Edição 401 | 03 Setembro 2012

“O princípio social central do Vaticano II é a justiça”

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Graziela Wolfart e Luis Carlos Dalla Rosa | Tradução de Luís Marcos Sander

Johan Verstraeten afirma que a partir do Concílio Vaticano II e da Constituição Pastoral Gaudium et Spes a Igreja não era mais um mundo à parte, e sim uma comunidade inserida na história real do mundo e conectada com as alegrias e esperanças, mas também com o sofrimento das pessoas

“Os aspectos realmente inovadores do Vaticano II são negados na perspectiva da ‘continuidade’ com o passado. A eclesiologia integral e a teologia do povo de Deus e da communio se tornaram uma espécie de unidade doutrinária e disciplinar rigorosa. A perspectiva da justiça voltou a ser de novo mais uma questão de caridade. Há uma reclericalização da Igreja Católica que é alheia ao espírito do Vaticano II”, constata o professor de Ética teológica da Universidade Católica de Leuven.

Johan Verstraeten, belga, ensina Theological Ethics na Faculty of Theology and Religious Studies, da KU Leuven, e é membro do conselho editorial da Business Ethics e do Journal of Catholic Social Thought.

Confira a entrevista.


IHU On-Line – Como o senhor analisa o Concílio Vaticano II após 50 anos de sua abertura, sob o ponto de vista da Doutrina Social da Igreja?

Johan Verstraeten –
No início, o foco estava nos assuntos internos da Igreja, como, por exemplo, a eclesiologia integral (a igreja como povo de Deus, Lumen Gentium), a relação entre o papa e os bispos, a liturgia (Constitutio de sacra liturgia), a revelação e interpretação das Escrituras (Dei Verbum ). Só mais tarde as questões sociais e, particularmente, a pauta do chamado “Terceiro Mundo” tornou-se o centro de interesse no que, por fim, resultou na Constituição Pastoral Gaudium et Spes. Um dos mais influentes bispos nesse tocante foi D. Helder Câmara , arcebispo de Recife. Esse documento foi crucial em mais de um sentido. Por um lado, ele reafirmou a guinada personalista que já estava presente na encíclica Mater et magistra (1961)  e, por outro, endossou teologicamente o método dos trabalhadores cristãos (ver, julgar, agir, já mencionado na Mater et Magistra), e o fez de uma forma extremamente inspiradora: “perscrutar os sinais dos tempos e interpretá-los à luz do evangelho”. Isso expressava uma nova atitude para com o mundo: a igreja não era mais um mundo à parte, e sim uma comunidade inserida na história real do mundo e conectada com as alegrias e esperanças, mas também com o sofrimento das pessoas. Gaudium et Spes  também reconheceu que tudo o que fazemos para promover a humanidade e a justiça é uma contribuição para o reino de Deus que “já está presente em mistério”. Além disso, Gaudium et Spes endossou uma visão nova e mais espiritual do matrimônio, não como um contrato, mas como “íntima comunidade de vida e amor”. Além disso, pela primeira vez foram levadas a sério preocupações concretas do “Terceiro Mundo”, como, por exemplo, o problema da propriedade da terra e de sua redistribuição a agricultores pobres.


IHU On-Line – Como o Concílio repercutiu nas questões sociopolítico-econômicas e nas tensões entre os modelos capitalista e comunista?

Johan Verstraeten –
O Concílio como tal não argumentou a favor ou contra o capitalismo ou o comunismo, mas defendeu uma visão personalista da sociedade. Uma de suas principais contribuições foi tornar concreta a visão de Pio XII – que era, com efeito, uma nova confirmação da visão de Tomás de Aquino  – de que a propriedade privada está subordinada à destinação comum dos bens, afirmando que os latifúndios deveriam ser distribuídos às pessoas, porque não é justo que a terra não seja usada para a produção de alimentos ou para a subsistência dos agricultores e de suas famílias. (Este é um ponto de vista que, mais tarde, o Papa João Paulo II estendeu à propriedade dos meios de produção em geral, incluindo a propriedade de ações de empresas; é justo investir dinheiro quando ele leva não só ao lucro financeiro, mas também ao lucro social, ou, mais concretamente, à criação de “trabalho útil”, no dizer de Centesimus annus , capítulo 4.)


IHU On-Line – Qual o modelo social idealizado e assumido pelo Concílio?

Johan Verstraeten –
Na verdade, o Concílio não propôs um modelo específico de sociedade (como o Papa João Paulo II esclareceria mais tarde em Sollicitudo rei socialis : o ensino social da igreja não é uma “terceira via”, nem um modelo específico). Mas ele defendeu uma sociedade a serviço da dignidade da pessoa humana. O princípio social central do Vaticano II é a justiça.


IHU On-Line – Qual foi o significado de justiça social assumido pelo Concílio e quais suas decorrências?

Johan Verstraeten –
Para o Vaticano II – como já foi o caso na encíclica Quadragesimo anno , de 1931 –, justiça social significa que os pobres deveriam receber a parte que lhes cabe nos bens da terra e no crescimento econômico. O ensino social da igreja sempre proclamou que um abismo grande demais em termos de renda entre ricos e pobres é contra o bem comum. Com efeito, ele trata de uma sociedade participativa em que todas as pessoas sejam capacitadas a se tornar participantes plenos na sociedade, incluindo as pessoas marginalizadas e os indígenas, cujo interesse é muitas vezes negligenciado.


IHU On-Line – Em que medida o Concílio foi o ponto de partida para o desenvovimento de uma nova consciência de ser Igreja, sobretudo para uma eclesiologia da libertação?

Johan Verstraeten –
O Vaticano II como tal e, particularmente, a Gaudium et Spes ainda não propuseram uma espécie de teologia da libertação. Por outro lado, a abordagem segundo a qual se deveriam “perscrutar os sinais dos tempos” e a atenção dada a ela por alguns bispos do (então) Terceiro Mundo abriram caminho para uma abordagem mais crítica em relação às injustiças da sociedade. Foi o espírito do Vaticano II e a nova colegialidade entre os bispos que, também depois de Populorum Progressio  (1967), tornou possível uma conferência dos bispos latino-americanos como a de Medellín em 1968 (opção pelos pobres, atenção às estruturas opressoras e libertação). Foi também o espírito do Vaticano II que inspirou o Sínodo Geral dos Bispos sobre a justiça (1971) a proclamar que a “ação pela justiça e a participação na transformação do mundo aparecem-nos claramente como uma dimensão constitutiva da pregação do evangelho”.


IHU On-Line – Depois de 50 anos de sua abertura, como o Concílio pode continuar repercutindo na Igreja, sobretudo tendo presente a atual realidade social e cultural?

Johan Verstraeten –
O problema atualmente é que nós temos os textos do Vaticano II, mas o espírito de colegialidade e de diálogo aberto quase desapareceu. Os aspectos realmente inovadores do Vaticano II são negados na perspectiva da “continuidade” com o passado. A eclesiologia integral e a teologia do povo de Deus e da communio se tornaram uma espécie de unidade doutrinária e disciplinar rigorosa. A perspectiva da justiça voltou a ser de novo mais uma questão de caridade. Há uma reclericalização da Igreja Católica que é alheia ao espírito do Vaticano II.


IHU On-Line – Qual a missão da Igreja no mundo de hoje?

Johan Verstraeten –
A missão da Igreja na atualidade não é, em primeiro lugar, oferecer uma doutrina ao mundo, mas ser, seguindo as pegadas de Jesus Cristo, um sacramento de salvação e libertação de tudo que impede os seres humanos de serem plenamente humanos. Uma igreja autêntica e digna de crédito cuja prática corresponda ao seu discurso. Uma igreja como comunidade de comunidades que mostre às pessoas em todas as circunstâncias da vida que Deus é um Deus de amor e justiça, um Deus que quer curar e libertar todo ser humano cuja dignidade humana seja violada.


IHU On-Line – Entre recuos e avanços, à luz do Vaticano II, como o senhor analisa as atuais diretrizes da Cúria Romana em relação à Doutrina Social da Igreja?

Johan Verstraeten –
Hoje em dia, não há uma única atitude da cúria. Isso é claramente visível no “Compêndio da doutrina social da igreja” . Esse documento é, por um lado, um resumo conservador de mais de 100 anos de ensino social, mas, por outro lado, mostra uma preocupação real com o meio ambiente, defende a destinação universal dos bens, mais participação, etc. Alguns documentos dão a impressão de subordinarem de novo a justiça à caridade, mas em documentos recentes há novamente um equilíbrio entre as duas. Um dos documentos recentes do Pontifício Conselho da Justiça e da Paz  sobre a crise financeira internacional é um documento excelente. De fato, o “pensamento social católico” sempre é mais amplo e mais rico do que os documentos oficiais. Há sempre um diálogo em andamento, mas ainda não se está dando atenção suficiente à perspectiva e experiência dos pobres.


IHU On-Line – Gostaria de destacar mais algum aspecto?

Johan Verstraeten –
Para mim, a “doutrina” é menos importante do que o compromisso cotidiano de milhões de cristãos em todas as partes do mundo, desde os líderes de movimentos sociais e ecológicos radicais até pessoas que tentam realizar uma nova economia de comunhão, desde pessoas que vivem em contato direto com pobres e vulneráveis (como Jean Vanier, por exemplo) até aquelas que analisam as causas estruturais da injustiça, desde professores universitários críticos até pessoas que constroem escolas e centros de atendimento em campos de refugiados e lixões de cidades grandes onde os mais pobres dentre os pobres tentam sobreviver, desde sindicalistas cristãos até líderes empresariais que tentam genuinamente realizar um mundo dos negócios mais humano, desde pessoas que defendem os direitos de migrantes e “sem-documentos” até os políticos que tentam criar um sistema político mais justo, as pessoas que ajudam os sem-teto, desde diplomatas cristãos cautelosos até cristãos realmente “indignados”... Uma prática e teoria social autêntica sempre nasce na encruzilhada do evangelho e da vida. Enquanto a hierarquia der ouvidos à experiência das pessoas que estão na base e expressar as preocupações delas em seu ensino social oficial, o catolicismo social será uma força de humanização e justiça no mundo.

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