Edição 401 | 03 Setembro 2012

O melhor e o pior do Vaticano II no corpo e na vida de irmãs companheiras

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Nancy Cardoso Pereira

“Os ares de abertura do Vaticano II expressam novas relações de poder dentro da igreja romana, mas também na sociedade de um modo geral”, aponta Nancy Cardoso Pereira

Questionada pela IHU On-Line sobre a percepção feminina do Concílio Vaticano II e sobre o papel e lugar da mulher em seus documentos e decisões que ecoam até hoje na Igreja, a teóloga e filósofa Nancy Cardoso Pereira escreveu o artigo a seguir especialmente para a presente edição da revista. A seu ver, “para alguns o Vaticano II era um ponto final no processo de concessões e abertura da Igreja com o mundo moderno, para outros e, em especial, para muitas, era o ponto de partida para uma caminhada de reposicionamento da fé. Este conflito estava presente no Concílio e se manteve (e se mantém) atual”. Ela explica que foi justamente no corpo e na vida das irmãs, suas companheiras de luta, que viu o melhor do Concílio Vaticano II, mas também o “pior da manutenção dos esquemas de centralização e clericalização”. E explica: “o que movia minhas irmãs companheiras não era o Concílio como ‘coisa’ na história da Igreja, mas o espaço de conflito que o evento representou na vida de uma cristandade que se queria una & santa & inquestionável”.

Teóloga e filósofa, Nancy Cardoso Pereira é mestre e doutora em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo – Umesp, e pós-doutora em História Antiga pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. Ela é pastora da Igreja Metodista. É membro do Palestine Israel Ecumenical Forum – PIEF/World Council of Churches – WCC e secretária de Publicações do Centro de Estudos Bíblicos – Cebi, além de assessora de Formação da Comissão Pastoral da Terra – CPT. Nancy Cardoso Pereira foi escolhida em agosto como reitora da Universidade Bíblica Latino-Americana – UBL. A sua gestão vai de 2013 a 2017.

Confira o artigo. 

Não são as ideias que movem a história e não são as ideias que circularam no Concílio Vaticano II e nos documentos que fizeram história. A força que empurra a história é a história mesma. Assim seria possível fazer uma história das ideias do Vaticano II, mas então nos manteríamos no nível de idealização teológica e histórica que nos aprisionaria aos cenários pré-conciliares. É porque este momento da história teve importância nos processos de disputa de poder dentro do cristianismo que criou as condições objetivas e subjetivas da minha caminhada de fé pastoral popular e feminista no Brasil e na América Latina. Entretanto, estamos sempre ameaçadas, de modo muito concreto, de que o ponto de vista dos vencedores domine e suplante, de novo, a história das mulheres, dos subalternos e de suas lutas de libertação.

A Igreja pré-conciliar se caracterizava por:

1. centralização de toda a instituição católica; 

2. a clericalização que perpassava essa organização eclesiástica; 

3. o fortalecimento da Igreja Católica Romana, apresentada como uma instituição paralela aos estados modernos (Azzi) .

Estas dinâmicas tinham uma interferência muito direta na vida das mulheres, não só nas fiéis católico-romanas, mas também na manutenção do status de minoridade das mulheres na cultura cristã-ocidental. Os ares de abertura do Vaticano II expressam novas relações de poder dentro da Igreja Romana, mas também na sociedade de um modo geral. Nesse sentido, o Concílio Vaticano II não era um ponto de partida, mas um ponto de articulação e interação entre forças pastorais e políticas que ressoavam dentro da Igreja Romana.

De acordo com Dussel , as guerras mundiais na Europa e suas resoluções por dentro do capitalismo levaram à consolidação de novas hegemonias políticas que criaram as condições para que os cristãos, ou parte deles, assumissem decididamente o projeto burguês – e da pequena burguesia como efeito de afirmação da democracia liberal na Europa e na América.

Do mesmo modo, o impacto e a recepção do Concílio Vaticano II foi diferenciada não só pelos contextos geográficos, mas também e principalmente por conta das oscilações e disputas em torno desta nova hegemonia. 

Assim, para alguns o Vaticano II era um ponto final no processo de concessões e abertura da Igreja com o mundo moderno, para outros e, em especial, para muitas, era o ponto de partida para uma caminhada de reposicionamento da fé. Este conflito estava presente no Concílio e se manteve (e se mantém) atual.

Posicionamento do movimento feminista

Um dos pontos de questionamento a partir da década de 1950 e, em especial, na década de 1960 era o de posicionamento do movimento feminista. Tanto na dimensão teórica como nas práticas de luta por direitos, as mulheres já tinham acúmulo significativo que interferiam nestes novos arranjos de poder. Assim, o desejo de diálogo do Vaticano II repercutiu de modo diferenciado em segmentos diferenciados de mulheres. A ausência efetiva das mulheres no processo conciliar já é problemático e compromete muito das resoluções e encaminhamentos, porque não se colocam fora do esquema de centralização, clericalização e não superam a visão estatal do Vaticano. 

Sem dúvida alguma, as novas perspectivas teológicas do Concílio, de participação do laicato no culto e na ação social da Igreja, o reforço à inspiração bíblica na reflexão teológica e a abertura ao diálogo ecumênico criaram possibilidades de ação e participação mais significativas das mulheres, também no contexto latino-americano. Entretanto, somente as estruturas dentro do catolicismo romano que abriram mão do poder centralizado, clerical e estatal é que puderam radicalizar as possibilidades de encarnação: as experiências de igreja popular, as teologias da libertação, os novos modos de ser igreja, as reinvenções litúrgicas e ministeriais. Estas respostas (dimensionadas e projetadas na América Latina em Medellín e Puebla) criaram as condições de sobrevivência das teologias feministas e de práticas eclesiais inclusivas. 

O movimento feminista mudou muito nos últimos 50 anos e recolocou suas questões e suas práticas. E estas oscilações interpretativas e pastorais continuam perpassando as teologias feministas, que passaram da reivindicação de igualdade entre homens e mulheres para uma reivindicação da diferença entre elas e eles, e daí para a de uma política das identidades, com o acréscimo dos deslocamentos: “do marco macrossociológico, de cunho modernista, para os estudos locais; das análises transculturais do patriarcado à complexa e histórica interação de sexo, raça e classe; de noções de uma identidade feminina ou de interesses das mulheres à instabilidade da identidade feminina, com as ativas criações e recriações das mulheres a partir de reais necessidades” (Cecília Domezi).

As três dimensões (centralização, clericalização e interferência como Estado) continuam operando de modo hegemônico na Igreja Romana em particular e nas igrejas cristãs em geral dificultando novas conversas em torno da agenda sempre atualizada das feministas. Assim, a questão dos modelos interpretativos é fundamental nos processos de revisão da história.

Eu me considero uma teóloga que – mesmo protestante – recebeu um impacto importante do Concílio Vaticano II. Minha formação teológica nos anos 1980 participou tanto dos novos modos de ser esquerda como dos novos modos do feminismo e de ser Igreja. Minha prática profundamente ecumênica – de formação e ação – me colocou em contato com religiosas e leigas católicas impactadas pelo Vaticano II, mas principalmente impactadas pela realidade comum, pelas alternativas de transformação dos modos de poder em todos os níveis e relações. Com as irmãs inseridas e com as teólogas leigas e religiosas fiz minha caminhada e foi justamente no corpo e na vida dessas irmãs companheiras que vi o melhor do Concílio Vaticano II, mas também o pior da manutenção dos esquemas de centralização e clericalização. 

Mas o que movia minhas irmãs companheiras não era o Concílio como “coisa” na história da Igreja, mas o espaço de conflito que o evento representou na vida de uma cristandade que se queria una & santa & inquestionável.

O que movia e move as irmãs companheiras feministas é esta visualização do caráter provisório e histórico que o Vaticano II deixou ver na formatação pesada do catolicismo e do cristianismo ocidental. Esta “abertura” não foi concedida do alto, nem forjada pelo poder mesmo, mas revelou as pressões do mundo e suas gentes, dos pobres e das mulheres para cima de todas as estruturas de poder das elites e seus clubes exclusivos de empresários, banqueiros, bispos, maridos e patrões. 

Nas palavras de Cecília Domezi, as mulheres comeram embaixo da mesa do Vaticano II, assim com na história de Jesus e da sírio-fenícia (Marcos 7). As mulheres, nestes 50 anos, tomaram estas migalhas e convidaram Jesus para debaixo da mesa, invertendo a lógica de manutenção do poder clerical de alguns homens poderosos. É essa leitura que cria as condições para “virar a mesa” na afirmação da experiência do Deus dos pobres – mulheres e homens.

Estas práticas libertadoras de viver a fé continuam insistindo na colegialidade, na opção pelos pobres (mulheres e homens) e na superação no modelo de cristandade na afirmação do Estado laico. 

Leia mais...

>> Nancy Cardoso já concedeu outra entrevista à IHU On-Line. Confira:

Palestina e Israel: caminhos para uma paz justa. Entrevista publicada na edição número 400, de 27-08-2012.

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