que é descendente de uma família indígena zapoteca. Para ele, desde sempre, “a palavra indígena é apenas mais uma das vozes que expressam mais fortemente a dor de pessoas e povos que sofrem atualmente as consequências negativas da economia neoliberal globalizada; mas também é um grito de esperança, porque nós, indígenas, podemos extrair de nossos mitos e crenças ancestrais luzes que podem iluminar a escuridão que agora se impõem”. Conforme sua visão, “frente à crise atual os povos indígenas trazem os princípios e valores básicos que deram sustentação às suas altas e grandes civilizações na época anterior ao contato europeu, e serviram-lhes para não sucumbir depois do contato predador e aniquilante”. E ele aponta que, na América Latina, o Concílio Vaticano II não se tornou “apenas um texto bonito para ser citado em novos documentos, pois temos oferecido um canal às melhores abordagens conciliares a respeito do modo de ser e viver a fé cristã dentro dos contextos sociais, culturais e religiosos próprio de nossos povos. O impulso dado pelo Concílio gerou aqui processos altamente inspiradores de compromisso da Igreja ao lado dos pobres que buscam criar condições mais humanas de vida como expressão histórica dos valores do Reino de Deus. Essa troca não ocorreu sem muito sofrimento e sangue para os que foram os profetas de nossos tempos. E tampouco se deu sem incompreensões e ataques de parte de quem, na Igreja, tem outro modo – que não é o do Concílio – de olhar as coisas. O testemunho de tantos mártires nos mantém no caminho”.  

Eleazar López Hernández une seus estudos teológicos à prática indígena. Nasceu em Juchitán, Oaxaca, no México, ingressou no seminário em 1961 e formou-se em Filosofia e Teologia. Também participou do primeiro curso de pastoral indigenista em Caracas, da primeira Conferência dos Povos Indígenas, em 1975, em Vancouver, da contribuição indígena para o Encontro de Puebla e de Santo Domingo, como conselheiro. Atualmente, trabalha no Centro de Auxílio às Missões Indígenas, no México, participa da Associação Ecumênica dos Teólogos do Terceiro Mundo e da equipe teológica Ameríndia. Ele estará na Unisinos participando como painelista do Congresso Continental de Teologia, com o tema “Teologia indígena”. Saiba mais em http://bit.ly/q7kwpT.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Qual a contribuição que a teologia indígena e a proposta do “bem viver” podem oferecer à crise atual em seus aspectos financeiro, político e ambiental, por exemplo? O que os povos indígenas podem ensinar diante da crise das instituições?

Eleazar López Hernández - Desde sempre, a palavra indígena é apenas mais uma das vozes que expressam mais fortemente a dor de pessoas e povos que sofrem atualmente as consequências negativas da economia neoliberal globalizada; mas também é um grito de esperança, porque nós, indígenas, podemos extrair de nossos mitos e crenças ancestrais luzes que podem iluminar a escuridão que agora se impõem. Nesse sentido, nós “índios” não somente viemos carregando nossas dores e misérias, mas também somos os portadores de sementes de vida e de esperança.

A proposta andina de Sumak Kawsay  traduzida como “bem viver” adquire agora uma relevância especial, porque mostra, ante a crise, um caminho de solução que não é uma teoria elaborada a partir de livros, mas uma abordagem tomada da experiência milenar de nossos povos, que os guiou no passado para o desenvolvimento de mecanismos concretos de organização social que alcançaram níveis humanitários e civilizacionais muito elevados; e que hoje perduram em meio a muitas dificuldades e podem inspirar formas adequadas de lidar com o projeto neoliberal.

Não é que a Sumak Kawsay ou outras utopias indígenas como a “Terra sem males”, a “Terra florida” ou o Guendanazaaca zapoteca (“estar bem ou em paz”) sejam uma receita fácil de aplicar em contextos tão amplos e pluralistas da sociedade atual. Equivocar-nos-íamos se quiséssemos aplicá-las mecanicamente, pois são somente modelos inspiradores que necessitam ajustar-se às exigências modernas com reformulações dos elementos fundamentais que precisam de nossa responsabilidade e criatividade em especial o financeiro, o político e o ecológico. Frente à crise atual os povos indígenas trazem os princípios e valores básicos que deram sustentação às suas altas e grandes civilizações na época anterior ao contato europeu, e serviram-lhes para não sucumbir depois do contato predador e aniquilante. O “bem viver” é ainda hoje a concretização do ideal da harmonia cósmica, comunitária e pessoal, em que o valor da vida é o maior dom que se há de buscar não somente para as pessoas, mas também para as plantas, para os animais e para a própria Terra; em que o intercâmbio entre pessoas não se mede pelos lucros econômicos gerados (bens materiais e dinheiro), mas pelo crescimento das relações humanas que nos tornam mais irmãs e irmãos. Por isso existiram e existem ainda o sistema de cargas e o serviço comunitário gratuito, assim como a permuta ou intercâmbio personalizado de bens em que se unem e estreitam-se relações de parentesco ou vizinhança. A celebração é a expressão maior do desfrute da vida em comunidade.

IHU On-Line - Quais as diferenças entre a proposta indígena do "bem viver” e a concepção católica do "viver bem”?

Eleazar López Hernández - O uso atual de palavras semelhantes sobre o “bom viver” pode criar confusões lamentáveis. Certamente, como já disse, o Sumak Kawsay andino e as outras utopias ou modelos indígenas de sociedade têm características próprias que os distinguem do bon vivant francês ou do viver bem pregado pela Igreja. O Bon Vivant é o resultado lógico do modelo capitalista burguês que leva ao desfrute individualista dos bens, por parte dos poderosos, em detrimento da desapropriação dos demais. E o viver bem da Igreja normalmente refere-se a uma vida moralmente boa de que não faz o mal diretamente a ninguém, mas não necessariamente compromete-se a construir condições de vida digna para todas e todos. É o jovem rico que cumpre com todas as exigências da lei, mas não por isso decide dar todos os seus bens aos pobres para seguir Jesus.

IHU On-Line - Em que sentido o aporte indígena pode apontar soluções para a crise de credibilidade institucional religiosa atual?

Eleazar López Hernández - Certamente, a contribuição indígena, tomada da sabedoria ancestral e milenar de nossos povos, pode ajudar na solução da crise de credibilidade das instituições religiosas, porque se baseia em verdades-chave e mais profundas da vida, tais como o senso comunitário, a interdependência entre nós, o valor do serviço, a colaboração com Deus. Não há especulações puramente circunstanciais ou de momento; mas palavras com raiz e fundamento, que provaram sua eficácia no passado, e seguem nutrindo a história dos povos. Nesse sentido, pode-se falar da reserva de humanidade que existe nos povos indígenas que estão dispostos a doar suas células-tronco ou compartilhar suas sementes de vida para que o resto da humanidade recupere as razões mais sérias que deveriam dar sentido à sua existência: somos filhas e filhos de Deus e da Mãe Terra, e estamos colocados nela para cuidar da vida.

IHU On-Line - Que inspiração a austeridade vinda da experiência dos povos indígenas pode oferecer à sociedade contemporânea? 

Eleazar López Hernández - A austeridade de vida de muitos povos indígenas, especialmente dos nômades, oferece à sociedade contemporânea exemplos de como se pode viver bem com o mínimo indispensável. É desnecessário consumir ou acumular em demasia os produtos ou bens da terra, que é a que nos induz o modelo capitalista atual, para fazer-nos trabalhar em seu benefício. Além disso, esse modelo consumista, ao basear-se em uma produção depredadora da natureza e da humanidade, resulta prejudicial à mãe terra e acaba por ser insustentável para a vida como um todo. Somente estilos austeros de vida como os dos povos indígenas são sustentáveis para o futuro.

IHU On-Line - O senhor acredita que a crise que hoje vive a Igreja Católica se faz necessária para estreitar os laços entre a Instituição e a Teologia Indígena?

Eleazar López Hernández - A grave crise pela qual a Igreja Católica passa hoje não era condição indispensável para que ela estreitasse laços de unidade com os pobres em geral e com os povos indígenas e sua teologia. É por causa do Evangelho de Cristo que ela deveria mover-se para ir ao encontro de quem são os prediletos de Deus: “os mais pobres entre os pobres”, como nos chamaram os bispos em Puebla. Mas, dado que a crise existe e que sua solução exige a participação responsável de quem forma a Igreja, nós, indígenas católicos ou cristãos, levamos a sério o pedido de auxílio do Crucificado a Francisco de Assis  em Porciúncula: “reconstrói a minha Igreja”. Por isso, estamos dispostos a contribuir com o melhor de nós para que ela recupere sua santidade originária e sua missão evangelizadora no mundo. Não atuamos nela como vingadores de culpas do passado, mas como construtores de novas atitudes eclesiais para o futuro. É claro que nem todos os membros da Igreja compreendem nossa luta e contribuição teológica. Há quem nos veja com muito receio e preocupação, quando – tal como proposto por João Paulo II ao afirmar que “pode-se ser cristão sem deixar de ser indígena” – atrevemo-nos a colocar na Igreja as nossas penas, nossos trajes, nossas danças, nossos ritos e os mitos de nossos povos; mais ainda, quando queremos inculturar a Igreja em nossos moldes culturais e religiosos. Acreditam que estamos voltando ao paganismo. E a velha prática do colonialismo e da ocidentalização que prevalece na Igreja impede-lhes de enxergar com bons olhos nossas flores e nossas canções. Mas não ficamos para trás; seguimos caminhando, abrindo novos horizontes de inculturação e de diálogo inter-religioso apesar das dificuldades do caminho. Como disse o poeta: “vamos fazendo o caminho ao andar”. Não sabemos em que terminam os processos de diálogo intraeclesial que começamos, faz tempo, com as autoridades maiores de Roma e do CELAM sobre os pontos especialmente conflitantes de nossa Teologia Índia. Mas somos gente de esperança.

IHU On-Line - Como o senhor percebe o diálogo com os teólogos não indígenas? Que frutos interessantes podem surgir dessa união? 

Eleazar López Hernández - É verdade que, quando iniciou a Teologia Latino-Americana como Teologia da Libertação , nos anos 1970, houve problemas com alguns teólogos excessivamente influenciados pelo regime marxista clássico, os quais não entendiam a luta indígena, pois, segundo eles, não se encaixava com a luta de classes ou com a categoria de pobres ou explorados. Parecia-lhes que insistir na manutenção e defesa das culturas indígenas seria mais um obstáculo do que um apoio para a transformação da sociedade. Tivemos de lidar com essas dificuldades, dialogando muito com as(os) irmãs(os) teólogas(os) da libertação até que todos avançamos, e chegamos a novas ferramentas de análises e de compreensão da realidade multifacetada dos pobres da América Latina. Graças a esses debates e diálogos, podemos agora sentar juntos à mesma mesa, e fazer propostas para ações conjuntas no seio da Igreja e a serviço da luta de nossos povos. Claro que ainda falta muito por caminhar no sentido de articular melhor nosso pensamento teológico, atuando interdisciplinar e multissetorialmente. Nós, indígenas, assumimos muito das abordagens dos não-indígenas; mas falta que eles assumam mais nossas temáticas integrais, nossa linguagem simbólica e nossa metodologia comunitária.

IHU On-Line - Como o senhor define a acolhida ao Concílio Vaticano II no ambiente latino-americano e caribenho?

Eleazar López Hernández - Em minha opinião, é na América Latina e no Caribe, juntamente com a África, onde o Concílio do Vaticano II teve a melhor acolhida. Aqui, o Concílio não se tornou apenas um texto bonito para ser citado em novos documentos, pois temos oferecido um canal às melhores abordagens conciliares a respeito do modo de ser e viver a fé cristã dentro dos contextos sociais, culturais e religiosos próprio de nossos povos. O impulso dado pelo Concílio gerou aqui processos altamente inspiradores de compromisso da Igreja ao lado dos pobres que buscam criar condições mais humanas de vida como expressão histórica dos valores do Reino de Deus. Essa troca não ocorreu sem muito sofrimento e sangue para os que foram os profetas de nossos tempos. E tampouco se deu sem incompreensões e ataques de parte de quem, na Igreja, tem outro modo – que não é o do Concílio – de olhar as coisas. O testemunho de tantos mártires nos mantém no caminho. 

Leia mais...

>> Eleazar Lopez Hernandez já concedeu outras entrevistas à IHU On-Line. Confira: 

“Não basta salvar a nós, indígenas; é preciso salvar toda a humanidade e toda a criação”. Entrevista publicada na edição número 292, de 11-05-2009, disponível em http://bit.ly/SqxmjT 

A trama da vida: ensinamentos dos indígenas sobre a democracia. Entrevista publicada na edição número 355, de 28-03-2011, disponível em http://bit.ly/hWQ0Jy 

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