Edição 399 | 20 Agosto 2012

Modelos do corpo humano

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Vilém Flusser

Leia mais um texto inédito de Vilém Flusser.

Modelos do corpo humano

Para Gabriel Borba

 

Modelos mudam. Esta afirmativa é característica da chamada “idade moderna”. Na Antiguidade e na Idade Média modelos são imutáveis. Para os gregos e os cristãos “sabedoria” é contemplação dos modelos imutáveis (das formas). Embora o método varie (theoria para os gregos, “fé” para os cristãos). Para os modernos “saber” é, entre outras coisas, manipular e mudar modelos. Toda vez que um modelo muda, muda a nossa visão, e portanto compreensão do modelado. Mas há feedback em tal processo. Toda vez que a nossa compreensão de um determinado fenômeno se revela insatisfatória, buscamos novo modelo.

Há vários critérios para classificar modelos. Três dos critérios são o motivo do presente ensaio. Primeiro critério: dimensão. (1) Modelos lineares, por exemplo descrições, equações e curvas. (2) Modelos planos, por exemplo mapas geográficos e desenhos de aparelhos. (3) Modelos tridimensionais, por exemplo casas-miniatura e estruturas de arame com bolas modelando estruturas de moléculas. Toda vez que muda a dimensão do modelo, muda a cosmovisão. O exemplo clássico disso é o aparecimento do globus, isto é, a curvatura do mapa. Outro exemplo é o aparecimento de modelos tridimensionais da informação genética, isto é, o desdobramento dos modelos bioquímicos planos para dentro do espaço. Segundo critério: dinâmica. (1) Modelos sincrônicos, por exemplo mapas anatômicos e mapas políticos. (2) Modelos diacrônicos, por exemplo modelos plásticos de organismos com órgãos substituíveis, e séries de mapas históricos. Toda vez que muda a dinâmica dos modelos, muda a cosmovisão. O exemplo clássico é a biologia, isto é, a substituição do modelo sincrônico dos enciclopedistas pelo modelo diacrônico darwiniano. Outro exemplo é a química, isto é, a substituição do modelo de valências pelo modelo de interferências de órbitas de elétrons. Terceiro critério: perspectiva. (1) Modelos objetivos (projetados de um ponto de vista que transcende o fenômeno). (2) Modelos subjetivos (projetados do ponto de vista de quem enfrenta o fenômeno). (3) Modelos intersubjetivos (projetados a partir do concreto estar-no-mundo humano). Na nossa tradição modelos objetivos (por exemplo, os da ciência) e modelos subjetivos (por exemplo, os da arte) se completam para resultar em nossa cosmovisão. A crise da nossa cosmovisão se manifesta, entre outras coisas, pela crescente problematicidade dos modelos objetivos e pelo aparecimento de modelos intersubjetivos.

Os três critérios motivam o presente ensaio pela razão seguinte: mostram que a elaboração de novos modelos é problema técnico e problema de ponto de vista, e que poucas são as atividades humanas tão revolucionárias quanto o é a elaboração de novos modelos. Começarei pela discussão do problema do ponto de vista, e aplicarei a discussão ao fenômeno “corpo humano”.

A grande maioria, senão a totalidade, dos modelos postos ao nosso dispor pelas ciências é do tipo “objetivo”. Tais modelos são projetados a partir de uma “transcendência” do sujeito que pretende orientar-se no mundo. A partir de tal perspectiva o mundo é visto e modelado como contexto composto de objetos. Por exemplo, o corpo humano aparece, sob tal perspectiva, como sendo um entre vários objetos no mundo, e como objeto de tipo específico, chamado “organismo”. Os modelos do corpo humano que a ciência nos fornece (mapas anatômicos, descrições fisiológicas etc.) são projeções a partir de tal ponto de vista tanto quanto certos mapas geográficos são projeção “mercator”. O ponto de vista “objetivo”, assumido metódica e conscientemente desde pelos menos o Renascimento, apresentava sempre dificuldades de várias ordens. Por exemplo, a dificuldade de se saber exatamente o que é o sujeito transcendente, e com que métodos ele consegue transcender o objeto. Mas os modelos funcionavam extremamente bem na práxis, de forma que tais dificuldades foram sendo relegadas a segundo plano. Ultimamente, no entanto, estão surgindo dificuldades de ordem diferente. Está se tornando sempre mais claro nos mais variados campos de atividade que a divisão nítida “sujeito/objeto” é impraticável. O princípio de Heisenberg é apenas um entre vários exemplos disso. Pois tal dificuldade prática não pode ser relegada a segundo plano, porque faz surgir a suspeita que modelos objetivos deformam de alguma maneira o fenômenos a ser compreendido (e manipulado). E há outra suspeita, talvez ainda mais perturbadora. Possivelmente o próprio modelo interfere no fenômeno a ser modelado, de maneira que o próprio fenômeno se deforma para adaptar-se ao modelo. A relação entre modelos econômicos, políticos e sociais, de um lado, e a realidade a ser por eles modelada é bom exemplo disso. De maneira que não é mais tão fácil assumir-se pontos de vista objetivos e projetar-se modelos a partir de tal perspectiva. Não é fácil por razões práticas, que se apresentam às teóricas sempre existentes. Isso é aspecto de nossa crise (o aspecto “crise da objetividade”).

Em consequência está sendo elaborado, em toda parte, um novo ponto de vista (que é “novo” apenas no sentido de “deliberadamente assumido para superar a crise”). É o ponto de vista de quem não procura transcender o mundo, mas assumir-se enquanto mergulhado dentro do mundo. A elaboração de tal ponto de vista, e de modelos projetos a partir de tal ponto de vista, é o programa da “fenomenologia”. Pois os modelos que vêm sendo propostos sob tal perspectiva nova modificarão nossa cosmovisão radicalmente. Por exemplo, a nossa visão do corpo humano. Não mais é visto como um entre os objetos do mundo que nos cerca, mas como nossa maneira de “estarmos-no-mundo”, isto é, vivenciarmos e manipularmos os objetos que nos cercam. Tais modelos do nosso corpo, se e quando disciplinarmente elaborados, não serão mais objetivos (como que vistos a partir de marcianos), mas intersubjetivos (vistos a partir da condição corpórea comum a todos os homens). Nem serão subjetivos (vistos a partir de um específico sujeito). No entanto, ainda não dispomos de modelos satisfatórios deste tipo. Não dispomos de tais modelos, embora a literatura “fenomenologia do corpo humano” esteja aumentando e se aprofundando com cada ano que passa. Isso tem a ver com o problema técnico da elaboração de modelos.

Modelos são instrumentos para a compreensão (e posterior manipulação) do fenômeno por eles modelado. Como todo instrumento, são resultados de determinada tecnologia. Os mapas elaborados à base de aerofotografia são modelos diferentes dos mapas elaborados à base da navegação costeira. Consequentemente é diferente a visão que temos do modelado (de um país, por exemplo). A escrita alfabética é resultado de determinada técnica de trabalhar-se barro. Representa profunda revolução na história (com efeito, inicia a história propriamente dita), porque possibilita a elaboração de modelos lineares (históricos) do mundo. A aeronáutica surgiu por razões independentes da atividade modeladora, e também a fabricação de tijolos. Mas dado um contexto específico, no qual por uma ou outra razão certos modelos disponíveis são julgados insuficientes (por exemplo, desenhos de necas ou a projeção “mercator” para mapas), o desenvolvimento tecnológico recente pode oferecer a possibilidade para a elaboração de modelos de novo tipo. Tal parece ser o caso da atualidade.

Dispomos atualmente de toda uma gama de métodos novos para a comunicação de fenômenos que nos cercam. Filmes, videoteipe e hologramas são apenas exemplos da grande variedade de expressão nova da qual dispomos. O que caracteriza todo este desenvolvimento é isto: podemos doravante estruturar as nossas mensagens de forma previamente impossível. Por exemplo, no filme e no videoteipe podemos de forma estruturar planos linearmente, e no holograma podemos fazer o plano transparente para o espaço. Ou podemos, graças a esses e outros meios, diacronizar sincronias e sincronizar diacronias. Em outros termos, podemos doravante elaborar modelos de tipos previamente impossíveis por falta de tecnologia apropriada. Tal virtualidade modeladora da chamada “revolução nos meios de comunicação”, e o impacto que teria, se realizada, não parece ter penetrado profundamente a consciência geral, e isso é surpreendente. É surpreendente porque, de um lado, a carência de modelos de novo tipo é parente, e, de outro, as experiências com os videoteipes em curso parecem clamar por utilização “modelar” desse meio (para citar apenas um único exemplo). Assim, por exemplo, necessitamos de modelos radicalmente novos para as várias cosmogonias que vêm sendo elaboradas por meios obviamente inadequados (descrições discursivas, desenhos planos etc.), e a técnica dos videoteipes parece indicada para tais modelos. A nossa é a situação de sumérios que dispõem de tijolos e os utilizam apenas para neles imprimirem carimbos representando animais e deuses. E os críticos sumerianos discutirem se os leões carimbados podem vir a substituir os leões talhados em pedra. Embora outros sumérios já tivessem procurado, com êxito duvidoso, talhar letras em pedras. É que é difícil libertar o tijolo da pedra, e o videoteipe da pintura e da fita de cinema.

O paparelo sumeriano, em si duvidoso, pode ser elaborado. (Os sumérios podem ser manipulados para servirem de modelos para o nosso problema.) Supomos que por razões não mais reconstitutíveis todos os modelos que os sumérios faziam do seu mundo deixavam progressivamente a satisfazê-los. Por serem tais modelos, por exemplo, cenas (pintadas, esculpidas ou representadas por ritos). Não satisfaziam mais, porque o mundo não era mais compreensível como conjunto de cenas. Passou a ser, por falta de novo tipo de modelos, incompreensível. Em tal situação crítica surgiram as tentativas destinadas a elaborar modelos mais adequados. O resultado foi a escrita alfabética linear que fornecia modelo para nova compreensão do mundo: não mais cena, mas processo. A crise tinha sido superada, e o mundo voltou a ser compreensível. Pois a elaboração do novo tipo de modelo era motivada pela crise, isto é, por um novo ponto de vista relativo ao mundo. E a crise foi efetivamente superada, porque uma nova tecnologia (a fabricação de tijolos) permitiu a elaboração do tipo de modelo apropriado à nova compreensão do mundo. E na medida na qual os tijolos vinham sendo utilizados enquanto modelos (na medida na qual surgiam bibliotecas de tijolos), uma nova cosmovisão ia sendo elaborada, cosmovisão contida apenas em germe no projeto inicial da escrita. De forma que uma nova compreensão do mundo motivou a invenção da escrita, e, por sua vez, a escrita possibilitou a elaboração dessa compreensão em cosmovisão progressivamente rica. O paralelo sugere que os novos meios de comunicação ocupam, no nosso contexto, o lugar ocupado na Suméria pelos tijolos.

Mas o paralelo sugere também que Toth (o inventor mítico da escrita) deve ter sido, por necessidade, uma espécie de grêmio composto de “pensadores”, “técnicos” e “artistas”. “Pensadores” para projetarem os novos modelos a partir do novo ponto de vista (não mais cênico, mas histórico. “Técnicos” para manipularem os tijolos de maneira a torná-los utilizáveis enquanto modelos. E “artistas” para traduzirem os modelos tradicionais (pinturas, esculturas), para o novo médium agora disponível. E isso explica por que ainda não dispomos de modelos satisfatórios que recorram aos novos meios: os grêmios ainda não estão constituídos. Os novos meios ainda estão em posse de técnicos e, muito precariamente, em posse de artistas. Os pensadores, isto é, os filósofos e cientistas que estão assumindo o ponto de vista fenomenológico, ainda não cooperam sistematicamente na manipulação de tais meios. Se for conseguida cooperação sistemática de técnicos de comunicação com artistas, filósofos e cientistas visando deliberadamente a projeção de novos tipos de modelos, um passo decisivo em prol de uma superação de aspecto epistemológico da nossa crise teria sido dado. Para tanto seria necessário que os técnicos admitam as suas limitações, os artistas abandonem a sua atitude estetizante, e os filósofos e cientistas desçam do seu pedestal de hermetismo erudito. E que os detentores dos meios de comunicação possibilitem experiências em tal sentido. Admitidamente é muito difícil imaginar que tais condições se reúnam. No entanto, embora seja difícil imaginar-se tal reunião das condições, não é tão difícil imaginar-se o seu possível resultado. Os parágrafos seguintes procuração imaginar um possível modelo do corpo humano, projetando do ponto de vista fenomenológico (intersubjetivo), e recorrendo a um videoteipe deliberadamente manipulado para tanto. O propósito disso não é tanto querer seduzir técnicos de videoteipe para a tentativa de realizar o modelo imaginado. É mais a tentativa de provocar discussão em torno da viabilidade de modelos desse tipo.

 

***

 

Imaginemos na tela [da] TV uma bola oca de parece grossa. Imaginemos tal bola translúcida, plástica e em movimento constante. Imaginemos a bola inserida em contexto composto de elementos móveis que tendem a se aglomerar em torno da bola e se dispersar em direção do horizonte da tela. Imaginemos, finalmente, que alguns elementos penetram a parede da bola mais ou menos profundamente, e que a bola expele ocasionalmente secreção que congela para formar elemento do contexto. Proponhamos tal imagem, possivelmente acompanhada de som apropriado, como modelo fenomenológico do corpo humano.

Para tanto rotulemos as várias partes do modelo. Chamemos a vacuidade de bola da bola “eu”, a sua parede “meu corpo”, o contexto “meu mundo”, e o horizonte “minha morte”. Chamemos os elementos do contexto que se aproximam da bola “meus problemas”, e as secreções expulsas em direção do contexto “minhas obras”. Chamemos o movimento dos elementos em direção da bola “meu futuro”, o movimento da expulsão da secreção “meu passado”, e os lugares de feedback entre bola e contexto na superfície externa da bola “meu presente”. Tais rótulos bastarão provisoriamente para a inserção de informações no modelo. O modelo deve ser, no entanto, mantido aberto. Isto é modificável na medida na qual informações vão sendo inscritas. Isto é, o videoteipe deve ser reutilizável repetidas vezes. Procuremos imaginar como tal inscrição de informações poderia dar-se:

Um problema específico se apresenta vindo do meu futuro. Chamemo-lo “dor de fígado”. Seria leviano, no entanto, chamar o ponto no qual a dor se apresenta no meu corpo de “fígado”, e dizer que conseguimos localizar um órgão do corpo no modelo. Seria leviano, porque sem dor o fígado não é vivenciado como fazendo parte do meu corpo. Ao contrário de outras partes, o fígado faz parte do meu corpo apenas na forma de problema. Este fato deve ser nitidamente reconhecível no modelo. Deve haver região intermediária entre bola e contexto (talvez colorida de determinada maneira), que pode ser rotulada “aspecto problemático ou teórico” do meu corpo. O fígado estará localizado dentro de tal região na proximidade da parede da bola, e as moléculas de proteína estarão localizadas na mesma região na proximidade do contexto. O critério da localização será a maior ou menos concreticidade do problema. Tal região intermediária entre meu corpo e meu contexto tenderá a coincidir com os modelos objetivos do corpo humano fornecidos pela biologia, e deverá recorrer amplamente a eles.

Outro problema específico se apresenta vindo do meu futuro. Chamemo-lo “um texto impresso”. Ao se apresentar o problema, a parede da bola se abre e forma canal pelo qual o problema penetra a vacuidade. Chamemos tal canal “meus olhos”. Em tal instante meu corpo todo passa a ser suporte dos meus olhos. E todo ele olhos. Funciona exclusivamente em função dos meus olhos. Mas logo depois, com a apresentação de mais outro problema, a parede da bola se abre para formar canal diferente. Meu corpo passa a ser, todo ele, suporte da minha boca, do meu dedo, do meu sexo, e assim por diante. O modelo deve tornar evidente tal constante modificação da função do meu corpo enquanto mediação entre “eu” e “meu mundo”. Isso pode ser feito mediante iluminação variável da bola (uma cor correspondente a “pé”, outra a “dente” e assim em diante), ou mediante vários sons que acompanham a abertura de vários canais na bola. Deve ser também mostrada a interferência entre os vários canais, e a maneira como moldam o problema que por eles passa.

Mas o modelo deve poder mostrar também que os canais que assim se abrem aos problemas que se apresentam não são todos do mesmo tipo. O canal “olho”, por exemplo, se distingue do canal “dedo” pelo seguinte: meu corpo tem vários dedos, e um dedo pode apalpar outro dedo. Mas embora meu corpo tenha dois olhos, um não pode ser o outro. Em outros termos, o dedo é vivenciado enquanto parte do corpo à sua própria maneira (é palvável), mas o olho é vivenciado enquanto parte do corpo apenas por mediação de outra parte (é palvável, mas não visível). Isso o modelo pode tornar evidente pela relação entre canal e vacuidade. O olho seria mais semelhante à vacuidade (mais como “eu”) do que o dedo, o qual seria mais semelhante aos elementos do contexto (mais como “meu mundo”). Em consequência a parede da bola (meu corpo) tenderia, toda ela, ser mais semelhante à vacuidade (mais oca) em determinados momentos, e mais semelhante aos elementos do contexto (mais compacta), em outros momentos. Seria talvez possível, ao longo da utilização do modelo, descobrir um ritmo em tal pulsação da bola.

Uma secreção específica é expulsa da parede da bola em direção do contexto e congela para formar elemento do contexto. Chamemos tal secreção “meu gesto de escrever” e tal elemento congelado “carta por mim escrita”. O modelo deve poder mostrar como tal secreção começa a formar-se na parede interna da bola, em que meandros complexos penetra pela parede, e como irrompe em determinado ponto da superfície, chamado “minha mão”. Deve poder mostrar ainda como, durante o processo, a bola toda se transforma em cunha que tem minha mão por conta. De forma que em tal momento o meu corpo todo sustenta a minha mão no seu gesto de escrever, e forma parede de um canal entre “eu” e “minha mão escrevendo”. Mas o modelo não deve contentar-se com isso. Deve poder mostrar que a verdadeira ponta de minha cunha não é minha mão, mas a caneta por ela segurada. Em tais instantes, pois, a caneta deve formar a parte mais característica do meu corpo. Mas o modelo não deve esconder o fato que em outros instantes a caneta não é parte do corpo, mas elemento do contexto. Tais elementos do contexto que podem ser invertidos para apontarem o contexto e fazerem parte do corpo podem ser chamados “instrumentos”, e devem ser nitidamente reconhecíveis como tais no modelo.

Não há, evidentemente, necessidade em continuar imaginando possíveis informações a serem inscritas no modelo. Seu número é enorme. Imagine-se, por exemplo, o encontro de dois ou vários corpos na mesma tela, e considere-se apenas a superposição dos vários contextos, para se captar a riqueza de informações inseríveis no modelo. O propósito desta “proposta de modelo” ficou, creio, atingido. O de mostrar que tal tipo de modelo, e que não seja tão rudimentar como o é o proposto, poderá servir para uma reorientação no corpo humano, e, através desta, para uma reorientação no nosso contexto. Para tornar mais claro o propósito, é preciso acrescentar o seguinte:

A função de novos tipos de modelos não é a de propor novas informações relativas ao fenômeno modelado, mas a de reestruturar as informações existentes. Nenhuma das informações aqui mencionadas é, obviamente, nova. Pelo contrário, são informações tão corriqueiras e gastas que tendem a serem esquecidas. A função de novos modelos é a de reestruturar informações existentes de tal maneira que reapareçam. Isso não exclui que a aplicação de novos modelos não resulte em informações novas. Mas tal não é o seu ponto de partida.

O que caracteriza a nossa situação não é a carência de informações, mas seu aparente excesso. “Informação em excesso” significa que os modelos disponíveis se tornam ilegíveis porque não conseguem estruturar as informações com as quais são alimentados. Os modelos disponíveis são pouco satisfatórios, não apenas porque são suspeitos quanto à sua perspectiva, mas porque tendem a serem ilegíveis. Mas muito provavelmente se trata de dois aspectos do mesmo problema. Novos tipos de modelos provavelmente acabariam com a nossa impressão que estamos sendo inundados por informações, e provocariam nova fome de informação, isto é, nova curiosidade. E fariam isso, por serem modelos novos, isto é, serem projetados de novo ponto de vista e consequentemente estruturarem as informações disponíveis de nova forma.

O modelo proposto, por rudimentar que seja, sugere que os novos meio de comunicação podem ser utilizados com tal finalidade. Como modelos de quatro dimensões (espacio-temporais) que diacronizam sincronias e sincronizam diacronias e são projetados do ponto de vista intersubjetivo. Não, por certo, para substituírem os modelos existentes. Mas para, recorrendo a eles, enriquecer a nossa visão de mundo. É claro, tais modelos não são novos no sentido de jamais antes imaginados. São novos no sentido de materializações de modelos imaginados. Mas isso seria muita novidade.

 

***

 

O modelo proposto é rudimentar e serve apenas à ilustração de possíveis modelos na direção apontada. Mas por rudimentar que seja, permite vislumbrar objeções fundamentais contra a empresa toda. Não é possível calar tais objeções até em ensaio tão esboçado quanto o é o presente. Por outro lado, não é possível procurar enumerar todas as objeções que vêm à mente. Procurarei considerar apenas duas entre elas, por me parecerem as mais decisivas.

(1) Modelos são instrumentos para a compreensão dos fenômenos que modelam. São, pois, instrumentos “epistemológicos” que visam resultar em determinada “episteme”. Mas são necessariamente instrumentos elaborados à base de uma teoria do conhecimento esposada por quem as elabora. São instrumentos pré-concebidos. De maneira que nunca poderão resultar em conhecimento diferente daquele previsto pela teoria que lhes deu origem. Nesse sentido, não são métodos eficientes para produzirem conhecimento novo. O modelo aqui proposto do corpo humano é disso bom exemplo. Se analisado revela ser modelado por determinada teoria do conhecimento. O sujeito conhecedor aparece no seu centro (embora negativamente na forma de vacuidade), o objeto conhecível aparece em determinada posição com relação ao sujeito, e o horizonte chamado “minha morte” revela de que tipo de teoria se trata: a do existencialismo. E tal pré-modulação do modelo por determinada teoria não é defeito apenas do modelo proposto, mas caracteriza todos os modelos. Não se deve, pois, nutrir demasiada esperança quanto à ação revolucionária, inovadora, de modelos de novos tipos.

A objeção é válida, e não há como negá-lo. Mas o modelo proposto, por rudimentar que seja, mostra que tal objeção não invalida necessariamente a tentativa. Trata-se de modelo destinado a fornecer conhecimento novo com relação a determinado fenômeno, “corpo humano”, e não a fornecer uma teoria de conhecimento nova. Não visa, pois, propor solução nova para o problema antiquíssimo “sujeito/objeto”, mas visa aplicar ponto de vista específico desse problema ao fenômeno a ser conhecido, ponto de vista este ainda não elabora suficientemente por modelos. As visões objetivistas e subjetivistas do passado dificultam sobremaneira o conhecimento do corpo humano, ao introduzirem constantemente a antinomia “corpo/espírito”, ou “corpo/alma”, antinomia esta que se revelou pouco fértil. A visão fenomenológica não vê tal antinomia. Para ela “corpo” é extrapolação reificante do conteúdo de uma específica experiência, e “espírito” (ou “alma”) é extrapolação reificante da maneira pela qual tal experiência ocorre. Sob tal visão nem “corpo” nem “alma” ocorrem na realidade concreta. A virtude do modelo proposto (se virtude há) reside justamente no fato da eliminação da antiquíssima antinomia ao nível da utilização prática do modelo. O modelo deixa, no entanto, tal antinomia intocada ao nível da elaboração e crítica do modelo. Não resolve o problema “sujeito/objeto”, porque não responde à pergunta: “onde está o elaborador e utilizador do modelo”. Nesse sentido, a objeção é correta. Mas não é este o propósito do modelo proposto, nem de não importa que outro modelo.

(2) Modelos são instrumentos para a compreensão dos fenômenos que modelam, isto é, para orientação no mundo que nos cerca. Pois “orientar-se no mundo” é, no fundo, questão religiosa, qualquer que seja a nossa atitude com relação à religiosidade. Porque é questão “qual é a minha situação e possível meta no mundo?”, e isto é, no fundo, questão religiosa. Mas modelos não podem fornecer respostas a tal pergunta, porque são elaborados à base de determinada religiosidade de quem as elabora (confessa ou inconfessa, consciente ou inconsciente). De maneira que quem elabora modelos já está em posse da resposta que finge procurar mediante o modelo. O modelo aqui proposto é disso bom exemplo. O modelo, se analisado, revela a estrutura das religiões tradicionais do Ocidente. E o revela sob forma característica para um estágio específico que tais religiões alcançaram na atualidade para certas pessoas. A vacuidade no centro do modelo corresponde ao lugar da “alma” na estrutura tradicional, e o horizonte do modelo corresponde ao lugar do “Deus transcendente”. O vazio dos dois lugares no modelo corresponde à visão das religiões tradicionais que certos têm na atualidade. Tal pré-modulação do modelo por determinada religiosidade não é defeito apenas do modelo proposto, mas quanto a uma possível “nova cosmovisão” graças a modelos de novos tipos.

A objeção é válida, mas curiosamente pode ser invertida para passar a sustentar a tentativa proposta. O argumento é este: os modelos atualmente disponíveis encobrem o fato que, todos eles, inclusive os aparentemente mais abstratos e teóricos, e os aparentemente mais “isentos de valor”, são elaborações de determinada religiosidade. Tal encobertura problematiza todos os conhecimentos que tais modelos oferecem. O modelo proposto, pelo contrário, por ter sido projetado a partir do concreto “estar-no-mundo”, permite a descoberta de tal estrutura latente com relativa facilidade. Porque o concreto “estar-no-mundo” tem dimensão religiosa. Em outros termos, o modelo não visa dar resposta à problemática religiosa, e não visar tal meta. Não serve, por exemplo no modelo proposto, para sugerir métodos para a salvação da alma, nem para sugerir métodos para a superação do mito da alma. Nesse sentido, a objeção é correta. Mas o modelo, por exemplo o proposto, visa proporcionar conhecimento do corpo humano, e um dos conhecimentos que proporciona é o que nós, os ocidentais, vivenciamos o nosso corpo à maneira ocidental, como “encarnação da alma”, qualquer que seja a nossa atitude consciente a respeito disso. Nesse sentido, a objeção vem a fortalecer a tentativa.

Outras objeções são formuláveis. Embora não devam ser ignoradas, não devem inibir a tentativa. Devem, pelo contrário, ser enfrentadas na medida na qual a elaboração e utilização dos modelos progride. Devem ser adiadas. E adiar objeções é uma maneira de removê-las do caminho. Porque, afinal de contas, a prova do bolo é no comê-lo.

 

***

 

O exemplo de um novo tipo de modelo possível fornecido neste ensaio visa contribuir para a discussão do problema da carência de modelos. Tal carência é um aspecto da nossa crise. No caso da nossa compreensão do corpo humano a crise está assumindo a seguinte forma: os nossos modelos objetivos do nosso corpo estão se tornando sempre mais aperfeiçoados, o que permite conhecimento teórico sempre melhor, e manipulação técnica sempre mais eficiente. E contribui para teoretização crescente do fenômeno “corpo”, e consequentemente para a nossa crescente alienação com relação à experiência concreta do corpo. Isto tende a nos transformar em robôs manipuláveis cientificamente. Os modelos subjetivos do nosso corpo dos quais dispomos são o inverso de tal medalha. Aceitamos a vivência concreta do corpo com crítica decrescente, e isso tende a uma crescente submissão ao corpo e endeusamento da Vicência que temos do corpo. O sensacionalismo (no sentido de “submissão às sensações do corpo”) está adquirindo formas sempre mais acentuadas, das quais apenas uma é o uso das drogas. Trata-se de alienação com relação ao corpo que está em retroalimentação com a outra, a objetivizante. De maneira que “cultura” e “contracultura” se revelam, no caso do nosso corpo, não opostos, mas paralelos. E o que está sendo afirmado com relação ao nosso corpo pode, mutatis mutandis, ser afirmado com relação a numerosos outros problemas.

Pois dispomos tanto de método filosófico e científico (o fenomenológico) quanto de meios novos (os fornecidos pela “revolução dos meios de comunicação”) para tentarmos elaborar novos tipos de modelos. Tipos de modelos destinados a fornecer conhecimento não fornecido pelos modelos atualmente em uso. E tal conhecimento novo poderá possivelmente, embora não necessariamente, contribuir para a superação de certos aspectos da nossa crise. O desafio é, pois, empolgante. Transmitir tal sensação de aventura não é o menor dos propósitos do presente ensaio.

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