Edição 403 | 24 Setembro 2012

A compatibilidade da fé à luz da lógica da rede

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Márcia Junges e Luís Carlos Dalla Rosa / Tradução: Anete Amorim Pezzini

Autor do conceito de ciberteologia, o teólogo italiano Antonio Spadaro menciona que o cristão imerso nas redes sociais é “chamado a uma autenticidade de vida muito desafiadora”. Internet e Igreja são realidades “sempre destinadas a encontrarem-se”

“É chegado o momento de considerar o que chamo de ciberteologia, entendida como a inteligência da fé no tempo da rede, isto é, a reflexão sobre a conceptibilidade da fé à luz da lógica da rede”. A reflexão é de Antonio Spadaro, padre jesuíta, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Segundo ele, a ciberteologia “não é reflexão sociológica sobre a religiosidade na internet, mas é fruto da fé que emite de si própria um impulso cognitivo em um momento em que a lógica da rede marca a maneira de pensar, conhecer, comunicar, viver”. E complementa: “As redes sociais não dão expressão a um conjunto de indivíduos, mas a um conjunto de relações entre indivíduos. O conceito-chave não é mais a ‘presença’ na internet, mas a ‘conexão’. A sociedade digital não é mais concebível e compreensível somente por intermédio dos conteúdos. Não há, em princípio, as coisas, mas as ‘pessoas’. Há acima de tudo as relações: a troca dos conteúdos que ocorre nos relacionamentos entre as pessoas. A base relacional do conhecimento na internet é radical. Dela derivam desafios e perspectivas interessantes para a Igreja”.

Antonio Spadaro completou sua formação nos Estados Unidos. É formado em Filosofia pela Universidade de Messina e realizou seu doutorado em Teologia na Pontifícia Universidade Gregoriana. Por cinco anos foi responsável pelas atividades culturais dos jesuítas na Itália. Começou a escrever na Civiltà Cattolica em 1994. Publicou quinze livros, organizou outros oito. Promoveu várias iniciativas culturais ligadas ao mundo da literatura e da rede. Leciona na Pontifícia Universidade Gregoriana – PUG de Roma, Itália. Em 1998 fundou BombaCarta, um projeto cultural na internet em que recebe iniciativas de escrita criativa com produções de vídeos e leituras de autores de várias cidades italianas.

Ele acaba de publicar em português, pela Editora Paulinas, o livro Ciberteologia. Pensar o Cristianismo nos tempos da rede

Em 03-10-2012, às 14h, Spadaro falará na conferência A semântica do Mistério de Igreja no contexto da(s) gramática(s) da midiatização, dentro da programação do XIII Simpósio Internacional IHU Igreja, cultura e sociedade. A semântica do Mistério da Igreja no contexto das novas gramáticas da civilização tecnocientífica. A programação completa pode ser conferida em http://bit.ly/rx2xsL. 

Em 03 e 04-10-2012 será o palestrante da 1ª Jornada de Mídias e Religiões: “A comunicação e a fé em sociedades em midiatização”, cuja programação pode ser conferida em http://bit.ly/M0eDh6. 

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como a gramática da cobertura da mídia influencia a semântica do Mistério da Igreja nos nossos dias?

Antonio Spadaro – “Os modernos meios de comunicação vieram há muito tempo fazer parte dos instrumentos ordinários por meio dos quais a comunidade eclesiástica exprime-se, entrando em contato com o próprio território e instaurando, muitas vezes, formas de diálogo em um raio mais vasto de abrangência”. Quem o afirmou foi Bento XVI, na sua Mensagem para o Dia Mundial das Comunicações de 2010. As palavras do pontífice adquirem um significado especial, se considerarmos como a internet tornou-se importante para o desenvolvimento das relações entre os que pertencem àquela que hoje vem comumente definida como “geração Y”, isto é, dos jovens nascidos entre os anos 1980 e 2000.

Hoje, as relações entre as pessoas estão no centro do sistema e da troca comunicativa, pelo menos tanto quanto estão os conteúdos. As redes sociais não dão expressão a um conjunto de indivíduos, mas a um conjunto de relações entre indivíduos. O conceito-chave não é mais a presença na internet, mas a conexão. A sociedade digital não é mais concebível e compreensível somente por intermédio dos conteúdos. Não há, em princípio, as coisas, mas as “pessoas”. Acima de tudo há as relações: a troca dos conteúdos que ocorre nos relacionamentos entre as pessoas. A base relacional do conhecimento na internet é radical. Dela derivam desafios e perspectivas interessantes para a Igreja.

IHU On-Line – Quais são as peculiaridades dessa cobertura da mídia para a fé cristã? Quais são os desafios e as oportunidades que se abrem a partir desse cenário?

Antonio Spadaro – A Lumen gentium no n. 6, falando da íntima natureza da Igreja, afirma que essa se dá a conhecer por intermédio de “várias imagens”. No passado, além das bíblicas, eram usadas também imagens de outros gêneros para “significar” a Igreja; por exemplo, as metáforas navais e de navegações. Algumas imagens podem também ser modelos eclesiológicos. Por modelo entende-se uma imagem empregada de modo refletido e crítico para aprofundar a compreensão da realidade. A questão, nesse ponto, é se hoje não se coloca a necessidade de lidar-se seriamente com a figura da “rede” e com o que dela deriva em nível de compreensão eclesiológica. É possível pensar a internet como uma metáfora para compreender a Igreja, naturalmente sem acreditar que ela possa ser abrangente? Certamente o relacionamento da rede funciona, se as conexões (links) estiverem sempre ativas: se um nó ou uma conexão fosse interrompido, a informação não passaria e a relação seria impossível. A reticularidade da videira, em cujos ramos nodosos a própria seiva flui, não está muito distante da imagem da internet em suma. A partir disso, entende-se que a rede pode ser uma imagem da Igreja, na medida em que se a entende como um corpo que é vivo, se todas suas relações internas são vitais. Então a universalidade da Igreja e a missão de anunciar “a todas as gentes” reforçariam a percepção de que a rede possa ser de algum modo um modelo de valor eclesiológico.

No entanto, algumas questões permanecem em aberto. A principal funda-se sobre o fato de que a rede pode ser compreendida como um tipo de grande texto autorreferencial e, portanto, meramente horizontal: não há raiz nem ramos e, consequentemente, constitui um modelo de estrutura fechada em si mesma. A Igreja, ao contrário, não é uma rede de relações imanentes, mas sempre tem um princípio e um fundamento externo.

IHU On-Line – Em que aspectos esse “diálogo” pode contribuir para novas formas de pensar a fé? A partir do ponto de vista da fé cristã, quais são os desafios da cultura da internet? Como o senhor analisa o impacto da internet na maneira de pensar e viver a fé?

Antonio Spadaro – A Igreja está naturalmente presente ali onde o homem desenvolve a sua capacidade de conhecimento e de relacionamento. Sabemos bem, de fato, como a Igreja sempre teve no anúncio de uma mensagem e nas relações de comunhão dois pilares fundantes do seu ser. Eis por que a internet e a Igreja são duas realidades sempre destinadas a se encontrar. Portanto, o desafio não deve ser o de como usar bem a rede, como frequentemente se acredita, mas sim como viver bem no tempo da rede. Nesse sentido, a rede não é um novo meio de evangelização, mas sim um contexto no qual a fé é chamada a exprimir-se; isso não por uma simples vontade de presença, mas por uma conaturalidade do cristianismo com a vida dos homens.

Deve-se estar consciente de que a cultura do ciberespaço coloca objetivamente, além de qualquer outra consideração, novos desafios à nossa capacidade de formular e escutar uma linguagem simbólica pública que fala sobre a possibilidade e sobre os sinais de transcendência em nossa vida.

IHU On-Line – O que é ciberteologia?

Antonio Spadaro – É chegado o momento de considerar o que eu chamo de ciberteologia, entendida como a inteligência da fé no tempo da rede, isto é, a reflexão sobre a conceptibilidade da fé à luz da lógica da rede. Refiro-me à reflexão que nasce a partir da pergunta sobre o modo em que a lógica da internet, com suas metáforas poderosas que trabalham sobre o imaginário, sobre a inteligência, possa modelar a escuta e a leitura da Bíblia, o modo de compreender a Igreja e a comunhão eclesial, o Apocalipse, a liturgia, os sacramentos: os temas clássicos da teologia sistemática. A reflexão é importante, porque resulta fácil constatar como sempre mais a internet contribui para construir a identidade religiosa das pessoas. E se isso for verdade, em geral, sê-lo-á sempre mais para os assim chamados nativos digitais. A reflexão ciberteológica é sempre um conhecimento refletido a partir da experiência da fé. Ela permanece teologia no sentido que responde à fórmula fides quaerens intellectum. Assim, a ciberteologia não é reflexão sociológica sobre a religiosidade na internet, e é fruto da fé que emite de si própria um impulso cognitivo em um momento em que a lógica da rede marca a maneira de pensar, conhecer, comunicar, viver.

IHU On-Line – Como essa teologia nos ajuda a compreender este novo “espaço de experiência” que é a internet? De que modo a fé ajuda a entender a internet?

Antonio Spadaro – A comunicação ajuda a Igreja a entender a si própria. O cardeal Avery Dulles, no início dos anos 1970, desejava descobrir de que modo os estilos mutantes de comunicação influenciavam o conhecimento da natureza, da mensagem, da missão da Igreja. Portanto a comunicação não é somente uma área separada de aprofundamento. Ela ajuda a Igreja a compreender o que ela própria é, o seu mistério. A comunicação humana tem um valor teológico.

Por outro lado, a Igreja ajuda a internet a entender a si mesma. A Igreja pode ajudar a internet a ser o que é no projeto de Deus. Essa é a maior contribuição da Igreja para a rede, pelo menos de seu próprio ponto de vista: ajudar o homem a compreender que, na experiência que vive, há a ação de Deus que move a humanidade em direção a uma realização. A internet, com a sua capacidade de ser, pelo menos potencialmente, um espaço de comunhão, faz parte da jornada do homem em direção a essa realização em Cristo. Ocorre, portanto, ter um olhar espiritual sobre a rede, vendo que Cristo chama a humanidade a ser sempre mais unida e conectada.

No contexto hodierno, por exemplo, parece-me fundamental valorizar ao máximo a categoria e a prática do testemunho. O cristão que vive imerso nas redes sociais é chamado a uma autenticidade de vida muito desafiadora: ela afeta diretamente o valor das suas habilidades de comunicação. Na verdade, o papa escreveu na sua Mensagem para o Dia Mundial das Comunicações de 2011: “quando as pessoas trocam informações entre si, já estão compartilhando a si próprias, as suas visões de mundo, as suas esperanças e os seus ideais”. A tecnologia da informação, contribuindo para criar uma rede de conexão, portanto, parece ligar mais firmemente a amizade e o conhecimento, incentivando os homens a tornarem-se “testemunhas” daquilo sobre o que baseiam a própria existência. O testemunho está se tornando a verdadeira forma privilegiada de comunicação no ambiente digital. Direi mais definitivamente: hoje, comunicar significa testemunhar. Assim, a rede ajuda a entender melhor o que significa o testemunho e, por outro lado, o testemunho, como o cristianismo tem entendido, ajuda a entender o que a comunicação deveria plenamente ser.

IHU On-Line – O que o Vatileaks demonstra sobre a sociedade mediatizada em que vivemos? Qual é a legitimidade deste mecanismo na divulgação de informações do Vaticano e causar, inclusive, escândalos? 

Antonio Spadaro – Eu vejo substancialmente dois problemas para enfrentar com calma e rigor. O primeiro, quem escreve sobre o Vaticano, hoje, muitas vezes não tem a formação específica que seria necessária. Não se pode pretender que um vaticanista tenha uma licenciatura em Teologia ou em Direito Canônico ou em História da Igreja, e, todavia, não basta ter uma formação generalista para levar a cabo esta delicada tarefa. Não digo que somente precisa conhecer a linguagem correta (às vezes se ligam coisas inverossímeis tais como “o fulano foi ordenado cardeal” ou “todo o clero de Roma, homens e mulheres…” ou o título “monsenhor” dado a um religioso franciscano ou salesiano ou jesuíta). Digo, especialmente, que são necessárias categorias para ler uma realidade complexa como a Santa Sé que não pode ser reduzida à dimensão de um estado, mesmo que fosse o Estado da Cidade do Vaticano. Então, a formação dos vaticanistas é um assunto sobre o qual a própria Igreja deve refletir, talvez oferecendo algumas indicações a mais, algum curso de formação, talvez. É preciso, acredito, um esforço complementar.

O segundo problema, a comunicação atual em alguns casos, aqueles que podem provocar mais barulho, vive de nítidas oposições, de brancos e negros, de tensões dialéticas. A comunicação vaticana, ao contrário, vive (afortunadamente) de outra lógica, mais ligada à mediação, de alto perfil, tendente a não dar confirmações ou desmentidos feitos de qualquer modo, a ter até um perfil que faça compreender os valores, principalmente os espirituais.

O desconforto comunicativo, por isso, em minha opinião, é inevitável. E penso que tenha também um grande valor nos dias de hoje. A informação vaticana do restante, a meu ver, vive não de notícias pontuais, mas de grandes reportagens, e requer longa observação e, muitas vezes, paciência. Acredito também que se deva contar com a realidade. Muito foi feito e muito se está fazendo e mais rápido, para envolver a comunicação vaticana no tecido vivo da comunicação digital, para evitar que ela pareça engessada. Nesse trabalho, o escritório de imprensa do Vaticano me parece certo: a direção é a correta. Muito resta ainda por fazer. É necessário, de alguma forma, fazer face às emergências, fazer declarações, dar desmentidos, explicar os fatos, é verdade, mas não se deve desmantelar uma tradição de comunicação que sempre foi de alto perfil.

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