Edição 401 | 03 Setembro 2012

A mística e o enfrentamento radical da miséria humana

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Márcia Junges

Aspecto religioso e cultural constituinte das manifestações básicas do homem, a mística não é escapismo do mundo, mas é caminho contra a “compulsão à emissão”, cujo maior remédio é o silêncio meditativo, acentua Eduardo Guerreiro B. Losso TEIXEIRA, Faustino (Org.). Caminhos da mística. São Paulo: Paulinas, 2012.


Fenômeno existencial e experiencial humano mal compreendido ao longo da história do pensamento, a mística foi abordada extensamente, mas também sofreu recalque “tanto por um investimento institucional eclesiástico quanto acadêmico laico”, afirma Eduardo Guerreiro B. Losso na entrevista que concedeu por e-mail à IHU On-Line. Segundo ele, a mística foi um dos assuntos mais estudados no século XIX e, mais ainda, no século XX. “Insisto que a mística, seja tradicional, seja moderna, não é escapismo, nem do mundo, nem do vazio existencial do homem moderno, muito pelo contrário”, argumenta. E completa: “Os estados bem-aventurados dos místicos não existem sem enfrentamento radical da miséria humana. Como o mundo de hoje é escapista e ligeiro por definição, a prática e a teoria da mística são fatores essenciais para uma crítica da mediocridade atual e apontam saídas valiosas para ela, desde que o conteúdo tradicional mesmo não deixe de passar por um processo de secularização e transformação, o que implica aceitar, a meu ver, os aspectos emancipatórios da modernidade”.

Eduardo Guerreiro Brito Losso é mestre e doutor em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ e Universität Leipzig, Alemanha, orientado por Christoph Türcke, com a tese Teologia negativa e Theodor Adorno. A secularização da mística na arte moderna. Na Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ cursou pós-doutorado. Leciona na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro - UFRRJ e é um dos autores de O carnaval carioca de Mario de Andrade (Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2011). Conheça seu site http://www.eduardoguerreirolosso.com/.

Confira a entrevista.


IHU On-Line – Qual é o objetivo da obra Caminhos da mística? Há um fio condutor que unifica os diferentes artigos publicados?

Eduardo Guerreiro B. Losso –
O livro divulga os trabalhos realizados no Seminário de mística comparada, desde 2001, organizado por Faustino Teixeira, que congrega diversos pesquisadores do Brasil dedicados especialmente a esse assunto. Ele já é o terceiro publicado e comprova a consistência, insistência e avanço constante no tratamento de questões específicas e gerais do que podemos considerar um verdadeiro movimento de teóricos da mística no Brasil. O esforço de Faustino e a constância de todos os envolvidos no Seminário demonstra que a mística não deve ser tratada nem com o desprezo de quem não conhece sua profunda importância para o pensamento e cultura ocidental, bem como de todas as civilizações, nem relegada a um papel secundário como fator de erudição distante de nossa realidade atual. Nesse sentido, o livro é definitivo para apresentar o vigor da produção acadêmica brasileira no tratamento desse assunto “estranho e essencial”, como o definiu Michel de Certeau , bem como para enfrentar o desafio de pensar a importância das tradições místicas e a atualidade de seu impulso transformador e de sua experiência, individual e coletiva, na contemporaneidade, dentro de um debate internacional e nacional.
O fio condutor do livro me parece estar não só numa sequência que respeita a cronologia histórica de Plotino , mística oriental, mística medieval, até a filosofia e poesia moderna, mas também na reincidência de temas e questões comuns: ligação entre vida contemplativa e ativa, experiência de iluminação, etapas do caminho espiritual, riqueza simbólica da poética mística, estatuto do conceito de mística na discussão de uma modernidade e pós-modernidade crítica à metafísica.


IHU On-Line – Como esse livro se insere dentro do contexto brasileiro e internacional sobre o debate dessa temática?

Eduardo Guerreiro B. Losso –
O papel de obras que poderemos chamar de místicas ou movimentos e práticas que estão ligadas à temática é determinante na cultura ocidental e, mais ainda, em culturas orientais. A mística é um aspecto religioso e cultural constituinte das manifestações básicas do homem. Estudos de mística despontam já no século XIX e são surpreendentemente abundantes na antropologia, teologia, estudos literários, filosofia, sociologia e psicologia. O estudioso, hoje, tem muita dificuldade de traçar um panorama razóavel, ainda que Bernard Mcginn e Certeau tenham feito tentativas nesse sentido.
A questão da mística sempre teve um papel considerável ao longo do pensamento brasileiro. Alfredo Bosi  destacou o conteúdo místico jesuíta das obras poéticas de José de Anchieta  e seu contraste com os rituais tupi, onde, em suas diferentes formas de arroubo, observa-se o embate de diferentes culturas que entraram em interação e formaram o Brasil. Os poetas arcádicos fundaram uma Arcádia Ultramarina, como descobriu Antonio Candido , que assumiu a função de ligar oficialmente escritores brasileiros a uma instituição europeia e promover uma sociabilidade que, juntamente com o debate e troca de ideias, constituiu também espécie de sociedade esotérica com características peculiares. Este mesmo arcadismo produziu toda uma poética do deserto desolado, feito de “duras penhas”, que remetiam ao deserto bíblico dos profetas e dos ascetas.


Ânsia ao inefável e do impreciso

O romantismo, por outro lado, introduziu a mística propriamente tropical da floresta, e o simbolismo de Cruz e Souza e Alphonsus de Guimaraens deram grande expressão a uma ânsia ao inefável e do impreciso que é emblemática de uma ascese poética solitária. No século XX, mesmo ateus como Mario de Andrade  viam nas manifestações mais ardentes da cultura brasileira, como o carnaval, a ocasião de uma experiência extática. Mário diz que havia uma mulata no carnaval do Rio que “dançava com religião”, como disse numa carta a Drummond ; a “gente chamada baixa e ignorante” continha para ele uma sabedoria de conservar “espírito religioso da vida e fazem tudo sublimemente num ritual esclarecido de religião”, marcando aí um acento na experiência coletiva e não só pessoal. Isso sem contar com a mística muito explícita dos dois maiores escritores de nosso século, Clarice Lispector  e Guimarães Rosa , bem como poetas como Murilo Mendes  e Jorge de Lima , que aprofundaram as perspectivas da questão.
Embora vários pesquisadores reconheçam a importância da mística tanto no plano filosófico como na cultura brasileira, não apareceram abordagens diretas a esse respeito senão entre teólogos como Henrique de Lima Vaz  e Leonardo Boff . No ramo dos estudos literários, destaco o trabalho de Suzi Frankl Sperber, especificamente com Guimarães Rosa já no final dos anos 1960 e ao longo dos anos 1970, para depois se dedicar à correlação entre literatura e sagrado em geral. Vejo nessa primeira geração uma preocupação teórica geral, no caso dos teólogos, ou como pensamento de seu traço marcante em determinadas obras literárias, fundando um primeiro olhar para os estudos brasileiros.

Penso que Faustino Teixeira, Luiz Felipe Pondé  e Maria Clara Binguemer, fundadores do Seminário, são já de uma segunda geração, que trabalha com a mística de forma mais específica e abrangente ao mesmo tempo, dedicando-se a vários autores das místicas tradicionais – escritores, filósofos e teólogos – de diferentes épocas e culturas. Eu e Marcus Reis Pinheiro, bem como os vários outros ex-orientandos dos três, somos, nesse caso, da terceira geração e esticamos ainda mais o leque das manifestações, seja, no caso do Marcus, para a antiguidade grega, seja, no meu caso, para a mística na literatura moderna.


IHU On-Line – Em linhas gerais, quais são as grandes correntes de compreensão da mística desde Plotino até nossos dias, nas relações com a filosofia e a poesia moderna?

Eduardo Guerreiro B. Losso –
Para ser breve numa pergunta tão abrangente, eu diria que a mística grega, judaica, cristã, sufi, hindu e budista são integrantes das grandes civilizações. O artigo de Carlos Frederico Barboza  sobre Attar é um exemplo de mística árabe, mas o livro dá mais ênfase na cristã, por ser a mais próxima. O xamanismo das diferentes tradições indígenas é também importante e faz parte de um lado do Brasil originário e sempre mal compreendido.

Todas essas tradições tiveram uma profunda influência na filosofia e literatura modernas, mas discernir em termos históricos e textuais como isso se deu em cada manifestação é uma tarefa complexa e exige exames específicos. Por isso é necessário, de um lado, um trabalho de imersão num objeto estranho de outra época e cultura, respeitando sua singularidade; de outro, um trabalho de mística comparada, que pense as similaridades e diferenças entre as diferentes culturas e épocas, assim como entre as tradições e a cultura moderna e, finalmente, um trabalho de teorização que encontre a função dessas análises na reformulação da história da cultura e os conceitos das ciências humanas envolvidos. É nesse último ponto que o meu artigo e o de José Carlos Michelazzo incidem.


IHU On-Line – Qual é a importância da discussão acadêmica acerca da mística?

Eduardo Guerreiro B. Losso –
Imensa. Como é um fenômeno existencial e experiencial integrante do homem, mas foi, ao longo da história do pensamento, mal compreendido e, mesmo quando foi extensamente abordado (isso ocorreu não poucas vezes), foi também curiosamente recalcado tanto por um investimento institucional eclesiástico quanto acadêmico laico. Digo com toda segurança que a mística foi um dos assuntos mais estudados no século XIX e, mais ainda, no século XX. Dos anos 1920 aos 1940 houve um verdadeiro boom de interesse sobre ela e, depois, a produção não parou de crescer, com várias polêmicas, rupturas e transformações. Contudo, ela continuou sendo marginal, pois quem não a conhece tende a desprezá-la e alimentar um olhar preconceituoso que podemos chamar até de rústico, pois ele confunde o apelo mercadológico da mística com a consistência de suas tradições e a consistência das pesquisas sobre elas. Então, se há preconceito rude e grosseiro entre os acadêmicos ignorantes da mística, nós, pesquisadores dela, podemos responder a eles: nós somos mais modernos e avançados do que vocês.

Há, por isso mesmo, o outro lado do problema: o apelo da mística fomenta ilusão e subterfúgios e entra no círculo consumista do mercado de autoajuda. A importância da discussão acadêmica está, antes de tudo, em formular uma crítica desse uso abusivo das tradições, que em geral não se prestam a esse tipo de deformação. Depois, para fazer jus a sua grandeza, ela pensa com propriedade questões existenciais de vasto alcance: a negatividade do niilismo, embate com a morte, melancolia, sofrimento humano; e a positividade do êxtase, estado de graça, silêncio meditativo, tranquilidade da alma, leveza, alegria. Logo, não há aqui lugar para escapismo. Os estados bem-aventurados dos místicos não existem sem enfrentamento radical da miséria humana.

Como o mundo de hoje é escapista e ligeiro por definição, a prática e a teoria da mística são fatores essenciais para uma crítica da mediocridade atual e apontam saídas valiosas para ela, desde que o conteúdo tradicional mesmo não deixe de passar por um processo de secularização e transformação, o que implica aceitar, a meu ver, os aspectos emancipatórios da modernidade.


IHU On-Line – Como se pode perceber a dimensão mística na poesia moderna?

Eduardo Guerreiro B. Losso –
Baudelaire , primeiro poeta moderno e primeiro teórico da literatura moderna, define modernidade com a reunião “do transitório, efêmero e contingente” com o “eterno e imutável”. Por isso seus esforços estavam em descrever o choque da vida parisiense e contrastar com as “correspondências” da experiência com a natureza. Logo, no despontar da poesia moderna e de sua teorização, há o desafio de imprimir na vida urbana a chispa extática. Os exercícios poéticos na vida cosmopolita darão motivos para o poeta se sentir fracassado ou, por vezes, vitorioso nesse intento. Por sua vez, místicos como Eckhart  já diziam que na debilidade do instante está contida a eternidade divina. No meu artigo, procuro demonstrar que, quando Murilo Mendes escreve que “Cada instante assume um século”, que “Assisto crescerem os cabelos dos minutos / No instante da eternidade”, encontramos uma operação de secularização da mística tradicional na retomada do motivo da eternidade do instante. Esse motivo é tão intrínseco ao conceito de modernidade que eu termino com a constatação de que, para ser absolutamente moderno, é preciso ser minimamente místico.


IHU On-Line – De que forma crítica e mística podem estabelecer um diálogo em nosso tempo? Qual seria a importância desse encontro?

Eduardo Guerreiro B. Losso –
Segundo Adorno , o mundo existente (principalmente no Brasil, acrescento, que como sexta economia do mundo continua reproduzindo o sistema mais desigual) não leva a outra sensação senão a de desespero. Para ver algo de fora dele, é necessário o ponto de vista de redenção (Erlösung). A base da crítica, portanto, está numa negação do existente a partir de uma experiência de algo a mais que se situa fora dele. Para mim, essa experiência do “fora” não tem como não ser poética e, nesse caso, poesia e mística não se diferenciam. Somente a experiência mística proporciona um destaque do mundo no mundo, uma ruptura com a injustiça do sistema e a monotonia do cotidiano que serve de fundamento ontológico e prático para a esperança, que, por sua vez, move a atividade crítica.


IHU On-Line – Por que a mística é compreendida por alguns como “fuga do mundo”? Qual é o seu verdadeiro significado e o que ela tem a desvelar para as pessoas do nosso tempo?

Eduardo Guerreiro B. Losso –
A mística é compreendida assim porque grande parte (mas não todas) de suas manifestações tradicionais exigia a recusa da integração do homem na sociedade. No cristianismo, isso ocorreu com os ascetas do deserto e eles são um capítulo decisivo na história da mística ocidental. No livro, Faustino Teixeira e Maria Clara acentuam que pessoas como Teilhard de Chardin , Simone Weil  ou mesmo um trapista como Thomas Merton  foram místicos do século XX completamente envolvidos com questões políticas e sociais, incorporando a dinâmica das questões modernas em seu itinerário espiritual. Insisto que a mística, seja tradicional, seja moderna, não é escapismo, nem do mundo, nem do vazio existencial do homem moderno, muito pelo contrário.

Contudo, estamos num momento histórico em que há uma convocação ininterrupta de interação virtual, de modo que os jovens estão cada vez comunicando-se superficialmente, vendo TV, postando no Facebook, multiplicando diversas atividades ao mesmo tempo. Por isso é comum um déficit de atenção generalizado, como assinala o grande filósofo da contemporaneidade, com quem fiz várias entrevistas e organizei conferências em suas passagens pelo Brasil, Christoph Türcke . Acho que a mensagem da mística mais ascética de necessidade de recolhimento e silêncio contém, hoje, um potencial “redentor” inesperado. No livro Sociedade excitada (Campinas: Unicamp, 2010), Türcke afirma que, sem uma certa capacidade ascética, o sujeito hoje não será capaz de ter experiências próprias e não será mais do que joguete das novas tecnologias. Contra o vício de ser bombardeado por imagens e bombardear os outros, contra essa “compulsão à emissão”, não pode haver outro remédio senão o silêncio meditativo. Minha pesquisa tem sido de retomar o potencial emancipatório não só da mística, mas também das mensagens na garrafa esquecidas dos textos dos ascetas do deserto, que passaram a ter um significado precioso para nós hoje.
Portanto, do meu ponto de vista, mesmo a mística mais misantrópica tem muito a nos dizer. Artigos como o de Sibelius Cefas sobre Thomas Merton, Adriana Andrade sobre Eckhart, Marcus Reis sobre Plotino, Maria do Amaral sobre Mechthild von Magdeburg e de Ceci Mariani sobre Marguerite Porete  são, neste ponto, instrutivos.


IHU On-Line – Gostaria de acrescentar algum aspecto não questionado?

Eduardo Guerreiro B. Losso –
Acrescento que, nessa linha de uma mística da literatura e da cultura moderna, o trabalho de Erick Felinto  tem sido muito significativo, especialmente seu livro Silêncio de Deus, silêncio dos homens e seus trabalhos mais recentes sobre religião e cibercultura. Cito o grupo de estudos de mística Apophatiké, do Rio de Janeiro, cujos membros são Marcus Reis, Marcia Clara Binguemer, Edson Fernando de Almeida, Cleide Maria Canchumani, eu, entre outros. A interessante tese de Jimmy Sudário Cabral sobre o trágico em Dostoiévski  é fruto das discussões do grupo e digna de ser mencionada.

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