Edição 404 | 05 Outubro 2012

Igreja, contemporaneidade e um poder centralizado na Santa Sé

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Graziela Wolfart

“Hoje a tendência dominante vai no sentido do enrijecimento do catolicismo romano. É como se a alta hierarquia dissesse, a quem dela se desafeiçoa, que a Igreja Católica é assim e não se pode mudar mais nada”, percebe o sociólogo Pedro Ribeiro de Oliveira

 

“As Igrejas, cujos centros de elaboração teológica estão nos países ricos, têm enorme dificuldade de entender esse fenômeno que vem da periferia do mundo. Não conseguem perceber que aqui vivemos uma experiência histórica original e que tentamos elaborar um pensamento também original. Mas mesmo aqui tudo que existe não são mais do que ensaios de elaboração teológica, filosófica e sociológica. Por isso a comemoração dos 50 anos do Concílio Ecumênico de 1962-1965 pode vir a ser um novo incentivo a abrir nossos olhos, nosso pensamento e nossos corações a esse ‘sinal dos tempos’ de Nossa América”. A opinião é do sociólogo da religião Pedro Ribeiro de Oliveira, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Ao referir-se ao Concílio Vaticano II, o professor da PUC-Minas considera interessante que a volta à “grande tradição cristã – verdadeiramente ecumênica – derrubou a pequena tradição católica elaborada em oposição à modernidade, abrindo assim a possibilidade de grandes avanços no catolicismo romano”. E destaca que, para abrir o diálogo com a contemporaneidade, é preciso que a estrutura curial da Igreja Católica romana seja substituída por uma estrutura colegiada e participativa. “Um dia isso vai acontecer, com certeza. E aí, sim, poderemos saborear os frutos plantados pelo Concílio Ecumênico de 1962-1965”, conclui.

Pedro A. Ribeiro de Oliveira é doutor em Sociologia pela Université Catholique de Louvain, na Bélgica. É professor no mestrado em Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de Minas – PUC-Minas, consultor de ISER-Assessoria, membro da diretoria da SOTER e da coordenação nacional do Movimento Fé e Política. Dentre suas obras, destacamos Fé e política: fundamentos (Aparecida: Ideias & Letras, 2004), Reforçando a rede de uma Igreja missionária (São Paulo: Paulinas, 1997) e Religião e dominação de classe (Petrópolis: Vozes, 1985). 

Ele estará na Unisinos participando do Congresso Continental de Teologia, ministrando a conferência “A situação sociocultural, econômica e política do Continente no contexto mundial”. Saiba mais em http://bit.ly/q7kwpT.

Confira a entrevista. 

IHU On-Line – Como o senhor descreve a situação sociocultural, econômica e política do continente latino-americano no contexto mundial atual? Como a teologia e a Igreja se inserem nesse contexto?

Pedro Ribeiro de Oliveira – A América Latina e Caribe, a Nossa América – como gosta de falar D. Pedro Casaldáliga inspirado em José Martí  – faz hoje a experiência de se desgarrar da Europa e dos Estados Unidos para construir sua própria história. Até o final do século XX nossos países tentaram desenvolver-se adaptando às suas peculiaridades modelos vindos de fora. Nem mesmo a mais criativa das nossas revoluções, a sandinista, na Nicarágua, escapou do paradigma socialista elaborado na Europa do século XIX. Só agora, no limiar do século XXI, nossos povos se abrem à construção de um modo de produção e consumo com raízes em sua própria cultura. Seu marco inaugural foi, a meu ver, o levante Zapatista em Chiapas, em 1994, porque ele abandona o antigo paradigma da modernidade ocidental e abre caminhos para um projeto de sociedade oriundo da periferia do sistema. Sua aptidão de incorporar conquistas da modernidade inscrevendo-as noutro paradigma configura uma conjuntura realmente nova e original, que estamos apenas começando a entender. As Igrejas, cujos centros de elaboração teológica estão nos países ricos, têm enorme dificuldade de entender esse fenômeno que vem da periferia do mundo. Não conseguem perceber que aqui vivemos uma experiência histórica original e que tentamos elaborar um pensamento também original. Mas mesmo aqui tudo que existe não são mais do que ensaios de elaboração teológica, filosófica e sociológica. Por isso a comemoração dos 50 anos do Concílio Ecumênico de 1962-1965 pode vir a ser um novo incentivo a abrir nossos olhos, nosso pensamento e nossos corações a esse “sinal dos tempos” de Nossa América.

IHU On-Line – Qual a importância de celebrar os 50 anos do Concílio Ecumênico Vaticano II, no sentido de resgatar a sua memória, principalmente levando em conta o período em que foi realizado (1962 a 1965)? Que inspiração ele ainda pode oferecer à Igreja em nossos dias? 

Pedro Ribeiro de Oliveira – O Concílio realizou-se em pleno período dos “anos dourados”, como foi chamado o tempo entre o término da segunda guerra mundial e a crise do petróleo de 1973. Período marcado por enorme desenvolvimento das forças produtivas e profundas transformações sociais, culturais e políticas em todo o mundo. O ano de 1968 ficou conhecido como o ano das revoluções culturais devido à contestação de antigos valores e à proposta de uma liberdade sem restrições por parte das autoridades constituídas: ficou “proibido proibir”.

É nesse contexto que se inscreve a grande reunião do episcopado católico, a pedido dos Papas João XXIII e Paulo VI, para “colocar em dia” a Igreja Católica nesse mundo que iniciava seu processo de globalização. O clima da época e a quebra da resistência oferecida pela Cúria Romana – até então considerada indispensável ao papado para guardar intacto o tesouro da fé católica – possibilitou a revisão de antigas verdades que, por terem sido engessadas no catecismo romano, eram tratadas como dogmas, e assim abrir o caminho para a “volta às fontes” da tradição cristã. O interessante é que essa volta à grande tradição cristã – verdadeiramente ecumênica – derrubou a pequena tradição católica elaborada em oposição à modernidade, abrindo assim a possibilidade de grandes avanços no catolicismo romano.

IHU On-Line – Quais foram os principais avanços no campo teológico, bíblico, litúrgico e sociopolítico trazidos pelo Vaticano II e que se mantém acesos até hoje?

Pedro Ribeiro de Oliveira – Considero que as principais mudanças se deram na teologia (concepção da Igreja como Povo de Deus presente na história humana), no resgate da Bíblia como norma maior da Igreja, na renovação da Liturgia (ao enfatizar a missa mais como Eucaristia do que como sacrifício) e na postura de diálogo com o mundo, abandonando sua arrogante concepção de “sociedade perfeita”. Mas esta é a visão de um sociólogo da religião; talvez um teólogo tenha uma visão mais acurada dos avanços.

IHU On-Line – Como as Igrejas da América Latina e do Caribe receberam os frutos do Concílio ecumênico? De que maneira esse processo reflete a teologia latino-americana que temos hoje? Como é o “novo modo de ser Igreja”? 

Pedro Ribeiro de Oliveira – Classifico os frutos do Concílio Ecumênico em duas grandes categorias. A primeira é formada pelos documentos oficiais, que passam a ser a grande referência pastoral para a Igreja Católica romana. A segunda é a exemplaridade de gestos significativos como o abandono dos sinais de poder e riqueza, a prática da colegialidade episcopal, a valorização de organismos de participação e comunhão, e o “pacto das catacumbas” em favor da “Igreja dos pobres” desejada por João XXIII. Esses frutos – como qualquer fruto – têm sementes em seu interior. A Igreja de Nossa América não só saboreou os frutos do Concílio ecumênico como também lançou suas sementes ao solo para serem aqui cultivadas. Foi o que fez a assembleia episcopal de Medellín, em 1968. Eram tempos difíceis, marcados por ditaduras militares, violações de direitos humanos, resistência armada e, principalmente, o esmagamento dos direitos dos pobres. Nesse solo nasce um novo modo de ser Igreja – expressão usada pela CNBB em 1982 para designar as Comunidades Eclesiais de Base e que engloba, mais amplamente, as pastorais sociais e os organismos de comunhão a participação – bem como a teologia que lhe serve de fundamento e que se torna conhecida por sua proposta de libertação.

IHU On-Line – Podemos traçar algum paralelo entre a conjuntura eclesial de 50 anos atrás com a atual? 

Pedro Ribeiro de Oliveira – Há um paralelo, sim. Nos anos 1950-1960 disseminou-se na Igreja Católica o uso de pesquisas quantitativas no campo da chamada sociologia religiosa. Por meio de questionários e amostragens podia-se medir a distribuição de pessoas na missa dominical conforme idade, sexo, nível de escolaridade e residência rural ou urbana. Daí nasceu o conceito de desafeição religiosa para indicar o distanciamento afetivo e comportamental de certas categorias de fiéis. A hipótese era de que a Igreja se esvaziaria caso não fosse profundamente reformada sua estrutura paroquial. A convocação do Concílio está dentro daquele contexto, embora isso não fosse seu único ou principal motivo. Hoje aquele conceito caiu em desuso, mas a meu ver continua útil para descrever – pois não é um conceito explicativo – o afastamento de muitos católicos em relação aos rituais, crenças e normas da sua Igreja. Mas, ao contrário do que se deu há 50 anos, quando o episcopado mundial, em comunhão com o Papa, lançou as bases para uma profunda reforma da Igreja, hoje a tendência dominante vai no sentido contrário, de enrijecimento do catolicismo romano. É como se a alta hierarquia dissesse, a quem dela se desafeiçoa, que a Igreja Católica é assim e não se pode mudar mais nada.

IHU On-Line – Se foi o abalo institucional provocado pelo caráter ecumênico do concílio que permitiu seu diálogo com a modernidade, o que é necessário para que a Igreja hoje se abra mais ao diálogo com a contemporaneidade?

Pedro Ribeiro de Oliveira – A partir de uma análise institucional, vejo o cerne da questão na centralização do poder na Santa Sé Romana. Foi a sintonia fina entre o episcopado mundial e os papas João XXIII e seu sucessor Paulo VI que rompeu os muros do Vaticano, possibilitando sua abertura ao mundo moderno. Aqueles dois papas exerceram o primado acatando e sancionando as decisões dos “padres conciliares”, que então se tornaram decisões da Igreja Católica. Já seus dois últimos sucessores – pois João Paulo I não teve tempo bastante para governar – voltaram a centralizar as decisões em Roma, apoiados no Direito Canônico. Nesse contexto, seus interlocutores diretos não são bispos diocesanos com experiência cotidiana do mundo secular, mas dirigentes da Cúria Romana sem atividade pastoral inserida nas realidades vividas pelos leigos e leigas. Como esperar deles atitude de abertura e diálogo com a contemporaneidade? Em síntese: para abrir o diálogo com a contemporaneidade, é preciso que a estrutura curial da Igreja Católica romana seja substituída por uma estrutura colegiada e participativa. Um dia isso vai acontecer, com certeza. E aí, sim, poderemos saborear os frutos plantados pelo Concílio Ecumênico de 1962-1965.

Leia mais...

>> Pedro Ribeiro de Oliveira já concedeu outras entrevistas à IHU On-Line. Confira:

Estão empurrando para a Amazônia os problemas do resto do Brasil. Entrevista publicada no sítio do IHU em 26-07-2009 e disponível em http://bit.ly/wAeDKN 

Um governo refém de autoridades religiosas. Entrevista publicada na edição número 386 da IHU On-Line, de 19-03-2012, disponível em http://bit.ly/GBsiFv 

A desafeição religiosa de jovens e adolescentes. Entrevista publicada no sítio do IHU em 05-07-2012, disponível em http://bit.ly/NaDG0k 

 

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