Edição 404 | 05 Outubro 2012

É possível falar de Deus na sociedade contemporânea?

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Graziela Wolfart e Luis Carlos Dalla Rosa | Tradução de Moisés Sbardelotto

Na visão de Carlos Mendoza, é possível falar de Deus em meio aos escombros da modernidade tecnocientífica somente se estivermos situados no clamor do sofrimento do inocente

 

Para o doutor em Teologia e sacerdote dominicano nascido no México, Carlos Mendoza-Alvarez, “um modelo pós-moderno de Igreja ainda está no início, começa-se a ver os seus sinais, tais como uma autoridade compartilhada, um reconhecimento da diversidade de carismas e de funções, comunidades de equidade de gênero e de profundo cuidado com a mãe terra, celebrações sacramentais inculturadas, teologias contextuais que dão conta da experiência de salvação de cada cultura e época, para citar somente algumas das grandes matérias pendentes para uma reforma eclesial”. Ele fez esta e outras afirmações na entrevista que concedeu por e-mail para a IHU On-Line, onde também declarou que “o novo milênio do cristianismo tem diante de si enormes desafios, tais como recuperar a harmonia entre a razão em seus próprios limites e da fé como conhecimento silencioso do real, sem competir pela predominância de uma sobre a outra”. 

Carlos Mendoza-Alvarez se formou em Filosofia, pela Universidade Autônoma do México, e fez doutorado em Teologia, em Paris e Friburgo (Suíça). Em sua tese de doutorado procurou tecer um diálogo com o pensamento hermenêutico de Paul Ricoeur, a ética da alteridade de Emmanuel Levinas e a teoria mimética de René Girard. Dentre seus escritos, destaca-se o livro O Deus escondido da pós-modernidade: desejo, memória e imaginação escatológica. Ensaio de teologia fundamental pós-moderna (São Paulo: É Realizações, 2011). Mendoza irá participar do Congresso Continental de Teologia, no próximo dia 8 de outubro, das 14h30min às 16h30min, falando a partir do tema “Modernidade e pós-modernidade”. Acesse a programação completa em http://bit.ly/NMoI2N.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como o senhor compreende os paradigmas da modernidade e da pós-modernidade? Como se insere a caminhada da Igreja nessas perspectivas?

Carlos Mendoza – A modernidade tecnocientífica é uma versão da modernidade ilustrada que se fez projeto de civilização com a revolução industrial no século XIX. Ela pressupõe a emancipação do sujeito individual no contexto das sociedades democráticas liberais. A pós-modernidade é a última fase desse processo que anuncia, desde meados do século XX, o esgotamento de um modelo e a incipiente conformação de uma civilização diferente, com outras coordenadas cosmológicas, antropológicas e de representação da transcendência. A Igreja, como projeto de humanização baseado no conceito de pessoa humana criada à imagem das pessoas divinas, contribuiu e, ao mesmo tempo, tem sido afetada por esse processo cultural da modernidade, embora fosse melhor dizer que o cristianismo como cosmovisão é um dos principais elementos da emancipação moderna, assim como da atual preocupação pós-moderna pelas vítimas, por exemplo. A Igreja reformada foi mais sensível à inovação que trouxe consigo o sujeito moderno, e, com o tempo, a Igreja Católica também assumiu esse desafio de compreender a humanização como caminho necessário para a divinização, segundo o testemunho de Jesus de Nazaré e de seus discípulos, que transmitiram esse acontecimento originário que abriu caminho para a gestação do cristianismo. Mas é preciso esclarecer que nos dois milênios de cristianismo existiram muitos modelos de Igreja no que se refere ao seu sistema de doutrina, de moral, de ritos, de arte e de prática da compaixão com o próximo. Um modelo pós-moderno de Igreja ainda está no início, começa-se a ver os seus sinais, tais como uma autoridade compartilhada, um reconhecimento da diversidade de carismas e de funções, comunidades de equidade de gênero e de profundo cuidado com a mãe terra, celebrações sacramentais inculturadas, teologias contextuais que dão conta da experiência de salvação de cada cultura e época, para citar somente algumas das grandes matérias pendentes para uma reforma eclesial.

IHU On-Line – Enfocando o contexto da pós-modernidade, há uma efervescência do fenômeno religioso? Como o senhor analisa o eclodir da dimensão religiosa na pós-modernidade?

Carlos Mendoza – O fenômeno religioso é inerente à condição humana que busca um vínculo com a transcendência, embora não seja o único, pois a arte por si mesma ou a prática da justiça são outros modos de transcender, segundo uma rica variedade de tradições sapienciais da humanidade. A aldeia global de nossos dias está abrindo os nossos olhos para reconhecer essa diversidade religiosa, espiritual e sapiencial da humanidade, já conhecida há milênios, mas agora com um olhar simultâneo e com a consciência da legitimidade de todas elas. Um traço especialmente surpreendente, a meu ver, da experiência religiosa pós-moderna é a busca de uma espiritualidade desligada dos sistemas fechados de crença. O que certamente acarreta um risco de se perder nos pântanos da subjetividade. Mas, sobretudo, me parece uma grande oportunidade para voltar às fontes das grandes tradições sapienciais e espirituais da humanidade. Alguns falam de retorno da religião; outros, de regresso da espiritualidade. Eu prefiro dizer que se trata da humanidade altamente sensível à esperança: de um mundo melhor, de justiça para todos, de cuidado com a criação, de memória bendita das vítimas, de forte chamado aos verdugos para que deixem sua corrupção para trás e, por meio disso, esperança de vida eterna. Em uma palavra, hoje o mundo pós-moderno quer esperar ativamente por um mundo melhor.

IHU On-Line – Onde está Deus na realidade pós-moderna? O sujeito autônomo pós-moderno ainda necessita de Deus? 

Carlos Mendoza – Deus, como fonte do ser, como amor incondicional, sempre está aí. Não me refiro às imagens e representações conceituais e até religiosas que fazemos da divindade. Retomo do Mestre Eckhart  a distinção entre divindade e deidade para dizer que podem-se quebrar as imagens da divindade quando o ser humano ou alguma tradição religiosa se depara com o colapso de suas instituições e seguranças. Mas persiste a deidade como fundo sem fundo de todo o real: o ser superabundante da Sabedoria divina que mantém toda a criação com seu sopro vital. E não podemos esquecer que foi em meio dos escombros de uma catástrofe que os místicos e poetas de todas as tradições vivenciaram e captaram a presença amorosa que os habita e os impulsiona a anunciar e construir tempos novos.

IHU On-Line – Qual o conteúdo e o significado de Deus absconditus (Paris: Edition du Cerf, 2011), expressão que dá nome ao seu livro? 

Carlos Mendoza – Prefiro que os potenciais leitores (e leitoras) leiam o livro para responder a essa pergunta. É uma expressão de Isaías que foi retomado em diversos momentos do pensamento teológico e da mística tanto judaica como cristã. São Paulo, de alguma maneira, a evoca na ágora de Atenas, e depois o Pseudo-Dionísio  escreverá a partir dessa expressão o seu grande tratado sobre Os nomes divinos. De minha parte, quis retomar essa expressão pensada também por meus irmãos Tomás de Aquino  e Mestre Eckhart para falar da busca espiritual dos tempos modernos tardios que vivemos hoje, quando se derrubaram muitos ídolos como a ciência, o mercado e a religião, a fim de assinalar que, nesse colapso do sagrado violento, como René Girard  analisou tão magistralmente, se encontra a possibilidade de viver e de compreender a mensagem de Cristo anunciada por São Paulo: “Dar morte ao ódio no próprio corpo”. Então, revela-se a partir do não poder que é a cruz deste Deus escondido, como uma potência amorosa universal, que convoca a todos nós na alvorada matinal da Páscoa.

IHU On-Line – Na condição pós-moderna, como narrar ou falar de Deus a partir de uma perspectiva cristã? 

Carlos Mendoza – Penso que é possível falar de Deus em meio aos escombros da modernidade tecnocientífica somente se estivermos situados no clamor do sofrimento do inocente. Do lado das vítimas para clamar por justiça, sim, mas não somente. É preciso dar o último passo, que é postular um mundo alternativo a partir da superação do ressentimento, como propõe James Alison , na gratuidade que só se entende como lógica da doação em um amor assimétrico e, nesse sentido, não recíproco, difícil gratuidade sem dúvida. Assim o cristianismo recupera com nova força o seu caráter kenótico, como assinalou o grande Bonhoeffer  em meio a um campo de concentração, de rebaixamento e de despojo, à imagem do próprio Verbo de Deus, que se despojou de sua condição divina para dar vida ao mundo.

IHU On-Line – Como é possível o diálogo entre fé e razão na cultura contemporânea? Quais os pontos de inserção da fé na atual conjuntura cultural?

Carlos Mendoza – A razão moderna em sua versão liberal e positivista expulsou a fé da ágora pública, dos debates sociais e políticos, relegando-a à única esfera da subjetividade. Isso aconteceu, em parte, porque o cristianismo ocidental foi pretensioso em sua versão da verdade, da moral, e fracassou em seu anúncio de um mundo novo. O trauma de Auschwitz  serviu para que judeus e cristãos se perguntassem onde Deus está e como é possível esperar um futuro para todos, começando por aqueles que já foram aniquilados. O novo milênio do cristianismo tem diante de si enormes desafios, tais como recuperar a harmonia entre a razão em seus próprios limites e da fé como conhecimento silencioso do real, sem competir pela predominância de uma sobre a outra. Se a fé, ao menos nesse sentido cristão de rebaixamento, é contemplação da presença inefável da bondade divina que nos habita sem anular a nossa autonomia como pessoas e como sociedades, então me parece possível que as sociedades laicas deem espaço para as expressões religiosas que humanizem as pessoas e respeitem o cosmos.

IHU On-Line – Para o senhor o que significa pensar e fazer teologia a partir da realidade latino-americana, tendo em conta o tempo da pós-modernidade? 

Carlos Mendoza – Fazer teologia na América Latina não pode ser levado a cabo sem olhar para as demais culturas e tradições. Por isso é preciso manter vivo o sentido da fé em Cristo Jesus, mas abertos ao testemunho e às reflexões das demais sabedorias da humanidade. No nosso caso, as sabedorias dos povos originários, mas também das novas identidades que conquistaram palmo a palmo o seu lugar no espaço público pós-moderno. Refiro-me às minorias sexuais, às mulheres que são maioria, aos povos indígenas e afro-americanos, assim como aos migrantes criminalizados. Uma teologia do sujeito fraco da pós-modernidade, sim, mas altamente sensível à construção de sociedades inclusivas. Uma teologia da potência que nasce do Crucificado que vive, que faz de sua impotência uma fonte à dignidade e esperança para todos, revelando-nos, assim, o caminho da vida plena.

IHU On-Line – Olhando para o futuro, quais são os desafios e perspectivas que se abrem para a Igreja?

Carlos Mendoza – Essa questão será o objetivo de muitos colóquios e congressos que surgem por todas as partes do planeta para voltar às fontes da fé em Cristo Jesus como palavra de vida por motivo dos 50 anos do início do Concílio Vaticano II. É a vez para que cada discípula e cada discípulo de Jesus Cristo contribuam no sentido de gestar a comunhão com o projeto de vida de outros aos quais reconhece como irmãs e irmãos. Para isso, necessitará da experiência e do savoir faire dessa venerável tradição de 2000 anos de conversão ao Evangelho que muitos viveram. Trata-se, no fim das contas, de vislumbrar o mais aqui da vida dos justos da história que já estão dando sua vida pelos outros e, assim, vão abrindo os caminhos da paz com justiça, da dignidade restaurada, da beleza que redime, em suma, do Messias que chega. 

 

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