Edição 399 | 20 Agosto 2012

Guru ou pessimista em relação à sociedade informacional?

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Thamiris Magalhães

Flusser tinha um estilo muito específico de escrita. De acordo com César Baio, seus textos, ora entusiasmados, ora críticos com as tecnologias de comunicação, deixam até hoje estonteados seus leitores

Flusser foi, a um só tempo, considerado por muitos “um guru e por outros um pessimista em relação à sociedade informacional que se erguia nas últimas décadas do século XX”. “Mas este aspecto de sua escrita não é apenas estilístico. Faz parte de uma intrincada e estratégica maneira de Flusser filosofar”, explica César Baio, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Segundo Baio, na visão de Flusser os estudos de Comunicação não devem ficar restritos às mídias, pelo menos não no sentido restrito deste termo, quando entendido unicamente como meios de comunicação de massa, redes informacionais ou as chamadas novas mídias. “A comunicação, segundo ele, deve considerar também a comunicação face a face, assim como os objetos, espaços e situações que experienciamos. O corpo, uma sala de aula, um jogo de futebol, um objeto de design são mídias tanto como o vídeo, o cinema ou a internet”.

César Baio possui graduação em Comunicação Social pela Universidade de Taubaté, mestrado e doutorado em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP. Parte de sua pesquisa de doutorado foi realizada na Universidade de Artes de Berlim – UDK, durante um estágio no Vilém Flusser Archive. É professor-adjunto do Instituto de Cultura e Arte da Universidade Federal do Ceará – UFC.

Confira a entrevista.


IHU On-Line – Como Flusser definiu o conceito de comunicação? Para ele, ela sempre depende da mídia? Por quê?

César Baio –
O conceito de comunicação é um eixo fundamental do pensamento de Flusser. Para ele, nos comunicamos para criar uma razão de viver, para esquecer a morte, para dar sentido a nossa própria existência que, de início, nada significa, é absurda. A comunicação é, assim, um ato que visa dar sentido a nós mesmos e ao mundo que nos cerca. É a partir dessa concepção de comunicação que ele propõe a comunicologia (do termo Kommunikologie, que dá nome ao livro publicado em Alemão), que seria um campo de estudos voltado à análise dos processos simbólicos do ser humano. O estudo da comunicação, para ele, manteria como foco os processos de codificação próprios dos aparatos midiáticos e da própria cultura.


A teoria da comunicação e da mídia

Partindo da premissa aristotélica de que o ser humano é um ser zoon politikon, ou seja, que existe essencialmente por sua capacidade de comunicação por meio de símbolos, a teoria da comunicação e da mídia de Flusser está direcionada ao estudo da cultura. Para Flusser, os estudos de comunicação não devem ficar assim restritos às mídias, pelo menos não no sentido restrito deste termo, quando entendido unicamente como meios de comunicação de massa, redes informacionais ou as chamadas novas mídias. A comunicação, segundo ele, deve considerar também a comunicação face a face, assim como os objetos, espaços e situações que experienciamos. Para o autor, o corpo, uma sala de aula, um jogo de futebol, um objeto de design são mídias tanto como o vídeo, o cinema ou a internet. No entanto, Flusser foi um dos primeiros a identificar o grau de importância que teriam os aparatos técnicos de comunicação na sociedade atual e, por isso, sempre reservou a eles um tratamento especial em sua filosofia. Foi justamente este cenário marcado pela telemática e pela ubiquidade das tecnologias de mediação, principalmente aquelas baseadas em imagens, que o levou a falar de uma revolução comunicacional (uma revolução dos códigos), principal aspecto da mudança de paradigmas que o conduziu ao conceito de pós-história, este que é bastante diferente de pós-modernidade.


IHU On-Line – Qual foi a maior descoberta de Flusser para o campo comunicacional?

César Baio –
Essa é uma questão difícil de ser respondida, pelo menos de maneira assim resumida. Pela abrangência da visão que Flusser estabeleceu sobre os processos comunicacionais, não sei se seria possível apontar um conceito único como o mais importante. São muitas as passagens de sua filosofia que vêm sendo retomadas, influenciando em diversos sentidos tanto os estudos de comunicação como os de outras áreas em que os processos simbólicos são objeto de estudo, tais como as artes e os estudos culturais. Falar em descoberta é também algo delicado, ainda mais quando se fala de Flusser, já que ele pensa o mundo como resultado processual de um complexo sistema de produção simbólica, e não necessariamente como algo que esconde uma coisa a ser revelada. Mas talvez seja possível assumir como um dos eixos fundamentais do seu pensamento sobre comunicação a concepção de mundo codificado e as articulações feitas a partir dele. Ao entender nossa existência como algo desprovido de sentido anterior, ele assume que o mundo somente nos é acessível por meio de um mundo de segunda ordem, codificado por signos. O mundo da natureza seria assim algo que não mais nos é acessível, se não por esta “ponte” que é a cultura. Com esse raciocínio, ele busca revelar o caráter artificial das mídias e da cultura de maneira geral, que operam por meio de processos de codificação. Flusser chama a atenção para a importância dos processos de codificação, afirmando que eles estão marcados por modelos epistemológicos e operam de acordo com políticas, éticas e estéticas específicas a cada aparato simbólico.


IHU On-Line – Qual a relação do autor com as consequências da revolução causada pela atual tecnologia da mídia e informação?

César Baio –
Flusser tinha um estilo muito específico de escrita. Seus textos, ora entusiasmados, ora críticos com as tecnologias de comunicação, até hoje deixam estonteados seus leitores. Isso fez com que Flusser fosse a um só tempo considerado por muitos um guru e, por outros, um pessimista em relação à sociedade informacional que se erguia nas últimas décadas do século XX. Todavia, esse aspecto de sua escrita não é apenas estilístico. Faz parte de uma intrincada e estratégica maneira de Flusser filosofar. Isso porque se trata do enfrentamento entre consciências plenivalentes, para usar um termo cunhado por Mikhail Bakhtin , ao analisar a obra de Dostoiévski . Muitas vezes, esse enfrentamento é radicalizado ao máximo pela alternância entre pessimismo e otimismo. Tal ambivalência é muito significativa, pois representa tanto uma profunda recusa de um futuro em que existiríamos “em função” dos aparatos técnicos, das mídias, das imagens e dos automatismos de todas as ordens como também uma tentativa de sugerir futuros alternativos em que fosse possível um maior grau de liberdade em relação à própria cultura. Ele estabelecia um jogo com estas duas visões da tecnologia, e era esse jogo que ele propunha para nós.


Aparatos técnicos

Para Flusser, os aparatos técnicos seriam um dos artefatos que em maior grau materializariam os processos de automatização que instituímos culturalmente. Cada aparato técnico guarda em si uma sedimentação de sensibilidades, modelos epistemológicos, políticos, éticos e estéticos. Muito do que ele escreveu sobre as tecnologias de mediação foi uma tentativa de tornar isso evidente. Não necessariamente para ser combatido nem para ser usado irrefletidamente. Mas para que pudéssemos jogar com elas. Conhecer as regras e a posição das peças para fazer os nossos próprios movimentos dentro da rede complexa que é a cultura atual, formada por meios de comunicação em rede.


IHU On-Line – Qual a relação que Flusser como filósofo estabelece entre a filosofia e a comunicação?

César Baio –
Talvez um dos aspectos mais importantes da originalidade da filosofia flusseriana seja a sua relação com os processos de codificação, ou seja, com a comunicação humana, seja ela interpessoal e midiática, englobando assim áreas como as da arte, da ciência, da religião e dos estudos culturais. Porém, o pensamento de Flusser não apenas tratava de comunicação, mas também era influenciado pela comunicação, mais precisamente pelos processos dinâmicos e interativos próprios aos sistemas complexos da física quântica e da cibernética. O conceito de comunicação faz parte das bases da cibernética que tanto influenciou Flusser, assim como os processos simbólicos também mantêm bases na fenomenologia de Husserl, outra grande influência do autor. A importância dessas influências ganha corpo na concepção de mundo codificado mencionada anteriormente, de modo que a comunicação não é apenas o objeto da filosofia flusseriana como também sua própria matriz conceitual.


IHU On-Line – No que consiste a filosofia da fotografia analisada por Flusser?

César Baio –
Apesar de seu mais conhecido livro ter sido lançado com o título original Für eine Philosophie der Fotografie (Para uma filosofia da fotografia) e continuar sendo lido por alguns como uma crítica à fotografia, suas reflexões extrapolam esta ou qualquer outra mídia em especial. Trata-se de um modelo filosófico para se compreender não apenas as mídias de maneira abrangente, como também os processos de codificação cultural que marcam a existência humana. De fato, a leitura dos textos de Flusser como “teorias da fotografia” ou da “mídia”, de maneira aplicada, simplifica e reduz extremamente a envergadura de suas proposições.


Filósofo
Para acessar realmente Flusser, é preciso entendê-lo como filósofo, como um gerador de diagramas abstratos que, para serem aplicados, precisam dos filtros próprios às teorias. Nesse aspecto, o título refeito por ele após a revisão que fez da obra para posterior lançamento no Brasil é mais adequado. Filosofia da caixa preta, portanto, trata dos processos de mediação por meios tecnológicos, tomando a fotografia como objeto para uma análise que abrange todos os aparatos técnicos de comunicação, ou, como no título brasileiro, da “caixa preta”. O livro foi sua primeira investida teórica de fôlego nas questões que surgem a partir das tecnologias de mediação. Nos textos que se seguiram, ele amadureceu este pensamento, elaborando uma apurada filosofia sobre o aparato técnico. Em seu Elogio à superficialidade, publicado no Brasil como O universo das imagens técnicas: um elogio à superficialidade (São Paulo: Annablume, 2008), Flusser apresenta uma mais bem orientada abordagem do tema aos aspectos abrangentes do aparato técnico, em meio ao cenário pós-histórico.

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