Edição 403 | 24 Setembro 2012

A semântica do sacrifício na obra da salvação

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Márcia Junges e Luís Carlos Dalla Rosa

Enigma de difícil compreensão, o sacrifício “é o coração da salvação oferecida pelas religiões arcaicas”, pontua Luís Carlos Susin. Há formas de violência que precisam da religião e da sacralização

“Na relação entre violência e religião, o que se dá em primeiro lugar não é que a religião gere violência, o que foi sublinhado por autores críticos da religião. Na raiz, trata-se da violência que necessita de religião, de sacralização. Ou seja, para enfrentar ou infligir violência e assim apaziguar o conflito dos desejos, é necessário apelar a algum princípio sagrado, à divindade, ainda que seja a pátria, a empresa ou um bem qualquer como um tênis de grife”. A reflexão é do teólogo Luís Carlos Susin, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, adiantando aspectos sobre o minicurso que irá ministrar em 04-10-2012, dentro da programação do XIII Simpósio Internacional IHU Igreja, cultura e sociedade. A semântica do Mistério da Igreja no contexto das novas gramáticas da civilização tecnocientífica. A programação completa pode ser conferida em http://bit.ly/rx2xsL. Além de alicerce, diz Susin, “o sacrifício de vítimas expiatórias é a resolução do conflito social gerado pelo contágio do ‘desejo mimético’ – desejo que é aprendido na imitação do desejo de outros”.

Luiz Carlos Susin
é frei capuchinho, mestre e doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. Leciona na PUCRS e na Escola Superior de Teologia e Espiritualidade Franciscana – Estef, em Porto Alegre. É também secretário-geral do Fórum Mundial de Teologia e Libertação. Dentre suas obras, destacamos Teologia para outro mundo possível (Paulinas, 2006).

Confira a entrevista.


IHU On-Line – Como podemos compreender a semântica do sacrifício na obra da salvação?

Luís Carlos Susin –
O sacrifício, como nos mostrou de forma contundente René Girard  desde o título de sua consagrada obra A violência e o sagrado, está no alicerce de toda religião, de toda cultura e de toda sociedade. O sacrifício é realmente um enigma difícil de ser decifrado porque seu aspecto de violência, de “horror religioso”, tomando emprestada uma expressão de Kierkegaard  em sua conclusão sobre a fé de Abraão ao dever imolar seu filho, é uma violência que se mantém escondida sob o manto da sacralidade. No entanto, além de alicerce, o sacrifício é o coração da salvação oferecida pelas religiões arcaicas: a entrega de um por muitos, o sangue do inocente e do justo pelo injusto, etc., trazem a paz e a salvação. O sacrifício de vítimas expiatórias é a resolução do conflito social gerado pelo contágio do “desejo mimético” – desejo que é aprendido na imitação do desejo de outros. Portanto, o desejo, com sua virulência mimética, ao mesmo tempo em que está no nascimento do humano, é o seu adoecimento e causa da violência da qual o ser humano necessita ser salvo. Por isso as religiões que são reformas ou mesmo revoluções em confronto com as religiões arcaicas buscam o remédio diretamente na fonte do desejo. O melhor exemplo é o budismo, nascido em reação à exuberância sacrificial do hinduísmo: o budismo aponta o desejo como fonte dos sofrimentos, e a renúncia do desejo como caminho de libertação de todo sofrimento. Já a reforma profética, na Bíblia, prega a misericórdia no lugar do sacrifício.


IHU On-Line – Como é o mecanismo da relação entre violência e religião que se traduz em sacrifício?

Luís Carlos Susin –
Na relação entre violência e religião, o que se dá em primeiro lugar não é que a religião gere violência, o que foi sublinhado por autores críticos da religião. Na raiz, trata-se da violência que necessita de religião, de sacralização. Ou seja, para enfrentar ou infligir violência e assim apaziguar o conflito dos desejos, é necessário apelar a algum princípio sagrado, à divindade, ainda que seja a pátria, a empresa ou um bem qualquer como um tênis de grife. Só um deus justifica que se corram riscos que podem derivar para a morte: expor-se à morte ou matar, mandar morrer ou mandar matar, isso precisa do sagrado, e não há lugar em que a causa sagrada seja invocada com mais fervor do que em campo de batalha. Mas é verdade que, em um segundo momento, depois de transferida para as mãos da divindade, a violência praticada de forma sacrificial é administrada em nome desta mesma divindade. Em uma comparação, enviamos o lixo atômico de nossa violência da terra para o céu, nos livramos dela aqui na terra, mas desde o céu – desde a religião, desde um deus – a violência é administrada em doses homeopáticas do céu para a terra, para que permaneçamos capazes de enfrentá-la. Assim, a violência toma o caminho “inverso”, é a violência da religião, que nós chamamos de sacrifícios necessários, satisfação de justiça, para a nossa salvação.


IHU On-Line – Em relação à dinâmica sacrificial, qual é a ótica do Evangelho?

Luís Carlos Susin –
As palavras e as atitudes de Jesus radicalizam a postura profética da misericórdia, inclusive transgredindo as leis mais sagradas para salvaguardar o direito de viver. No evangelho de João, capítulo 8, por exemplo, depois de dar nova oportunidade de vida à adúltera, Jesus confronta seus interlocutores religiosos que queriam sacrificá-la conforme a lei. Jesus discute com eles a descendência e herança de Abraão: o patriarca transgrediu a lei do holocausto do primogênito e “não matou” o filho. Observe que Jesus nem mais diz que “não ofereceu em holocausto”, mas diz cruamente, revelando o alicerce escondido: “não matou” – e atualiza para os que acham que devem cumprir a lei sagrada: “vocês, no entanto, querem matar-me”.

As narrativas evangélicas mostram também a formação do sacrifício de uma vítima expiatória com o próprio Jesus para restabelecer a ordem sagrada que Jesus ameaçou com sua liberdade profética. No entanto, elas não são narrativas heróicas, em que o sacrifício do herói, por si, tem valor salvador. Ao contrário das narrativas míticas que exaltam o sacrifício do herói, elas narram o que acontece nos bastidores, por trás do palco. Por exemplo, Herodes por trás da intriga entre sacerdotes e Pilatos, conseguindo sutilmente a unanimidade necessária para que o sacrifício seja feito em boa consciência. Em última análise, nem a vítima – Jesus – e nem Deus concordam com o sacrifício, pois Jesus morreu com um grito de inocente protestando socorro e Deus, de fato, não o deixou num mausoléu para culto e graça a partir de seu cadáver como convém a um herói. Os evangelhos rompem a lógica sacrifical das narrativas heróicas, e contam o que aconteceu na ótica da vítima, não na ótica de quem a sacrifica. Assim despotencializam o sacrifício e revela tanto a crueldade da violência como a misericórdia no perdão ao próprio assassino. É a misericórdia que salva.


IHU On-Line – Que pistas a semântica do sacrifício nos aponta para compreender os tempos atuais?

Luís Carlos Susin –
A lógica sacrificial tem uma resistência tremenda. Mesmo no cristianismo, ela se metamorfoseou em fogueiras e guerras justas. Mas numa sociedade secularizada as grandes tradições religiosas, inclusive o cristianismo, não conseguem administrar a violência e nem justificar os sacrifícios. A pátria que pedia sacrifícios também entrou em “crise sacrificial”, perdeu capacidade de motivar heroísmo e ordem. A semântica se encontra agora no âmbito do mercado, da economia, da cultura do consumismo que faz girar a roda do mercado. Está nas passarelas de beleza anoréxica, nas academias dos “sarados”, nos comerciais com sua sedução de consumo de bens que satisfaçam desejos construídos para que se vá ao shopping como quem vai a uma catedral e ofereça a sua moeda, o seu trabalho, o seu cartão de crédito, a homenagem ao carro do ano, etc. Mas como só alguns são guindados ao pódio do herói e dos deuses ao estilo Steve Jobs, da Apple, o que vemos, por exemplo, na comunidade europeia, é que os países mais periféricos, como a Grécia, a Irlanda, Portugal, podem até sonhar em ser Alemanha ou França, mas a conta é sacrificial: austeridade, poupança, em favor... dos bancos, morada sagrada dos deuses que oferecem benefícios contanto que se pague com os juros das próprias oferendas.


IHU On-Line – Em que aspectos Igreja, cultura e sociedade têm outra ideia de Deus, dado o contexto de mudança epocal em que vivemos?

Luís Carlos Susin –
Valendo-me novamente de Girard, digo que enquanto a modernidade tem uma raiz no “desocultamento” da violência sacrificial operada pela Escritura, nós ousamos hoje penetrar os porões da cultura e da psique humana, e assim os alicerces se tornaram perigosamente transparentes e fragilizados, de tal forma que o edifício da religião sacrificial, que justificou a sociedade desde a noite dos tempos humanos, agora se tornou mais difícil. Quase não há mais morada para os deuses sacrificiais e nem para as religiões que administram o sagrado de forma sacrificial. Estamos numa encruzilhada: administrar com cinismo a violência sem justificações sagradas ou encontrar o caminho de uma reeducação do desejo mimético onde tudo começa. Na Escritura, desde o Gênesis até o Novo Testamento há um “fio dourado” de desarticulação do sacrifício e do mimetismo, de tal forma que a salvação se dá por misericórdia e gratuidade. Com esta experiência de salvação emerge a face de Deus compassivo e atento à vítima, o Deus dos pequeninos e dos pobres, que é Deus de todos e a todos julga a partir dos pequeninos. A ética é da hospitalidade e da misericórdia, não mais de violência justa. Mas tal reviravolta permanece um caminho e um horizonte último que orienta o caminho da verdadeira humanidade.


IHU On-Line – Como a semântica do sacrifício implica a caminhada eclesial hoje?

Luís Carlos Susin –
A Igreja tem como vocação ser testemunha do evangelho. Ela deve expressar em suas linguagens a radical revolução de Jesus. Se, por um lado, ela se sobrecarregou historicamente de novas metamorfoses do sacrifício, ela pode sempre voltar às fontes puras do evangelho. Um exemplo disso está na sua sobrecarga constantiniana, em que a Igreja se fundiu com o poder político por séculos, e que, desde os inícios da modernidade, é uma aliança que vem sendo sacudida, embora permaneçam resíduos resistentes. Ao abrir o Concílio Vaticano II, em sua famosa alocução, João XXIII afirmou que a Igreja prefere agora utilizar mais a misericórdia do que a severidade. É uma postura “jesuânica”, de inclusão e de oportunidade para todos. Particularmente sensível é a liturgia, especialmente a Eucaristia: historicamente foi utilizada por leis eclesiásticas como lugar de mistério tremendo e de discriminação sacrificial. Embora não deva ser também um lugar de “vale tudo” e de confusão, é o lugar que deve dar oportunidade para a inclusão e a irmandade de toda a humanidade, lugar de hospitalidade e integração à família de Jesus, onde prostitutas e pecadores precedem no Reino.


IHU On-Line – Para além de uma Igreja e de uma sociedade de sacrifícios, o que significa viver a semântica do Mistério da Igreja no contexto das novas gramáticas da civilização tecnocientífica?

Luís Carlos Susin –
As ciências, em seu aspecto desconstrutivo de verdades pré-científicas, ajudaram a libertar do terror religioso. Nós progredimos muito na compreensão da Revelação através de novos instrumentos de interpretação bíblica, como também progredimos na compreensão da ética religiosa com o progresso das ciências humanas. A ligação das ciências com a tecnologia nos possibilitou um mundo de facilidades e confortos, de mais saúde e mais população. Mas enquanto cooptadas pela tecnologia, as ciências acabam se reduzindo a um instrumento que pode explorar e desumanizar. A tecnociência se torna um ambiente de conhecimento e de vida que pode empobrecer o ser humano. Por exemplo, a preferência por comunicação através de celular, Facebook, etc. onde nos relacionamos por perfis, tratados em fotoshop, etc. recalcando assim a face real de um face a face de carne e osso, com rugas que têm direito a serem aceitas e amadas nas relações humanas. Então a Igreja tem uma vocação profética diante da tecnologia: a de defender a pessoa e as comunidades humanas em sua real vulnerabilidade e em sua diversidade assim como cada pessoa e comunidade realmente é. Ela faz bem em começar sempre pelas vítimas reais e potenciais, ou seja, efetivar a “opção preferencial pelos pobres”.


Leia mais...

Luiz Carlos Susin
já concedeu outras entrevistas à IHU On-Line. Confira.

* Franz Rosenzweig. Um pensador para ajudar o Ocidente a se curar de sua esquizofrenia. Edição 386 da revista IHU On-Line, de 19-03-2012

* A evolução como elemento central do espiritismo. Publicada na IHU On-Line número 349, de 01-11-2010

* Uma Igreja tradicionalista nunca será criativa. Publicada na IHU On-Line número 320, de 21-12-2009

* A mudança de eixo da humanidade. O III Fórum Mundial Teologia e Libertação. Publicada em 28-1-2009

* Teologia da Libertação após Aparecida volta ao fundamento? Publicada em 8-6-2008

* Segundo Fórum Mundial de Teologia e Libertação. Entrevista publicada em 9-2-2007, disponível em

* Jon Sobrino e a Notificação do Vaticano. Depoimento de Luiz Carlos Susin, publicado em 15-03-2007

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