Edição 397 | 06 Agosto 2012

Contra Marx, apesar de Marx, além de Marx: ou o ressurgir da fórmula materialista da história

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Carlos A. Gadea

“Deve-se ‘descolonizar’ o ‘sujeito’ nas mãos dos que atribuem a si a capacidade de compreensão do mundo, daqueles que brincam de ‘descolados’ ao som de esconder sua fragilidade argumentativa sobre o presente”. A colocação é do historiador Carlos A. Gadea, professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Unisinos e pesquisador do CNPq, em artigo inédito enviado à IHU On-Line. No momento, ele está realizando pós-doutorado no Center for Latin American Studies, na Universidade de Miami. Gadea cursou mestrado e doutorado em sociologia política na Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC com a tese Teorias e paisagens da pós-modernidade. Cultura, política e sociabilidade na América Latina (Itajaí: Univali, 2007). Confira o artigo.

 

Têm coisas que não deixam de me surpreender. Com as diversas mobilizações em torno da Conferência Rio+20 , consignas ecologistas, ambientalistas, de gênero, dentre outras, tomaram forma sob aquilo que pareceu se derivar da reflexão dos neozapatistas do México dos anos 1990: “outro mundo é possível”. Bom lembrar que os indígenas do México falavam em “por um mundo que caibam outros mundos”, pois tinham plena consciência de que o mundo que habitam “é” o possível e melhorável. Ou seja, para eles, não é possível, do ponto de vista do tangível (até a religiosidade dos índios de Chiapas está impregnada de pragmatismo – daí que deuses que “não servem” se possam trocar por outros), um mundo fora deste. Os neozapatistas irromperam para justamente superar uma lógica emancipatória que busca fora de cada um a imagem de “um outro mundo” a ser descoberto e construído, uma sensibilidade que ainda parece pressa à lógica binária do “dentro e fora”, do estou dentro mas também penso esse adentro me projetando para fora de onde penso.

A Rio+20 e as mobilizações pareceram ter permitido o despertar de algo adormecido, ao igual que amplamente internalizado, principalmente por processos de politização que têm formado parte dos nossos aprendizados políticos. O capitalismo tem sido o alvo, novamente, dos desvelos de muitos, mas esse “capitalismo do capital”, com algumas pinceladas de tímida e embrutecida teoria crítica, como quando o cultural se passeia no seu papel “secundário” nas relações sociais. Logo após ter usufruído do acesso a bens materiais e simbólicos por muito tempo, as sociedades europeias, por exemplo, se fazem conhecer na crise e no decorrente descontentamento daqueles que têm vivido, até o momento, em sociedades em que aos índios bolivianos, aos nordestinos brasileiros e aos jovens de muitas cidades latino-americanas se expulsava sem muitas explicações, ou se os estigmatizava com o devido silêncio das grandes maiorias. Aqui, como eco tardio dessa indignação, assume-se uma crítica ao capitalismo sem ser muito tocado no colonialismo coadjuvante, embora para muitos as narrativas políticas, que invertem o mapa da América (o norte no sul, no jogo visual do avesso), como metáforas se referem a uma inversão também do quadro do poder mundial em potencial. O anticapitalismo resultante das mobilizações europeias se fundiu, com a sua nomenclatura própria, nos becos do Rio de Janeiro deste misterioso Brasil e suas fotografias.

No Rio de Janeiro pareceu ressurgir um “Marx clássico”, e cuja imagem polivalente deu para todos os gostos. No entanto, esta imagem parece dizer tantas coisas que termina não dizendo nada. É como vê-la no efeito de saturação de imagens que tanto falava Baudrillard, ou da “precessão dos simulacros”: a imagem que precede ao fato termina anulando a possibilidade de que “algo” aconteça. Frases de Marx sobre o capitalismo pulularam nas tendas de debates, que também, paradoxalmente, encobriam uma curiosa “divisão de classe” e, por que não, até de “luta de classes”. Dizem que colocaram os indígenas, por exemplo, nos lugares mais “ruinzinhos”, enquanto grandes pensadores do “outro mundo possível” formam postos em lugares compatíveis com seu prestígio muito bem ganho com auxílios da Fundação Ford ou Rockefeller. Mas isso não é o eixo do argumento aqui. O principal é que, de novo, pareceria que muitos têm caído seduzidos pela “fórmula mágica” que pelo menos nos explica “na sua totalidade” nossa existência cotidiana, tranquilizante e reconfortante acerca da nossa condição “material” (o que parece um paradoxo). Os bancos, as multinacionais, os depredadores do meio ambiente, o capitalismo em si, condensam-se numa imagem bem definida e estereofônica da protesta por aqueles que, bem intencionados, aspiram a “outro mundo possível”. 

Tudo se apresenta como um filme interminável, com protagonistas que envelhecem, mas que se renovam em outros jovens ávidos de explicações sobre a realidade do mundo. Particularmente creio ter sido um fatal integrante de uma geração em que a imagem de Marx se desbotava frente à complexidade daquela sociedade que o analisou e criticou ao som da máquina têxtil. A “luta de classes” não explicava por que razão mulheres fugiam do Partido Comunista Francês para fazer parte da segunda onda feminista do século XX, ou por que o valor dos objetos tem adquirido capacidade simbólica de diferenciar subjetividades e pertenças a espaços de poder social. Lembro, a título de exemplo, como a militância de jovens comunistas no Uruguai dos anos 1980 tinha instaurada a moda da barba e os casacos de lã produzidos industrialmente pela bem sucedida microempresa “Manos del Uruguay”, casacos bem caros por sinal. Tinham coisas que já naqueles anos muitos jovens refletiam a respeito do capitalismo e da instrumentalidade da vida. Weber parecia explicar satisfatoriamente o auge e desenvolvimento do capitalismo na medida em que aparecia soldado a uma ética específica, a uma maneira de ser/estar no mundo, a uma espécie de “mentalidade” ou “sensibilidade”. E aí pareceria ter estado a chave para uma explicação mais complexa do fenômeno. Estar contra Marx era, então, uma maneira de redimensioná-lo.

O anticapitalismo atual, acompanhado da imagem de Marx em doses homeopáticas ou slogans de rápida digestão, tem “colonizado” ao “sujeito”, embora muitos acreditem no contrário. Refiro-me à narrativa que pretende explicar a realidade de maneira crítica do capitalismo. Aqui, em absoluto, pretende-se negar as características negativas que tal sistema produz nas suas consequências humanas imediatas. O tema é outro. A narrativa que acompanha este “anticapitalismo” tem um renovado ar de “superioridade” autoimposta. Para ele, o “sujeito” é uma reserva de idiotice manipulável ou um repositório de banalidades pequeno-burguesas. O “importante” está “escondido”, não ao alcance dos simples mortais, e seria isso o que se deve tornar transcendente. Obviamente, não se trata de argumentar a favor de dizer, muito submissamente, que o “sujeito também” se deve considerar, como espécie de exceção que não pode se negligenciar na hora de analisar e interpretar a realidade. Há aprendizados, também, que não se podem tirar pela borda pelo simples ressurgir de uma lógica emancipatória que domina no grito e na imposição. A lucidez requer se alimentar a cada dia, sem prejuízo de embarcar-se na necessidade de “ter que compartilhar” o agir existencial de alguns: as mobilizações em torno a Rio+20 geraram algo interessante na sua forma, mas não no seu conteúdo.

Marx e o sujeito

Voltando a Marx e ao “sujeito”, parece-me oportuno lembrar o economista Eugen Böhm-Bawerk e as suas críticas à explicação de Marx do capitalismo. Em grandes linhas, ele afirmava, no fim do século XIX, que o grande erro de Marx tem como origem o fato de que o valor das coisas não é intrínseco nem depende de quantas horas de trabalho ou capital tenha demandado, mas sim na subjetividade dos indivíduos. Gostaria, aqui, de explicar isso me valendo de simples práticas da vida cotidiana. Por exemplo, alguém trocaria uma nota de 10 reais por uma de 20? A provável resposta seria: depende! De fato, todos os intercâmbios comerciais se baseiam no intuito de que, o que para um vale 10 reais, para outro pode valer 12, e por isso o compram. Ou poderia valer 8 reais, e decidem não comprá-lo. Por exemplo, o pão que tem um padeiro na sua padaria custa 20 reais o quilo, mas na real não vale isso. Para você vale mais do que essa quantia, por isso é capaz de se desprender do dinheiro e pagá-lo. De fato, você não caminharia 8 quadras para trocar 20 reais por outros 20. A gratificação que lhe brinda o pão faz a diferença. Para o padeiro, acontece o mesmo, mas de forma inversa. Como tem a sua loja cheia de pão, mas a sua caixa registradora vazia, entrega-lhe o seu pão a troco de duas notas de 10 reais. Não existe nenhum intercâmbio desigual porque você não compraria o pão no valor de 500 reais, a menos que a diferença se compense com outros ingredientes, como sabor ou a escassez. Nesse caso, o pão valeria mais dos que os 500 lhe solicitam pagar. Por ser assim, teremos compreendido que a “troca de equivalências” não pode continuar sendo sustentada. Por isso estudiosos como Böhm-Bawerk encontraram que aquilo que para Marx eram simples “exceções” à sua teoria (de que o valor de troca estava determinado pela quantidade de trabalho incorporado), eram substanciais para estabelecer uma teoria sobre o valor. Em conclusão, é falso que o valor dos bens trocados seja fruto exclusivo do trabalho, é falso que ele seja a única característica que os faz passível de intercâmbio. Se for assim, sugiro que se tente vender gelo no polo norte! Finalmente, também é falso que o trabalho complexo seja igual ao trabalho simples, mas potenciado. Na economia moderna isso é substancial: quem pode estabelecer que duas horas de concerto de um cantor de rock tem a mesma “substância” que 50 horas de trabalho de um enfermeiro ou que duzentas horas de trabalho de um vendedor de loja? Ou quem estabelece que um show de Pink Floyd tenha a mesma “substância” de um show de Ivete Sangalo? Por qual dos dois shows desembolsa mais dinheiro tem toda a diferença. Cadê Marx em todo isso? Por isso deve-se “descolonizar” o “sujeito” nas mãos dos que atribuem a si a capacidade de compreensão do mundo, daqueles que brincam de “descolados” ao som de esconder sua fragilidade argumentativa sobre o presente.

Leia mais...

>> Carlos Gadea já concedeu entrevistas para a IHU On-Line. Confira: 

Como não perder ou sacrificar as conquistas da revolução? Eis o desafio. Publicada na edição número 252, de 31-03-2008; 

Os movimentos sociais e o lulismo. Publicada na edição número 352, de 29-11-2010. 

 

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