Edição 402 | 10 Setembro 2012

A professora imaginária e o descentramento da humanidade

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

Márcia Junges

Gerson Egas Severo examina o legado de Morin para compreendermos a miopia dos saberes que não dialogam, o delírio arrogante de tudo conhecermos, e a falta de sentido num ensino compartimentalizado, sem ligações

“A reposição dos seres humanos no centro de um universo que contempla o mais macro e o mais micro não nos deve, entretanto, deixar enganar: não se trata do homem como medida de todas as coisas de Protágoras e nem do antropocentrismo de corte renascentista-iluminista (...). Trata-se do contrário: o saber-se parte de um Universo, de um planeta, de um passado compartilhado, de uma sociedade presente e futura, implica precisamente um ‘descentramento’ dos seres humanos, um passo para o lado, um deslocamento – um cosmocentrismo? – que promoverá uma visão de si mesmo, bem como do mundo e das coisas do mundo, em uma perspectiva mais adequada porque relativizada”. A ponderação é do historiador Gerson Egas Severo, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Com o auxílio de uma “professora imaginária”, ele percorre aspectos da obra de Edgar Morin com provocações que valem a pena serem ouvidas: “O desafio é o de cultivar vida intelectual realmente orgânica nesta fogueira das vaidades”, disse referindo-se à universidade. “Convencer este povo de que alimentar o Lattes com artigos-sempre-o-mesmo e comunicações requentadas, assim como atender às exigências da Capes, por exemplo, com a sujeição humilhante com que o fazemos não é exatamente, digamos, o objetivo final da existência”.

Gerson Egas Severo é graduado, mestre e doutor em História pela Unisinos com a tese Clio convocada – História, memória e interpretação do Brasil (Erechim: Edifapes, 2008). Leciona na Universidade Federal da Fronteira Sul – UFFS, campus Erechim e é autor de O que somos e o que esperávamos ser: Estado, economia e discurso presidencial na América Latina – O pós-1929 e o pós-1989 (São Leopoldo: Editora Unisinos, 2003) e da edição 171 dos Cadernos IHU ideias, intitulada Sub specie aeternitatis – O uso do conceito de tempo como estratégia pedagógica de religação dos saberes, disponível em http://bit.ly/GD6sTY. 

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual é a importância da religação dos saberes para um outro modo de vida e compreensão da humanidade?

Gerson Egas Severo – Lembremos a última cena do filme de Laurent Cantet “Entre os muros da escola”, aquela em que é apresentada (quem sabe) sua própria tese: estamos no último dia de aula, o professor Marin despede-se dos alunos, deseja-lhes boas férias e prepara-se para deixar a sala de aula mais ou menos satisfeito, quando uma aluna, que havia ficado à margem dos demais e da própria narrativa durante todo o filme, põe-se à sua frente e um pouco diz, um pouco tensa, hesitante e tímida: “Professor, eu não aprendi nada...”. Marin, que havia passado a última aula inteira indagando aos alunos o que haviam aprendido durante o ano, pergunta se ela está se referindo às aulas de francês, e a menina (negra, certamente imigrante ou filha de imigrantes) responde, seu olhar e gestos abrangendo a escola inteira, talvez o mundo: “Não... Isso tudo... Eu não compreendo...”. Há uma breve troca de olhares e uma despedida constrangida. A impressão com que ficamos é a de que o professor não a entende, e de que a única aluna que havia afirmado não ter aprendido nada é, na verdade, a única que, afinal, havia aprendido. Ainda que intuitivamente, meio míope como o prisioneiro de que nos fala Platão ao deixar a caverna, ela havia ido além das expectativas de qualquer professor, de qualquer pensador da educação, de qualquer sistema escolar: encontrava-se em condições de interpelar os próprios fundamentos da civilização, da paideia grega – ou de outra paragem antiga qualquer, talvez africana – a Rousseau e Paulo Freire . Agora, ponha-se o leitor no lugar da professora de seu filho em uma escola de São Leopoldo. Ela “congela o tempo”, olha para a barulhenta turma de quinta-série ou de terceiro ano do Ensino Médio à sua frente, e pensa: não está dando certo, está? Não, não está. Se ela estiver ali “de verdade” e for intelectualmente honesta, fará um esforço mental para mover para o lado aqueles poucos casos de sucesso, e de absoluta exceção, que muitas vezes são usados para disfarçar o desastre, a catástrofe, o naufrágio que é a educação brasileira (só a brasileira?) e concluirá que está lutando uma luta perdida. Se for professora de história, verá a si mesma, então, como uma espécie de encarnação pedagógica dos 300 de Esparta, que sabiam que iriam morrer ao final da batalha contra os persas, mas que estavam eticamente impedidos de não lutá-la – pensamento que lhe dará algum ânimo (pelo menos até o próximo contracheque). E se, por fim, nossa professora hipotética for leitora de Edgar Morin, saberá que aquela aluna anônima do professor Marin teria de ter terminado seu ano escolar sabendo, no mínimo, que a razão última (e primeira...), a própria razão de ser da educação é a de ensinar a condição humana, dar sentido (pré-existente? atribuído? decida-se...) à condição humana. Para usar a expressão de Douglas Adams, dar sentido(s) ao Universo, à vida e a tudo o mais... 

Saberes fragmentados

Nesse momento, a professora terá começado a (re) ligar escola e vida, comunidade escolar e humanidade, e a si mesma a Freire, Rousseau e Sócrates . Reconhecida legitimamente sua inscrição nessa linhagem, poderá eventualmente, com Morin, desejar iniciar sua pequena revolução a partir de sua própria experiência (Lévi-Strauss : sou eu o lugar onde as coisas acontecem) e no lugar em que ela se encontra (a pedagogia do lugar), propondo (difícil...) a necessidade inadiável, na escola e em sua organização curricular, de um redimensionamento estrutural, radicalizado, da discussão acerca da inter, multi e transdisciplinaridade tal como tradicionalmente formulada, quer dizer: enfrentar o desafio (difícil, difícil...) de “religar os saberes” em torno de um núcleo mínimo comum que – precisamente – (re) ligue indissociavelmente os seres humanos ao Universo que habitam e de que são parte (poeira das estrelas...), à Terra em suas dimensões geológica, geográfica e biológica (dimensão esta em que estão inscritos desde uma perspectiva evolutiva), à história que constitui sua experiência no mundo e a narração/explicação dessa experiência (e aqui a inscrição se dá na ordem do tempo), e, enfim, ao mundo do trabalho e da cidadania – em uma palavra, o mundo dos outros. Afinal, ela terá aprendido com Morin que o retalhamento das disciplinas escolares impossibilita que os estudantes assimilem “o que é tecido junto”, isto é, o complexo, e que é preciso justamente vencer a inadequação crescentemente problemática entre saberes fragmentados em disciplinas, de um lado, e esse mundo a que se deve dar sentido, de outro.

IHU On-Line – Em que aspectos a reposição dos seres humanos no centro de um universo que contempla o mais macro e o mais micro propõe uma nova forma de relação com a existência como um todo?

Gerson Egas Severo – Nossa professora imaginária da escola básica já terá notado que é aí que o bicho multidimensional da ideia da religação dos saberes começa a pegar. Descobrirá em Morin que os seres humanos possuem uma dupla natureza, biológica e cultural – aspectos que se relacionam entre si em uma dinâmica complexíssima, cada um tendo a “mão” do jogo a cada momento histórico dado (dependendo muitas vezes do modismo interpretativo de plantão) –, e devem interrogar o mundo, situar-se no mundo e dar sentido (s) ao mundo sabendo-se parte desse mesmo mundo (uma parte quase desprezivelmente pequena, aliás), mas parte mesmo, sabendo-se, portanto, filhos marginais do Cosmos, como diz Morin (a vida na Terra surgiu marginalmente no Universo e os seres humanos surgiram marginalmente na história da vida). As partículas elementares que constituem tudo o que há no Cosmos, ao menos em sua parte conhecida (toda a matéria e toda a energia, as quais são intercambiáveis, como ensinou Einstein em sua célebre equação), são as mesmas que nos constituem. Nossa professora franze a testa, pensativa. Seríamos nós a possibilidade mesma de o Universo compreender a si mesmo? Lembra as aulas de filosofia: essa formulação não terá cheiros hegelianos? E, por outro lado: isso não é uma coisa meio religiosa, não? Simpática à ideia (não se trata, afinal, de religar os saberes?), será com alguma decepção que descobrirá não ser possível – salvo melhor juízo, e um melhor juízo sempre vem – encontrar na obra de Edgar Morin reverberações espirituais, não necessariamente religiosas, derivadas desse complexo de ideias, ao contrário do que ocorre, por exemplo (e permanecendo no mesmo diapasão “religador), nas de Carl Sagan, Marcelo Gleiser e do próprio Einstein (ainda que, para o caso de Einstein, necessitemos talvez da mediação de um Max Jammer). De qualquer modo, com Morin, ela veria que das ciências da natureza passaríamos às ciências da vida e às humanidades, e de volta. 

A reposição dos seres humanos no centro de um universo que contempla o mais macro e o mais micro não nos deve, entretanto, deixar enganar: não se trata do homem como medida de todas as coisas de Protágoras e nem do antropocentrismo de corte renascentista-iluminista (em seu elogio à ciência, Marcelo Gleiser fala do homem como medidor de todas as coisas...). Trata-se, mesmo, do contrário: o saber-se parte de um Universo, de um planeta, de um passado compartilhado, de uma sociedade presente e futura, implica precisamente um “descentramento” dos seres humanos, um passo para o lado, um deslocamento – um cosmocentrismo? – que promoverá uma visão de si mesmo, bem como do mundo e das coisas do mundo, em uma perspectiva mais adequada porque relativizada. 

Reaparecimento?

Desde sua leitura de Morin, nossa professora passa a conceber suas aulas em função do ensinar-aprender essas diversas e necessariamente articuladas pertenças, procedimento ao qual subjaz a ideia-força de que àquelas instâncias não apenas todos pertencemos como também fundamentalmente pertencemos juntos: trata-se, portanto, do... reaparecimento? da própria ideia (moderna, sólida, iluminista em termos de seu paradigma por assim dizer “de base”) de humanidade. A educação – estando os saberes religados ou em situação de religação in progress – vista e entendida como os seres humanos fazendo-se a si mesmos (alguém ainda lembra de Gordon Childe?) no que e com o que têm de, precisamente, humanos.

IHU On-Line – O que é o conceito de terra pátria de Morin? Esse é um contraponto ao sonho alucinado de conquista do Universo e dominação da natureza formulado por Bacon, Descartes, Buffon e Marx? Por quê?

Gerson Egas Severo – Prossigamos com o esboço do desenho do que se passa na cabeça de nossa professora leitora de Edgar Morin. A relação de seu autor favorito com as heranças do Renascimento e do Iluminismo é certamente complexa. Ele aceita a ideia de que a noção de humanismo oriunda daquelas raízes da modernidade é, hoje, problemática – para dizer o mínimo –, uma vez que implicava aceitar-se a infalibilidade da razão e da ciência, as quais nos conduziriam, em pista azeitada, sempre para a frente e para cima. Compreende também, no entanto, que é preciso encontrar um caminho do meio entre o discurso dos que entendem a ciência como algo essencialmente positivo, devendo seus aspectos negativos ser entendidos como provisórios e residuais (a ciência vista como uma fada benfazeja, nas palavras de Attico Chassot), e o dos que veem a ciência como algo de todo negativo: uma fonte de poder, sujeição e opressão das massas “ignorantes” (a ciência tida como um ogro maligno, ainda nas palavras de Chassot). Com Morin, nossa professora sabe que precisamos da ciência – mas precisamos, também, “de uma atitude crítica e até mesmo autocrítica no interior da ciência” (A minha esquerda, p. 1330). Uma ciência que esteja em função de um projeto (aos leitores mais jovens, lembro que um dia existiu esta palavra: projeto). Ela apanha seu volume todo sublinhado (não gosta de fazer apontamentos diretamente nos livros) de Terra-Pátria e lê, na página 177, que “precisamos aprender a ser-aí (Dasein), no planeta. Aprender a ser é aprender a viver, a partilhar, a comunicar, a comungar; é isso que se aprendia nas e pelas culturas fechadas. Precisamos doravante aprender a ser, viver, partilhar, comunicar e comungar enquanto humanos do planeta Terra. Não mais apenas a ser de uma cultura, mas a ser terrestres. (...) Um planeta por pátria? Sim, tal é nosso enraizamento no cosmos”. Que tal? Agora, convenhamos: Bacon, Descartes, Buffon e Marx – ah!, fundamentalmente Marx – foram homens de seu tempo, não é mesmo? Então, contraponto sim: mas um contraponto rigorosamente histórico.

IHU On-Line – Sob quais aspectos se aproximam as ideias de Morin e as oito grandes humilhações formuladas por Carl Sagan? O que são essas oito grandes humilhações? 

Gerson Egas Severo – Em uma espécie de ideia alternativa à de Freud ao elaborar os célebres três cortes narcísicos (Copérnico, Darwin e a própria psicanálise) pelos quais teria passado a humanidade, Carl Sagan, em Pálido ponto azul (p. 52 a 58), pensando exatamente na necessidade de os seres humanos encontrarem uma justa posição, uma posição “desprovincianizada”, relativizada, no esquema mais geral das coisas, e assim andarem melhor, respirarem mais fundo e enxergarem mais longe, elabora o que chama “as oito grandes humilhações”, humilhações impostas pela ciência ao deitar por terra os seguintes e sucessivos enganos (note-se que a primeira e a quinta correspondem ao primeiro e ao segundo “cortes” de Freud): “(1) a Terra está no centro do Universo; (2) mesmo que a Terra não esteja no centro do Universo, o Sol está. O Sol é o nosso Sol. Assim, a Terra está aproximadamente no centro do Universo; (3) bem, então, ao menos, nossa Galáxia está no centro do Universo; (4) bem, mesmo que existam centenas de bilhões de galáxias, com centenas de bilhões de estrelas cada, nenhuma outra estrela tem planetas; (5) bem, nossa posição no espaço não demonstra nosso papel especial, mas nossa posição no tempo, sim: estamos no Universo desde o Início. Recebemos responsabilidades especiais do Criador; (6) bem, se não temos nada especial quanto a nossa posição ou nossa época, vejamos nosso movimento (aqui, Sagan destaca a Teoria da Relatividade Especial, de Albert Einstein: trata-se da ideia de que não há, no Universo, um sistema de referências privilegiado, e mesmo um tempo presente universal); (7 – talvez a mais polêmica “humilhação”) bem, ainda que sejamos intimamente relacionados com alguns dos outros animais, somos diferentes – em grau e em espécie – no que realmente importa: raciocínio, autoconsciência, manufatura de ferramentas, ética, altruísmo, religião, linguagem, nobreza de caráter; (8) Ok, talvez não sejamos grande coisa, talvez tenhamos um parentesco humilhante com os macacos, mas pelo menos somos o que de melhor existe. À parte Deus e os Anjos, somos os únicos seres inteligentes no Universo”.

É interessante incluir, nessa perspectiva, o princípio temporal copernicano apresentado por Adams e Laughlin (Uma biografia do Universo, p. 31): “Uma vez que o Universo atual é muito conveniente para a vida, tal como a conhecemos – temos estrelas para fornecer energia e planetas em que viver –, temos uma tendência natural a pensar na época atual como sendo privilegiada de algum modo. Resistindo a essa tendência, adotamos a ideia de um princípio temporal copernicano, que diz, muito simplesmente, que a época cosmológica atual não tem um lugar especial no tempo. Em outras palavras, coisas interessantes continuarão a acontecer à medida que o Universo evoluir e se alterar”.

Filhos marginais do Cosmos

Não será essa, pensa nossa professora, a ideia de “filhos marginais do Cosmos”, de Morin, levada às últimas consequências? Ela volta a seu exemplar de Terra-Pátria, e o abre na página 176. Morin e Sagan fazem sentido. “Dominar a natureza? O homem é ainda incapaz de controlar sua própria natureza, cuja loucura o impele a dominar a natureza perdendo o domínio de si mesmo. Dominar o mundo? Mas ele é apenas um micróbio no gigantesco e enigmático cosmos. Dominar a vida? Mas mesmo se pudesse um dia fabricar uma bactéria, seria como copista que reproduz uma organização que jamais foi capaz de imaginar”. Além de tudo isso, reflete nossa professora ao lembrar de um artigo lido alhures, com as pesquisas atuais em cosmologia, astronomia e astrofísica a respeito da matéria e da energia escuras, tem-se dito que somente cerca de 5% do Universo é composto pelas partículas elementares que conhecemos – quarks, elétrons etc. Quer dizer: até as “peças de Lego” de que somos feitos são marginais na evolução cósmica... Agora: dotados de intelecção e memória, são precisamente esses filhos marginais do Cosmos a única espécie viva (por enquanto e até prova em contrário!), apesar do lembrete de Sagan na oitava “humilhação”, capaz de pôr tudo isso em perspectiva, organizar todo esse conhecimento, conferir-lhe sentido e ainda projetar o futuro, saindo lisos da rede de crises que é a marca do tempo que nos coube viver. Do caos ao cosmos (como escreveu Mário Quintana, “deixa rugir o caos atônito”). Saberemos continuar a fazê-lo? Afinal, convém lembrar que conhecimento, hoje mais do que nunca, é igual a poder. E, como observou o espetacular Homem-Aranha, poder e responsabilidade têm de ser entendidos como as duas faces de uma única e mesmíssima moeda.

IHU On-Line – Por que Morin afirma que é imprescindível que sejam religadas as culturas humanística e científica?

Gerson Egas Severo – Essa é a religação-mãe, não é? Aquela de que falou C. P. Snow em sua clássica comunicação – e posterior ensaio – de 1959, “As duas culturas”. Trata-se de uma expressão da necessidade (para Morin hoje absolutamente incontornável) de se religar as “culturas” científica e humanística, esses dois continentes que um dia formaram uma única massa de terra, uma por assim dizer pangea cultural, e que hoje se encontram não apenas separados mas em uma situação de afastamento progressivo e acelerado. Para fazer um exercício semelhante ao que fez Snow, vá até o Programa de Pós-Graduação em Letras de sua universidade e peça aos docentes que conceituem a segunda lei da termodinâmica. Eles não o poderão fazer, é claro (nem conceituar, nem coisa nenhuma), e – é lícito pensar – alguns não o farão com um certo orgulho. No entanto, você estaria perguntando algo que é o equivalente científico perfeito de indagar se já leram Machado de Assis... E não adianta dizer que a experiência contrária também seria verdadeira (ir até o Programa de Pós-Graduação em Ciências da Terra, e tal, sei lá), porque não é bem assim: há uma assimetria (pequena, é verdade, mas há) na burrice cruzada. “Triste, triste”, pensa nossa professora imaginária.

IHU On-Line – O que Morin quer dizer com epistemologia da ingenuidade? E com mentalidade hiperdisciplinar?

Gerson Egas Severo – A simpática professora conjectural que estamos acompanhando, disposta a arrostar o desafio da religação dos saberes, além de mil e uma dificuldades – mil e uma mesmo, não é modo de dizer –, deverá resistir à hegemonia daquilo que Edgar Morin chama “mentalidade hiperdisciplinar”, a mentalidade exagerada do especialista, ou seja, a mentalidade de proprietário que proíbe (e pune!) toda e qualquer incursão estrangeira em seu território de saber. E, como se não bastasse, ela deve também vencer eventuais constrangimentos internos que a levariam, talvez, a explorar com cuidado excessivo as possibilidades do olhar extradisciplinar – o oposto exato da mentalidade hiperdisciplinar – e, no limite, a evitar, envergonhada, “ocupações de terra” e migrações interdisciplinares. Ela, porém, não desiste da empreitada. Morin a surpreende ao propugnar (não sem uma boa dose de saudável ironia) o que denominaríamos epistemologia da ingenuidade, ou ainda do amadorismo: a ideia de frequentemente, na história da ciência, acontecer de “um olhar ingênuo de amador, alheio à disciplina, e mesmo a qualquer disciplina, resolver um problema cuja solução era invisível dentro da disciplina. “O olhar ingênuo – que não conhece, é óbvio, os obstáculos que a teoria existente levanta contra a elaboração de uma nova visão – pode, em geral erradamente, mas às vezes com acerto, permitir-se essa visão”. Os exemplos dados são Darwin e Wegener, e um apoio considerável é buscado em Proust e Labeyrie. Legal, hein? Dê uma olhada nas páginas 106 e 107 de A cabeça bem feita.

IHU On-Line – Por que o tempo é o tema religador dos saberes por excelência?

Gerson Egas Severo – Essa foi uma ideiazinha que me ocorreu quando, a partir do já longínquo ano de 2004, no ensino médio, perdi a paciência e decidi formular, em minhas aulas de História e Filosofia, uma espécie de “religação dos saberes aplicada”. Percebi que o tempo é um assunto que, com o perdão da palavra pedagogicamente desgastada, “atravessa” todas as disciplinas da grade curricular tradicional. A pergunta “O que é o tempo?” poderia ter possíveis respostas a partir da Filosofia, da História, da Sociologia, da Literatura, da Psicologia, da Biologia, da Física – tanto a clássica, newtoniana, como a moderna, relativística e quântica –, da Química, da História das Religiões, e ser representada inclusive nas aulas de Artes. Tive a experiência de ver um aluno tentar desenhar a “ideia de tempo” de Platão... Inicialmente, tentei articular um grupo de professores em torno dessa “desobediência civil” – até mesmo politicamente, para não desobedecer sozinho à supervisão da escola –, mas não deu certo. Então, não tive alternativa: explodi o programa das disciplinas de História e Filosofia e procurei trabalhar a partir de novas bases epistemológicas (as da complexidade, envolvidas na religação dos saberes), pedagógicas (teoria da aprendizagem significativa, mapas conceituais – obrigado, Baldissera –, e tal), e também em uma nova perspectiva, como se vê, em termos de conteúdo.

IHU On-Line – Em que aspectos o conceito de tempo foi discutido como estratégia pedagógica da religação dos saberes em sua experiência docente?

Gerson Egas Severo – Relatei parte substancial dessa experiência em um artigo chamado Sub Specie Aeternitatis: O uso do conceito de tempo como estratégia pedagógica de religação dos saberes. Inspirado em um livro admirável dos físicos Peter Coveney e Roger Highfield, intitulado A flecha do tempo, dividi o assunto tempo em três dicotomias organizadoras: o tempo é imaginário ou real? Circular, cíclico, ou linear? Absoluto ou relativo? Desse modo, pude convocar muitíssimos temas para a brincadeira (a maioria deles pouco ou mesmo nunca trabalhada na escola básica): cosmogonia babilônica e cultura antiga, mitologia grega, a cosmologia dos pré-socráticos, Platão e Aristóteles, Índia e hinduísmo, Buda e o budismo, China e Japão, cultura maia, os livros Gênesis e Apocalipse, Santo Agostinho e o célebre capítulo sétimo de sua obra Confissões, Nietzsche, a revolução científica do século XVII, Copérnico, Kepler, Galileu, Newton, Adam Smith e os primeiros formulares do liberalismo, Darwin, Marx e a crítica ao capitalismo, Einstein, Charles Chaplin e sua esteira taylorista, a teoria do big bang, cada um deles deflagradores de ramificações virtualmente infinitas – todas amarradas pelo “tempo”. Até Paul Virilio apareceu por lá, com suas ideias de aceleração do tempo social... Foi assim, mas imagino que pode ser de outros modos, e não necessariamente, é claro, desde o conceito de tempo.

IHU On-Line – Qual é o grande desafio de se estudar Morin e aplicar suas ideias no meio acadêmico, notadamente carente de atitude transdisciplinar?

Gerson Egas Severo – O desafio é o de cultivar vida intelectual realmente orgânica nesta fogueira das vaidades (uma coisa interessante na vida dos clichês é que alguns deles, por vezes, permanecem classicamente válidos, no sentido de Italo Calvino), neste circo, neste teatro sem trama que é a Universidade – e então avaliar livremente Edgar Morin e sua obra, assim como qualquer outro livro, autor ou ideia. Convencer este povo de que alimentar o Lattes com artigos-sempre-o-mesmo e comunicações requentadas, assim como atender às exigências da Capes, por exemplo, com a sujeição humilhante com que o fazemos não é exatamente, digamos, o objetivo final da existência. Não é possível que entreguemos nossa dignidade intelectual assim tão facilmente: um dia poderemos precisar dela, quem sabe? Nossa professora hipotética lembra, neste instante, de uma passagem cristalina de A grande história da evolução (p. 432) em que Richard Dawkins fala da larva da ascídia, que, “ao metamorfosear-se, desintegra seus tecidos larvais, recicla-os e os transforma no corpo adulto. Isso inclui desintegrar o gânglio da cabeça, útil enquanto a criatura nadava livremente no plâncton. (…) Mais de uma vez vi referências à ascídia larval que, chegada a hora, se fixa na vida sedentária e come seu próprio cérebro, como um professor universitário depois de ser efetivado no corpo docente”. Então, o que ocorre é que ela prefere ficar na escola básica, no front onde a verdadeira guerra está sendo travada, e ler em voz alta “Iniciando meus estudos”, o poema de Walt Whitman, todos os dias pela manhã, como uma prece: “Iniciando meus estudos o primeiro passo me agradou tanto / O mero fato da consciência, estas formas, o poder do movimento / O mínimo animal ou inseto, o sentidos, o olhar, o amor / O primeiro passo eu digo me maravilhou e me agradou tanto / Que quase não quis prosseguir, nem desejei ir mais longe / Só estar parado, admirando o tempo todo esse início, para cantá-lo em canções de êxtase”.

IHU On-Line – Gostaria de acrescentar algum aspecto não questionado?

Gerson Egas Severo – Antes da conclusão de seu romance O sangue do mundo, Catherine Clément põe nas mãos de Théo, seu personagem principal, o livro de Knud Rasmussen, o explorador dinamarquês criado como um inuíte, “Da Groenlândia ao Pacífico, dois anos de intimidade com tribos de esquimós desconhecidos”, em uma edição de 1929. Théo havia feito com sua tia Marthe uma viagem para conhecer as dores ecológicas do mundo, e agora se depara, no texto, com duas fórmulas mágicas enunciadas para preservar o equilíbrio da cultura inuíte e da natureza. Primeiro invoca-se Qeqertuanac, a criadora da invocação. Depois, pronuncia-se a primeira fórmula para atrair os animais de caça: “Animal marinho, entregue-se ao amanhecer. Animal da estepe, entregue-se ao amanhecer”. E, então, vem a segunda fórmula, aquela que Théo, médico, adotará como filosofia de vida, a fórmula para estancar hemorragias: “Aqui está o sangue da mãe do pequeno pardal. Estanque-o. Aqui está o sangue que correu de um pedaço de madeira. Estanque-o”. Bem, aí está: é preciso estancar o sangue do mundo, da Terra-Pátria. E há um sangue para estancar, também, no mundo da educação. Não será fortuita a semelhança, para além da metáfora, com o que diz Edgar Morin em A minha esquerda (p. 174): “Há um atraso da consciência ligado à enfermidade de nosso modo de conhecer”.

Leia mais...

>> Gerson Egas Severo é autor da edição 171 dos Cadernos IHU ideias, intitulado Sub specie aeternitatis – O uso do conceito de tempo como estratégia pedagógica de religação dos saberes.

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição