Edição 403 | 24 Setembro 2012

Mulheres teólogas: líderes em quase todas as áreas atuais da teologia

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Graziela Wolfart, Luís Carlos Dalla Rosa e Márcia Junges | Tradução de Beatriz Affonso Neves

Mary Ann Hinsdale destaca que infelizmente, para muitas feministas, a possibilidade de qualquer diálogo verdadeiro com a Igreja parece ter se desgastado durante os papados de João Paulo II e Bento XVI

“A retórica do Vaticano II refletiu uma postura humilde, em vez de uma postura triunfalista usando palavras como ‘peregrino, servo e (ainda mais marcante) ‘pecador’ para caracterizar a Igreja”. A reflexão é da professora Mary Ann Hinsdale, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Para ela, “embora o Vaticano tenha se tornado tecnologicamente conhecedor, tendo seu próprio website (atualmente, até o Papa está no Facebook!), ainda há um longo caminho a percorrer para atingir a verdadeira catolicidade numa igreja globalizada”. E conclui, ao abordar o tema do feminismo na Igreja hoje: “ainda se espera que as mulheres (especialmente as religiosas) permaneçam em silêncio na Igreja”.

Mary Ann Hinsdale é professora no Departamento de Teologia do Boston College, Estados Unidos. Ph.D em Teologia Sistemática pela Universidade do Colégio de São Miguel (Toronto), é irmã da Congregação das Servas do Coração Imaculado de Maria (Monroe, MI). Suas especialidades são eclesiologia, cristologia, antropologia teológica e teologias feministas. Seus atuais temas de pesquisa são o uso da pesquisa-ação participativa na reflexão teológica sobre a experiência católica dos Estados Unidos e Maria Madalena como um recurso para a liderança eclesial das mulheres.

Ela não participará do XIII Simpósio Internacional IHU Igreja, cultura e sociedade. A semântica do Mistério da Igreja no contexto das novas gramáticas da civilização tecnocientífica, no próximo dia 4 de outubro, das 19h30min às 22h, conforme o programado, pois foi acometida de um mal cardiovascular que fez com que ela fosse obrigada, por ordem médica, a cancelar a sua intensa agenda.

Acesse a programação completa em http://bit.ly/rx2xsL.

Confira a entrevista.


IHU On-Line – Considerando o contexto cultural contemporâneo, como podemos narrar a semântica do mistério da Igreja de um ponto de vista feminino?

Mary Ann Hinsdale –
Neste ano, os católicos do mundo inteiro comemoram o 50º aniversário do Concílio Vaticano II. Muitas expressões semânticas que agora parecem óbvias quando se fala em Igreja não faziam parte da média do vocabulário católico há meio século. Por exemplo, Lumen gentium (“A Constituição Dogmática da Igreja”) e Gaudium et spes (“A Constituição Pastoral da Igreja no Mundo Moderno”) usaram termos horizontais tais como “povo de Deus, carisma, diálogo, irmãos e irmãs e colegialidade”. Termos de reciprocidade como “corresponsabilidade e parceria”, assim como palavras de interioridade como “consciência, alegrias e esperanças, aflições e ansiedades” são encontradas nos documentos do Concílio. A retórica do Vaticano II refletiu uma postura humilde, em vez de uma postura triunfalista usando palavras como “peregrino, servo e (ainda mais marcante) pecador” para caracterizar a Igreja.

O historiador jesuíta americano, John O’Malley , salientou adequadamente esta alteração marcante no estilo do discurso e afirmou que ele representa uma divergência drástica do arcabouço jurídico e dos grandes esquemas conceituais do escolasticismo que dominaram a teologia católica desde o século XIII . As severas condenações e anátemas dos concílios anteriores foram substituídas pela prescrição do “remédio da misericórdia” do Papa João XXIII .

De uma perspectiva feminista, embora a palavra feminista nunca tenha feito parte do vocabulário do Concílio, o estilo retórico do Vaticano II tem fortes ressonâncias com os valores feministas em processos participativos como “inclusividade, agência e colaborativo” (em oposição a hierárquico). Infelizmente, para muitas feministas, a possibilidade de qualquer diálogo verdadeiro parece ter se desgastado durante os papados de João Paulo II e Bento XVI. Embora o Vaticano tenha se familiarizado tecnologicamente, tendo seu próprio website (atualmente, até o Papa está no Facebook!), ainda há um longo caminho a percorrer para atingir a verdadeira catolicidade numa igreja globalizada.


IHU On-Line – Em termos gerais, qual foi a importância dos movimentos feministas iniciados no século XX, para as mudanças sociais e políticas entre homens e mulheres? Quais são as implicações destes movimentos para a teologia e, mais especificamente, para a Igreja?

Mary Ann Hinsdale –
Em muitos países, a primeira onda de feminismo começou no século XIX, quando as mulheres lutaram pelo direito ao voto. A segunda onda de feminismo criticou as estruturas patriarcais na família, na sociedade e na Igreja. Estas críticas criaram fricção (talvez esta seja uma palavra excessivamente leve!) já que a Igreja canonizara uma estrutura organizacional particular (hierarquia) como “divinamente ordenada”, esquecendo que os “códigos domésticos” consagrados em Timóteo 1 e 2 eram a estrutura social reinante na sociedade greco-romana. Não se prestou a devida atenção ao fato sociológico de que a Igreja sempre se adaptou às estruturas sociais ao longo da história. A Cúria Romana, por exemplo, segue o modelo do Senado da Roma Antiga. Mesmo que possamos ver essas adaptações como originadas sob a influência do Espírito Santo, isso não significa que elas sejam imutáveis. Como um movimento que busca reconhecer as mulheres como plenamente humanas e a tratá-las como tendo consciências e direitos, o feminismo é amplamente mal interpretado por um excessivo número de bispos que continuam a caricaturar todas essas aspirações como feminismo “radical”.


IHU On-Line – Qual é o impacto da reflexão teológica feminista na teologia tradicional patriarcal?

Mary Ann Hinsdale –
Em geral, a reflexão teológica feminista causou impacto maior nas mulheres e em alguns homens. O aumento do número de mulheres teólogas é notável – e não somente nos países do Atlântico norte, mas também em todas as culturas (inclusive na América do Sul, África e Ásia). Infelizmente, a reflexão teológica feminista ainda é percebida por muitos como “por, para e sobre” mulheres. Enquanto os teólogos (e bispos) se autodescreverem como fazendo reflexão teológica feminista, e enquanto estas perspectivas estiverem excluídas do currículo dos seminários, não vejo muito impacto na teologia patriarcal tradicional. No entanto, a história da teologia pós-Vaticano II mostra que toda teologia contextual (isto é, teologia da libertação da América Latina) encontrou resistência similar. O que precisa ser reconhecido é que todas as teologias são “contextuais” – inclusive a teologia patriarcal.


IHU On-Line – Como você vê o papel de liderança da mulher na vida e na missão real da Igreja? Em que áreas podemos ver evidências do protagonismo da mulher?

Mary Ann Hinsdale –
Acho que até a maioria dos bispos sabe que, se as mulheres que trabalham na Igreja entrassem em greve amanhã, a Igreja Católica – na verdade, a maioria das igrejas – pararia. Grande parte do trabalho de evangelização é feito por mulheres: mães, catequistas, trabalhadoras das paróquias, assistentes pastorais, professoras, assistentes sociais, etc. Eu considero seus papéis como de liderança, mas em termos de tomada de decisão a história é outra. A participação na tomada de decisões na Igreja (nos níveis mais altos das conferências episcopais, sínodos e concílios ecumênicos) está reservada aos ordenados. Mas uma área em que a liderança e a influência feminina cresceu, particularmente da perspectiva laica, se não da hierarquia, foi no domínio da teologia. Embora somente haja representação simbólica de teólogas mulheres no Officialdom (ou seja, nos dicastérios romanos ou na Comissão Teológica Internacional – que nunca incluiriam uma mulher considerada remotamente suspeita em termos teológicos), as mulheres teólogas tornaram-se líderes em quase todas as áreas atuais da teologia. Elas lideram associações profissionais de teologia, estudos bíblicos e direito canônico e produzem volumes consideráveis de estudos. Certamente, não quero subestimar a influência das mulheres que não ocupam posições particularmente importantes. Quantas pessoas lembram hoje que no Vaticano II houve 23 mulheres que assistiram ao Concílio como auditoras?  Elas não podiam votar nem falar na sala do Concílio, mas foram uma presença palpável e tiveram influência considerável, inclusive participando de comissões conciliares em muitos casos . Claramente, isso ainda é insatisfatório e permanece como uma “lembrança perigosa” que precisa ser recuperada.

IHU On-Line – Quais foram os principais avanços na relação da Igreja com as mulheres desde o Concílio Vaticano II? E o que permanece marginalizado e escondido nos discursos e práticas da Igreja que impede um avanço mais significativo?

Mary Ann Hinsdale –
O que permanece escondido nos discursos e nas práticas da Igreja é o reconhecimento dos papéis importantes que as mulheres têm agora na evangelização e como teólogas e verdadeiras ministras da Igreja. Durante um tempo, pelo menos nos Estados Unidos, mulheres teólogas eram bem-vindas como professoras em seminários que preparavam os homens para o sacerdócio. E também havia mulheres que queriam estudar teologia. Mesmo se elas não pudessem ser ordenadas, elas poderiam estudar lado a lado com aqueles com quem acabariam ministrando na Igreja. Agora tudo isso está praticamente acabado. Existem poucos lugares simbólicos para as mulheres no ensino teológico. Os candidatos ao sacerdócio são novamente “segregados” dos estudantes laicos para que a sua vocação singular não seja minimizada. No seminário onde eu ensino, uma queixa frequente é a de que os estudantes laicos (a maioria deles com experiência em ministério paroquial) “fazem perguntas demais sobre suas experiências de vida e isso causa perturbação em relação à ‘verdadeira teologia’”.


IHU On-Line – Como você vê a postura da hierarquia da Igreja em relação à reflexão teológica feminista e a liderança das mulheres?

Mary Ann Hinsdale –
Novamente, refiro-me às caricaturas da reflexão teológica feminista feitas por alguns porta-vozes oficiais da Igreja – sendo a mais recente a “Avaliação doutrinária”  realizada pelos Estados Unidos que usou, novamente, o termo “feminismo radical”. Ainda se espera que as mulheres (especialmente as religiosas) permaneçam em silêncio na Igreja. E, além disso, logicamente há a questão “daquele que não pode ser nomeado” (isso só fará sentido para alguém que tenha lido os livros ou assistido aos filmes de Harry Potter). Vejo isso apenas como mais um exemplo de quanto a hierarquia da Igreja se tornou fora do alcance para um número crescente de mulheres jovens, com alto nível de educação, que participam de nossas conferências universitárias, do mundo dos negócios, da tecnologia e do governo. Mas a ideia de que as mulheres devem ter voz não se limita a esta classe particular. Muitas mulheres pobres e analfabetas são igualmente capazes de reconhecer a injustiça institucional, esteja ela no lar, na sociedade ou na Igreja – principalmente porque elas suportam o seu impacto de maneira bastante literal.


IHU On-Line – Olhando para o futuro, que aspectos você veria como essenciais para um avanço nas relações entre homens e mulheres pertencentes à mesma Igreja?

Mary Ann Hinsdale –
Um aspecto central é o respeito mútuo e a disposição para escutar a experiência de pessoas de fé que se esforçam para seguir Jesus num mundo complexo em mudança constante. É essencial que cada discípulo (o que inclui cada cristão, do que acabou de ser batizado, até o papa), independentemente do carisma individual de cada um, esteja ciente e agradeça porque todos nós compartilhamos uma responsabilidade mútua pela Igreja. No que diz respeito a isso, é fundamental retomar o ensinamento do Vaticano II de que todos os batizados compartilham do ofício de Cristo, como sacerdote, profeta e rei (LG, 10), que todos são chamados à santidade (LG, 40) e que o Concílio fundamentou a igreja inteira, e não somente o clero, nas missões de Cristo e do Espírito Santo.

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