Edição 397 | 06 Agosto 2012

Um iconoclasta panenteísta

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Márcia Junges

Consideradas fantasias, as leituras místicas e alegóricas da Bíblia são criticadas por Spinoza. Apesar de Deus ser central na sua Ética, não se trata daquele ser judaico-cristão, pondera Maria Luísa Ribeiro Ferreira. O conhecimento natural é aquele que conduz as pessoas a Deus

Classificado “grosseiramente” como panteísta, rótulo que ainda hoje lhe é aplicado, Spinoza esgotava em Deus a totalidade do real. Contudo, explica a filósofa portuguesa Maria Luísa Ribeiro Ferreira, o termo panteísmo deve ser preterido em detrimento de panenteísmo, o que classificaria melhor a ontologia desse pensador. “Os vocábulos panteísmo e panenteísmo não fazem parte do léxico spinozano. Contudo, sustentar que os modos têm como causa primeira Deus, ao qual devem o ser e o existir, é algo que convém a Spinoza. O que não acontece com a afirmação de que as coisas são divinas”, explica a pesquisadora na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Entretanto, assim como os panteístas, Spinoza nega a transcendência em sua Ética, “sustentando um monismo e um imanentismo”. Outro estereótipo atribuído à filosofia de Spinoza é o ateísmo. Não se trata, contudo, de algo incorreto de se mencionar, contudo é “simplista fazê-lo sem ponderação”. Maria Luísa aponta a postura iconoclasta de Spinoza, desenvolvida de forma sistemática “em nome da razão”, mas sem “dispensar a categoria do sagrado. As concepções spinozanas sobre a religião chocaram seus contemporâneos “na medida em que contrastavam com o Deus pessoal e transcendente das grandes religiões”. E arremata: “o Deus de Spinoza é impessoal, impassível, determinado, necessário, imanente. Deus é a Natureza, e esta é a totalidade das coisas que existem”. A influência do pensador judeu, excomungado e limitado a publicar poucos textos sob sua assinatura em vida, pode ser encontrada em teólogos como Rudoph Bultmann e Robert Price, ainda que não reconheçam tal filiação.

Maria Luísa Ribeiro Ferreira é professora catedrática da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. De sua extensa produção bibliográfica, destacamos: O que os filósofos pensam sobre as mulheres (Lisboa: Centro de Filosofia, 1998); Também há mulheres filósofas (Lisboa: Caminho, 2001); A Dinâmica da razão na filosofia de Espinosa (Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian/Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica, 1997); e Uma suprema alegria (Coimbra: Quarteto, 2003). É membro do Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, da Sociedade Científica da Universidade Católica, do GT Benedictus de Spinoza, da Universidade Estadual do Ceará, no Brasil, do Seminário Spinoza de Ciudad Real, na Espanha, e da Association des Amis de Spinoza, na França.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Por que Spinoza é considerado o fundador do criticismo bíblico moderno?

Maria Luísa Ribeiro Ferreira – Tal como muitos filósofos seus contemporâneos, Spinoza interessou-se pelo método, encontrando nele um guia que o pudesse conduzir à verdade. E essa busca o levou a procurar uma hermenêutica suscetível de se aplicar eficazmente ao texto bíblico, separando os produtos da imaginação e enfabulação do que poderia ser aceito como verdade. O Tratado teológico-político (TTP, 1670) é uma das suas obras maiores e, como o nome indica, tem uma dupla preocupação: por um lado, demarcar os territórios da teologia e da filosofia e, por outro, refletir sobre a liberdade, nomeadamente a liberdade de expressão, mostrando que ela em nada interfere com o governo de um Estado mas, pelo contrário, era essencial para assegurar a paz e a estabilidade.

O TTP apresenta um método original de interpretação dos textos sagrados. Dado que o seu desconhecimento de grego impedia Spinoza de se debruçar sobre os Evangelhos, circunscreveu-se ao Antigo Testamento tentando nele uma exegese que permitisse detectar incongruências e separar o joio do trigo. Os pressupostos dessa leitura iconoclasta encontram-se no capítulo VII da referida obra, intitulado Da interpretação da Escritura.

Ao longo dos tempos os textos sagrados foram objeto de múltiplas interpretações. Spinoza analisa-as, recusando a maior parte delas. Assim critica as leituras místicas, alegóricas e midrashicas, classificando-as como fantasias. Contesta a perspetiva de Maimónides , que pretendia subordinar o texto bíblico à razão, mas também ataca a interpretação de Alphakar, a qual abdica da luz natural e nos propõe uma hermenêutica norteada pela fé (TTP, caps. VII e XV).

Cinco vias de leitura

A originalidade da metodologia spinozana assenta num preceito básico: a interpretação da Escritura por si mesma (TTP, cap. VII). A ele anexa cinco vias de leitura que devemos ter em conta: a via naturalista, que implica uma igualdade de tratamento entre a Natureza e os livros sagrados, considerando ambos como escrita divina e selecionando dos últimos aquilo que poderá interessar; a via histórico-contextual, que exige uma atenção às circunstâncias em que os acontecimentos ocorreram e ao modo como os diferentes livros foram selecionados para integrar o corpus canônico; a via psicológica, que atende à personalidade, formação intelectual e costumes dos diferentes autores; a via filológica, pela qual devemos ter em conta o universo linguístico dos judeus, analisando as expressões e termos utilizados; a via comparativa, que nos permite detectar incongruências entre os diferentes textos, levando-nos a interpretar alguns deles de um modo metafórico. Essa metodologia, que na altura foi atacada como herética, é hoje parte integrante dos estudos bíblicos e tais vias são aceitas como achegas hermenêuticas imprescindíveis.

IHU On-Line – Como pode ser compreendido o conceito de Deus sive Natura, que lhe rendeu a reputação de panteísta?

Maria Luísa Ribeiro Ferreira – Um professor meu de Filosofia Moderna costumava pedir aos seus alunos que selecionassem dos filósofos estudados a frase ou afirmação que sucintamente melhor os pudesse identificar. Se aplicasse este pedido a Spinoza certamente que iria buscar a equivalência Deus sive Natura. É uma identificação que aparece tarde na Ética, pois é pela primeira vez usada no prefácio do livro IV. O termo que conecta os dois substantivos é “seu” (“Deus seu Natura”) uma conjunção idêntica a “sive”, significando identificação. Embora a Natureza não figure nas definições fundantes da Ética ela impõe-se a partir do livro I, a parte da obra que trata de Deus e da sua relação com os restantes existentes. Essa relação é de imanência. Deus (def. VI) é imediatamente identificado com a causa sui (def. I) e com a Substância (def. III). Percebemos que, para o filósofo, Deus esgota a totalidade do real nada mais havendo neste do que a Substância e as suas manifestações e expressões – os modos. Devido a essa tese insólita que numa primeira leitura (grosseira) divinizava toda a Natureza equiparando-a a Deus, o pensador judeu foi classificado de panteísta, rótulo que ainda hoje é comum aplicar-lhe. É essa a interpretação de Pierre Bayle , que no seu Dictionnaire Historique et Critique (entrada “Spinoza”) amplamente difundiu.  A identificação de Deus e das coisas é apresentada nessa obra como uma hipótese absurda e perigosa, nomeadamente no que concerne à extensão, considerada parte integrante da divindade. De igual modo a aceitação de um deus identificado com o pensamento é motivo da indignação de Bayle, pois para além de confundir Deus e os homens é fonte de ilogismos e de contradições. 

O panteísmo de Spinoza tal como Bayle o apresenta é uma interpretação que não resiste ao confronto com os escritos do filósofo judeu. De fato este teve sempre o cuidado de evitar identificações entre a substância e os modos, situando-os em registros diferentes – a primeira é uma totalidade absoluta, infinita, eterna, e autossubsistente; os segundos são afeções da primeira e, como tal, são finitos, perecíveis e dependentes de causas particulares das quais recebem a existência.  Mesmo relativamente ao homem – um modo extremamente complexo – Spinoza nega que a Substância faça parte da sua essência (Et. II, prop. X). Muito menos sustenta que toda a realidade seja divina.

Considerando que o panteísmo identifica Deus e as coisas e que admite a divindade delas, verificamos que Spinoza não subscreve tal teoria. No entanto, em consonância com pensadores panteístas, o autor da Ética nega a transcendência, sustentando um monismo e um imanentismo. O imanentismo é um dos pontos fortes da ontologia Spinozana, pois Deus como potência (potentia) mostra-se numa sucessão de modos que entre si estabelecem relações de causalidade (Ética I, prop. XVI).

Ontologia panenteísta

Note-se que a Substância/Deus não é causa transitiva, mas sim causa imanente das coisas, visto que a essência delas é um conatus, um esforço para se manter no ser e o aperfeiçoarem. Todo o conatus é manifestação da potentia divina, integra-se nela e com ela mantém uma relação vertical. Com os outros modos o relacionamento é transitivo: “Deus é causa imanente mas não transitiva de todas as coisas” (Ética I, prop. XVIII).

Por tudo isso nos parece mais correto preterir o termo panteísmo quando aplicado a Spinoza, usando para classificar a sua ontologia a designação de panenteísta. Krause, um filósofo alemão dos séculos XVIII e XIX, vulgarizou o panenteísmo identificando-o com a presença das coisas em Deus. A tese que Deus está em tudo é por ele substituída pela defesa de que tudo está em Deus. 

Os vocábulos panteísmo e panenteísmo não fazem parte do léxico Spinozano. Contudo, sustentar que os modos têm como causa primeira Deus, ao qual devem o ser e o existir, é algo que convém a Spinoza. O que não acontece com a afirmação de que as coisas são divinas. 

Esta distinção entre Deus/Natureza e as coisas naturais leva a que demarquemos o conceito de Natureza da definição comum da mesma que a identifica habitualmente com o mundo, dando relevo à sua dimensão física. Na verdade, a Natureza spinozana não corresponde ao mundo. Muito mais ampla do que este, engloba tudo aquilo que existe, seja de índole material seja de cariz espiritual. Nela estão contidos homens, animais, plantas, rios, montanhas, mas de igual modo inclui ideias, perceções, afetos, almas. Todas essas realidades são expressão de Deus, um Deus quatenus, um Deus “enquanto que”, um Deus modificado, o que é diferente de um Deus em si mesmo.

Natura Naturans e Natura Naturata

Há um passo da Ética em que o filósofo aborda diretamente essa diferença, passo esse que poderia ser a melhor resposta para a acusação de panteísmo. Trata-se do escólio da proposição XXIX do livro I, onde Spinoza distingue a Natureza Naturante da Natureza Naturada – Natura Naturans e Natura Naturata. A Natura Naturans diz respeito a Deus, naquilo que lhe é essencial e constitutivo, ou seja, os atributos divinos que “exprimem uma essência eterna e infinita”. Essa Natureza infinita não tem partes, é pura potência, mobilidade absoluta que se manifesta através dos dois atributos que nos é dado conhecer: a extensão e o pensamento. A Natureza é Deus como causa primeira de tudo quanto existe, atuando “por dentro” das coisas, numa produtividade incessante e necessária.

A Natura Naturata, quando encarada na totalidade dos elementos/partes que a compõem, pode dizer-se infinita. Constituem-na uma multiplicidade de manifestações ou modos da divindade. Estes, quer sejam infinitos ou finitos, são sempre produções, afeções, partes. Já não estamos no registo da infinidade absoluta, mas no domínio de uma infinidade relativa, como é o caso dos modos infinitos, ou mesmo da finitude quando consideramos os diferentes modos particulares. Quando no já referido prefácio do livro IV o filósofo usa a expressão “Deus seu Natura” é a Natura Naturans que está em causa, visto que se trata do princípio dinâmico que tudo produz. Ao criticar as conceções antropomórficas que levam os homens a pensar que há uma orientação na ação divina, o filósofo avança com o conceito de um Deus Natureza que não age em vista de um fim mas em consequência da sua necessidade interna: “É que aquele Ente eterno e infinito a que chamamos Deus ou Natureza age em virtude da mesma necessidade pela qual existe” (Ética, IV, Prefácio).

Verificamos assim que há uma distância ontológica entre Deus, Natura Naturans e os seus modos, Natura Naturata. A Substância pode existir sem os modos, mas a recíproca não é verdadeira. “Deus seu Natura” é causa de si mesmo e é causa imanente de tudo quanto existe. Os modos particulares estão ligados a uma causa transitiva, situam-se num registro temporal, nascem e morrem, transformam-se e diluem-se, são perecíveis, num contraste com a eternidade de Deus. Substância e modos diferem de uma forma absoluta. A causa é diferente do seu efeito, portanto os modos são diferentes da Substância. Embora Deus se revele e manifeste através dos seus modos, há entre ele e estes um hiato, uma separação que impede que tomemos as partes pelo Todo. Daí a dificuldade em falar do panteísmo de Spinoza como de uma tese indiscutível.

IHU On-Line – Como suas proposições filosóficas impactam na concepção religiosa que se tinha na época e mesmo posteriormente?

Maria Luísa Ribeiro Ferreira – Há estereótipos que se colaram à filosofia de Spinoza. Um deles é o do seu ateísmo. Não que seja incorreto interpretá-lo dessa maneira. É, no entanto, simplista fazê-lo sem ponderação. O conceito de Deus que defende deu azo a interpretações díspares que vão do ateísmo à religiosidade extrema, o que demonstra sobretudo o desconhecimento do que o filósofo realmente escreveu. A interpretação de Bayle que acima referimos foi responsável pelo rótulo de ateu panteísta, mas um século depois, o movimento da Spinoza Rennaissance inverte esta leitura e a acusação de ateísmo perde bastante da sua radicalidade. Também alguns filósofos românticos, ao defenderem uma religiosidade cósmica apelaram para o filósofo judeu. Goethe , Lessing , Herder , Schlegel , Novalis  comungam de um universo interpretativo que faz do autor da Ética um Glaubensphilosoph, alguém que por ter levado o racionalismo às últimas consequências acabou por tornar evidente o carácter misterioso e inexplicável do real. É uma interpretação pouco credível que corresponde a uma adesão entusiástica ao pensamento Spinozano, mas que não atende à realidade das suas teses, interpretadas de um modo superficial e desviante. A ideia que os românticos tiveram de Spinoza é hoje pouco credível. Mantém-se, no entanto, como interrogação pertinente o tema do seu ateísmo. Qualquer leitor da Ética se apercebe que o tema de Deus é central, sendo trabalhado quer em si mesmo, quer nas suas expressões ou modos.

Spinoza é um homem do seu tempo. No universo significativo em que se move, a racionalidade é critério determinante. O método científico que nos propõe é a dedução geométrica à maneira de Euclides . O recurso à causa eficiente impõe-se como norma de verdade enquanto a causa final é recusada como gnosiologicamente inválida. Assim, a vontade de Deus, habitualmente apresentada como explicação última do que não conseguimos perceber, é por ele apelidada de “asilo da ignorância” (Et. I, Apêndice). Na mesma linha de desmitificação, o dom da profecia é menorizado, os profetas são acusados de abusar da crendice dos néscios, os milagres são denunciados como superstição (TTP I, II e V). Mas a atitude iconoclasta que Spinoza sistematicamente desenvolve em nome da razão não o leva a dispensar a categoria do sagrado. Pelo contrário, apela para ela quando entra nos domínios mais altos do conhecimento, dificilmente classificáveis com uma linguagem comum. Ao falar do amor Dei que acompanha a ciência intuitiva – essa etapa suprema da nossa realização gnosiológica e ética –, o filósofo recorre aos livros sagrados e ao termo glória: “Esse Amor ou essa Beatitude é chamada Glória nos livros sagrados, e não sem razão” (Et. V, prop. XXXV, scol.).

Um Deus “chocante”

Contrariamente aos seus contemporâneos que acentuam o antropocentrismo colocando o homem como senhor e dono da terra, Spinoza releva em primeiro lugar o Todo (Deus, Natureza, Substância) e desafia-nos a conhecê-lo, descobrindo nele o lugar que nos é devido. Se Deus é identificado com a Natureza nem por isso devemos abdicar do recolhimento, respeito e beatitude que habitualmente concedemos à divindade. A via do conhecimento – o caminho mais alto de realização – procura encontrar Deus nos fenômenos naturais que são a sua expressão mais evidente. O sábio e o homem comum têm vias diferentes para chegar a Deus. A filosofia e a ciência (que no século XVII ainda se confundem) ajudam-nos a aceder ao conhecimento de Deus/Natureza. Este se apresenta intrinsecamente estruturado por leis, cuja necessidade atesta a sua magnitude.

Spinoza não negou Deus e dele constantemente falou nas suas obras maiores de metafísica e de política – respectivamente a Ética e o Tratado teológico-político. Mas o Deus que nos apresenta não é o da tradição. Contrariando as diferentes tradições religiosas coevas, o Deus de Spinoza é impessoal, impassível, determinado, necessário, imanente. Deus é a Natureza, e esta é a totalidade das coisas que existem. Corpos e mentes, ideias e organismos decorrem do dinamismo próprio de uma Substância que se expande, são determinações da Natureza, são Deus quatenus (Deus enquanto que isto ou aquilo), ou seja, um Deus que se concretiza das mais variadas maneiras. A perfeição divina consiste na sua absoluta autonomia e independência, bem como na sua organização intrínseca e no seu total determinismo. Deus é um Todo, e não um sujeito. Falar de criação é absurdo, pois é pressupor um Deus imperfeito, ao qual algo se pode acrescentar.

O impacto das concepções defendidas por Spinoza sobre a religião foram chocantes no seu tempo na medida em que contrastavam com o Deus pessoal e transcendente das grandes religiões. Mas o filósofo distingue nitidamente dois conceitos de religião: a superstição, que critica pelo domínio que opera sobre os ignorantes e a verdadeira religião (vera religio) que no TTP aparece identificada com preceitos éticos necessários para uma vida de paz e tranquilidade cívica.

IHU On-Line – Por que Spinoza foi excomungado? Como a excomunhão da Sinagoga Portuguesa de Amsterdã impactou em seu pensamento e em sua vida?

Maria Luísa Ribeiro Ferreira – O rótulo de ateísmo começou cedo na vida do filósofo. Aos 24 anos de idade foi expulso da comunidade hebraica de Amsterdã, acusado de impiedade e privado do convívio dos seus. A fórmula do herem ou excomunhão a que foi sujeito ainda hoje nos impressiona pela sua dureza: 

“Com sentença dos Anjos, com ditto dos Santós, nos henhermamos, apartamos e maldisoamos e praguejamos a Baruch de Espinoza (...) com todas as maldisõis que estão escrittas na Ley. Maldito seja de dia e malditto seja de noite, maldito seja em seu deytar e malditto seja em seu levantar, maldito ele em seu sayr e malditto ele em seu entrar; não querera Adonai perdoar a elle (...). Advirtindo que ninguem lhe pode fallar bocalmente nem por escrito, nem dar-lhe nenhum favor, nem debaixo de techo estar com elle, nem junto de quatro covados, nem leer papel algum feito ou escrito por ele” (Texto da Excomunhão de Spinoza). 

Este exílio forçado não pareceu abalar o filósofo que, embora nunca se integrasse em qualquer grupo ou escola, fez amigos de outras confissões religiosas. Com eles se correspondeu ao longo da vida, expondo, esclarecendo e discutindo as suas teses. Estas foram sempre encaradas com desconfiança e daí as precauções que tomou, condensadas na divisa Caute, gravada num anel de sinete. Foi realmente cauteloso, pois enquanto vivo apenas publicou, assumindo-o como seu, um texto sobre Descartes  – Renati Des Cartes principiorum philosophiae pars I & II – seguido de umas breves Cogitata Mataphysica. O Tratado teológico-político apareceu anônimo, com uma referência deliberadamente incorreta ao editor. As reações que se lhe seguiram levaram o filósofo a nada mais publicar em vida.

IHU On-Line – Qual é a atualidade de sua afirmação de que a Bíblia é uma obra metafórico-alegórica que não necessariamente exprime a verdade sobre Deus?

Maria Luísa Ribeiro Ferreira – Segundo Spinoza é o conhecimento natural (e não o sobrenatural) que nos conduz a Deus. A revelação, os profetas, a religião, os cultos e as cerimônias, são meras mediações que servem o vulgo. Têm um papel positivo, pois permitem que todos alcancem Deus. Mas não levam a um conhecimento dele que só nos é plenamente acessível pelo estudo das leis da Natureza. Estas são verdades eternas, necessárias, regidas por um estrito determinismo. Deus não as impõe como um rei ou como um legislador, pois ele próprio se lhes subordina.

Spinoza veio-nos alertar para a necessidade de separar as águas, demarcando aquilo que é científico daquilo que o não é. A frontalidade com que o fez e a inovação das metodologias propostas desencadearam um coro de críticas, tanto por parte de judeus como de cristãos. As teses spinozanas patenteadas no TTP reforçaram a acusação de ateísmo, nomeadamente a contestação de Moisés como autor dos livros sagrados; a rejeição de Israel como povo eleito; a transformação da Escritura num conjunto de preceitos éticos; a desmitificação dos milagres; a visão negativa dos profetas, etc.

No que concerne à exegese bíblica, penso que Spinoza abriu caminho para algo que hoje é aceito pacificamente por crentes e não crentes: os textos sagrados não são livros de história, nem pretendem fazer ciência. Pessoalmente entendo que há muitas chaves de abordagem do real e que cada uma tem os seus códigos próprios aos quais interessa estar atento. A metáfora é uma via de acesso à verdade, tal como a ciência ou a estética.

IHU On-Line – Que pensadores foram influenciados por sua perspetiva crítica à Bíblia?

Maria Luísa Ribeiro Ferreira – Com Erasmo , Spinoza é considerado um dos fundadores do método histórico-crítico no que concerne aos textos bíblicos, desligando-se de uma abordagem religiosa e procurando interpretar os mesmos em função do contexto histórico, da personalidade dos seus autores, da análise filológica dos termos usados, do confronto intertextual. A sua influência fez-se sentir nos estudos bíblicos que de meados do século XVIII ao século XXI proliferaram na Europa. No que respeita à perspetiva histórica e embora o seu nome não tenha sido expressamente referido, certamente que a sua metodologia influenciou investigadores como Jean Astruc  (meados do séc. XVIII), Johann Salomo Semler  (1725–91), Johann Gottfried Eichhorn (1752–1827), Julius Wellhausen  (1844–1918) bem como os investigadores bíblicos da Escola de Tübingen, sob a liderança de Ferdinand Christian Baur  (1792–1860), na sequência dos quais surgiram trabalhos relevantes como os de Ludwig Feuerbach  e David Strauss .

A proposta spinozana de leitura secular dos textos sagrados, anulando o sobrenatural e tentando encontrar uma explicação racional para os milagres, é continuada por teólogos dos séculos XX e XXI. É o caso de Rudolph Bultmann  (1884-1976) e Robert M. Price (1958-) que procedem a uma desmitologização dos textos sagrados aplicando uma interpretação naturalista ao Novo Testamento, nomeadamente à figura de Jesus. O método que usam leva a uma leitura das Escrituras que rejeita nelas os elementos “míticos”. Em New Testament and mythology and other basic writings, e Myth & Christianity: An inquiry into the possibility of religion without myth, Bultmann não refere Spinoza, mas segue trilho spinozano que aplica aos Evangelhos, considerando que neles o elemento sobrenatural é irrelevante. Price identifica-se como um “cristão ateu”, cético quanto à existência real de Jesus que considera secundária, pois se atem à sua mensagem. Em The God who wasn't there, sustenta o caráter mítico da existência de Jesus, sugerindo que os primeiros cristãos construíram um modelo divino a partir dos mitos dionisíacos da morte e ressurreição. Um e outro podem ser legitimamente considerados discípulos do filósofo judeu no que concerne à hermenêutica bíblica, embora não reconheçam explicitamente tal filiação.

IHU On-Line – Como podemos compreender a afirmação de Spinoza de que a substância é uma causa de si mesmo, isto é, uma causa sui?

Maria Luísa Ribeiro Ferreira – O conceito de Substância integra o conjunto das oito definições que abrem a Ética. Seis delas são introduzidas pela mesma expressão, dando a falsa ideia que se trata de um modo pessoal de apresentar os elementos fundadores tal como foram concebidos pelo seu autor – por X… ou por Y… entendo... (per ….. intelligo…). Na verdade, estas definições obedecem ao princípio da verdade dada, algo que se impôs ao filósofo como indubitável, tal como se imporá a quem o quiser acompanhar no percurso que seguiu. São verdades eternas que ganham o estatuto de universalidade, constituindo os instrumentos de base de um trabalho ético e gnosiológico que todos são convidados a fazer. Não se trata de uma axiomática, mas dos alicerces de um sistema que ao longo da obra se vão progressivamente explicitando. A Ética é o preenchimento e enriquecimento destas noções primeiras, transformando-as de nominais em reais, ou seja, mostrando que não são meras palavras, pois implicam uma correspondência com o real.

A Substância aparece na sequência da definição inicial de “Causa de si.” Ambas apelam para a sexta definição que nos fala de Deus. Spinoza começa por nos apresentar algo que é causa de si mesmo, portanto que não tem causa na medida em que se constitui numa pura imanência justificando a existência a partir de si mesmo. Muitas vezes ao longo da Ética Spinoza irá usar a equivalência entre causa e razão (causa sive ratio). Aqui somos colocados perante a evidência de um ser que é razão de si mesmo e no qual a essência e a existência coincidem. Se queremos perceber a noção de substância tal como o filósofo no-la apresenta neste início não podemos esquecer a causa sui para a qual diretamente remete: “Por substância entendo o que existe em si e por si é concebido, isto é, aquilo cujo conceito não carece do conceito de outra coisa do qual deva ser formado” (Et. I, def. III). Imediatamente percebemos que o conceito se situa em dois registros – ontológico e gnosiológico. Sendo a Substância causa de si mesma, a explicitação/exploração das suas propriedades bastam para que a possamos conhecer. A autonomia e totalidade que a caracterizam são reforçadas no mesmo livro, como podemos constatar na proposição XIV, onde já depois da identificação entre Substância e Deus, nos é dito que constituem todo o real: “Para além de Deus não pode ser dada nem concebida nenhuma substância”, pois Deus/Substância é a explicação última de todas as coisas sem a qual não poderiam ter existido nem ser compreendidas. E a proposição seguinte reforça o sentido de totalidade da Substância afirmando que tudo quanto existe, existe (está) em Deus.

Deus absolutamente infinito

A definição VI consagra o cruzamento e, em alguns casos, a identificação de várias das definições anteriores, definindo Deus como Substância e identificando-o como ser absolutamente infinito. Dos infinitos atributos que constituem a Substância apenas dois nos são acessíveis: o pensamento e a extensão. Infinitos no seu gênero, cada um destes dois atributos permite aceder a um aspeto do Deus/Substância. 

Logo nas primeiras definições, nomeadamente com a identificação entre Causa sui, Substância e Deus bem como depois de ter sido estabelecida a relação entre Substância, atributos e os modos, percebemos como o Deus de Spinoza é diferente da tradição hebraica e cristã. De fato coloca-se num registro eminentemente filosófico e surge como explicação de si mesmo e de tudo quanto existe. É um Deus impessoal, impassível, absolutamente determinado, características que atestam a sua perfeição. A eternidade do Deus/Substância surge na última das definições iniciais como sinônimo da necessidade intrínseca: “Por eternidade entendo a própria existência enquanto concebida como sequência necessária da mera definição de coisa eterna” (Et. I, def. VIII). 

IHU On-Line – Tomando em consideração a ideia da substância como causa sui, como o conceito clássico de Deus é posto em questionamento por Spinoza?

Maria Luísa Ribeiro Ferreira – Apesar de ser denominado Deus, a substância de Spinoza é radicalmente diferente do Deus judaico-cristão. Como essa concepção impacta na religião tradicionamente instituída? Pelo que foi dito nas questões anteriores, podemos concluir que Spinoza atribui a Deus um papel central, mas que, no entanto, o considerou de um modo peculiar. Logo no livro I encontramos indicações precisas quanto a este conceito, implicitamente contido nas definições I e III que nos falam da causa sui e da substância. Deus é explicitamente apresentado na definição VI: “Entendo por Deus um ser absolutamente infinito, isto é, uma substância que consta de infinitos atributos, dos quais cada um exprime uma essência eterna e infinita.”

Dificilmente reconhecemos nesta apresentação as características habitualmente atribuídas à divindade. É verdade que Spinoza se coloca no âmbito da filosofia, mas outros filósofos seus contemporâneos também o fizeram e a versão que nos dão de Deus mantém muito da teologia tradicional. É o caso de Descartes, que, embora nos apresente Deus como substância, não prescinde de lhe atribuir qualidades que o permitem identificar com o Deus judaico-cristão. Tal não acontece com o Deus spinozano, trabalhado no livro I. Aqui há a preocupação de colocar Deus num plano estritamente racional, sendo impossível confundi-lo com qualquer divindade proposta pelas diferentes religiões. De fato, a Substância explicita-se e concretiza-se ao longo do livro I, mostrando-se na infinitude dos seus atributos e modos, revelando a ordem e a necessidade que intrinsecamente a enformam. Constituem-na infinitos atributos que são também princípio da sua inteligibilidade. Os atributos permitem não só a existência da Substância – que sem eles seria um conceito vazio –, mas também sua compreensão por parte dos homens.

Somos colocados num universo organizado e nele não há hiatos. A imediatez divina concretiza-se em sucessões causais que, por sua vez, nos ajudam a compreendê-la e que de certo modo a constroem. A preocupação dominante é traçar relações entre Deus e o mundo, sendo este constituído por uma infinidade de modos. O objetivo maior é dar-nos uma visão de Deus, à maneira dos geômetras. 

Ilusão finalista

Um dos textos que melhor nos ajuda a perceber como o Deus/Substância de Spinoza é radicalmente diferente da divindade judaico-cristã é o apêndice do livro I da Ética. Trata-se de um texto de denúncia em que o filósofo combate alguns dos preconceitos que para ele obscurecem um são conhecimento de Deus. Spinoza pretende submetê-los ao exame da razão (ad examen rationis) e alerta-nos sobretudo para dois: o antropomorfismo e o finalismo. Em seu entender, a perspetiva teleológica é grandemente responsável por erros e deturpações do conceito de divindade. É errado pensar que há um plano de Deus e que as coisas existentes são a concretização desse plano.

A ilusão finalista processa-se em três níveis: em Deus, que é antropomorfizado e pensado à maneira do homem; no homem, que é concebido como livre e dotado de vontade; no mundo, que o vulgo pensa ter sido criado para seu proveito próprio. Os homens pensam o Universo à sua medida, colocam-se no centro da criação e pretendem ter nela um estatuto privilegiado. O filósofo nega a criação e substitui-a pela manifestação necessária da Substância que se exprime em modos. Neles não há subordinação a um desígnio sendo possível explicá-los sem recurso às causas finais.

Spinoza valoriza a causalidade eficiente e a linguagem matemática. Esta aparece como “uma outra norma de verdade”, prescinde das causas finais e centra-se nas essências eternas. A humanidade ficaria privada de uma explicação fidedigna do real “se a Matemática, que não se ocupa dos fins, mas apenas da essência das figuras e respetivas propriedades, não desse a conhecer aos homens uma outra norma de verdade” (Et. I, Ap.). A matemática é apresentada como o tipo de discurso que talvez não cative todos, mas que pelo menos tem o dom de a todos convencer, impedindo os dislates da imaginação.

O apêndice combate os teólogos no seu próprio terreno, desconstruindo os seus argumentos e mostrando que alguns deles se viram mesmo contra a onipotência divina que era suposto defenderem. É o caso da criação que, a ser aceite, implicaria um Deus carente do mundo. Os teólogos atribuem todas as ocorrências à vontade de Deus, esquecendo-se deliberadamente que os fenômenos têm uma explicação natural. É fácil perceber como uma concepção deste tipo abalou as diferentes confissões religiosas seiscentistas. Tanto mais que, aliada a esta perspectiva metafisicamente iconoclasta, o filósofo também inicia no apêndice referido um ataque a alguns preconceitos éticos decorrentes da conceção de um Deus pessoal e criador. Assim, analisa os conceitos de bem e de mal, de mérito e de pecado, de louvor e de censura, considerando-os como “modos de imaginar.” Denuncia, sobretudo, o aproveitamento político que deles é feito, alertando os homens para o poder abusivo dos teólogos que mantêm o povo na ignorância.

Tempo e eternidade

Os restantes livros da Ética continuam a falar de Deus, um Deus modificado que se manifesta nas mentes, nas ideias e nos corpos particulares. As relações intermodais são objeto de análise nos livros II, III e IV. No livro V Deus volta a ser diretamente abordado, colocando-se agora como termo de um processo de salvação que só aos sábios é dado alcançar. Já não se fala da Substância que se revela originando os modos, mas sim dos modos – no caso particular dos modos humanos – que buscam Deus. É um percurso com diferentes etapas, culminando no Amor Intellectualis Dei, a meta suprema de realização intelectual e ética.

O ponto de vista do homem implica o tempo. O ponto de vista de Deus situa-se na eternidade. Para alcançarmos esse ponto de vista, temos que ascender no itinerário gnosiológico, abandonando a imaginação, ultrapassando a razão e colocando-nos no domínio da ciência intuitiva. É esse gênero de conhecimento que nos permite integrar na plenitude divina, participando do amor com que Deus se ama a si mesmo e nos ama, como é afirmado em Et. V prop. XXXVI. Verificamos, assim, que o conceito de Deus Natureza é complementado com o de um Deus Amor, glória da qual participamos, como é referido no escólio desta proposição.

IHU On-Line – Qual é a atualidade da obra spinozana?

Maria Luísa Ribeiro Ferreira – Enquanto professora de filosofia moderna procuro ler os filósofos destacando neles temáticas que ainda hoje nos interpelam. De Spinoza destaco três tópicos que particularmente me interessam: a atenção à Natureza, a valorização da vida e a razão construída a partir do desejo.

Relativamente à primeira questão, Spinoza apresenta-nos um modelo que integra o homem no Todo. Contra o antropomorfismo veiculado pela filosofia grega pós-socrática, reiterado pelo judeu-cristianismo e exacerbado por Descartes, o filósofo defende a harmonia do homem com a Natureza, indo buscar a esta o critério decisivo para a construção de uma ética. O “Deus seu Natura” por ele defendido exige uma reviravolta no nosso modo habitual de pensar, pois a Natureza coloca-se como ponto de partida para a orientação das nossas vidas, o que implica uma mudança de hábitos. A nossa dependência relativamente à Natureza surge em Et. IV, prop II, onde somos apresentados como partes de um Todo, sujeitos portanto a paixões: “Padecemos enquanto somos partes da Natureza, que não pode conceber-se por si sem as outras partes.” No capítulo XVI do Tratado teológico-político a potência é considerada fonte de direito, destituindo-se este de qualquer fundamento transcendente. No prefácio do livro III da Ética combate-se a ideia de uma relação do homem com a Natureza como a de “um império num império”. Tudo está ligado, há uma interconexão, uma rede de relações que faz com que tudo tenha a ver com tudo. 

Outro tópico de grande interesse e atualidade é a valorização da vida. Num passo emblemático Spinoza escreve: “Um homem livre em nada pensa menos que na morte e a sua sabedoria não é uma meditação de morte mas de vida” (Et. IV, prop. LXVII). Não é suposto que o sábio se entregue a pensamentos que ponham em causa a sua sobrevivência, ele não se sente atraído pelo sacrifício ou pela ascese; não cultiva a angústia nem pensamentos obscuros que o possam deprimir. Procurando ultrapassar as paixões tristes coloca a libertação como meta a alcançar. A vida humana tem uma dimensão diferente das outras vidas, pois “não se define só pela circulação do sangue e outras coisas que são comuns a todos os animais, mas acima de tudo pela razão, verdadeira virtude e vida da mente” (TP, V, § 5). De onde também as conotações políticas do termo vida quando aplicado aos homens. Estes procuram melhorar as suas condições de vida unindo forças e construindo sociedades civis: “nada é mais útil ao homem do que o homem” (Et. IV, prop. XVIII, scol ). Viver melhor é viver segundo as leis do conatus e estas incluem a sociabilidade. O desenvolvimento harmonioso do conatus individual leva a leis sociais racionais. É a sociedade que dá ao conatus a possibilidade de se desenvolver. A vida nos indivíduos processa-se nesta dialética entre a sua abertura, a sua autonomia e a sua dependência ou ligação com o Todo. Mas se a convivência social e a dimensão política são fatores importantes de realização, elas não bastam para alcançar a plenitude. Esta é designada por Spinoza como “a verdadeira vida” e tem a ver com a virtude e com o conhecimento verdadeiro.

O desafio das paixões

Spinoza é sempre apresentado como um filósofo racionalista. Contudo, o seu conceito de razão é dinâmico, construindo-se por um trabalho progressivo de afirmação e de conquista. A razão spinozana vai-se constituindo num diálogo permanente com outras instâncias, nomeadamente com as paixões e com o desejo. Este é, como dissemos, a essência dos homens, a força que os habita e que gradualmente consciencializamos. Quando o desejo é trabalhado e orientado pela razão aumentamos o ser próprio, o que nos enche de alegria. Racionalizamos o desejo percebendo nele a existência de etapas que nos levam das paixões tristes às alegres. São estas que devemos cultivar, pois por elas somos conduzidos à beatitude. Não podemos fugir às paixões dado que são inerentes à condição humana. O desafio que se nos levanta é o de sabermos conviver com elas, gerindo-as da melhor forma, jogando paixões fortes contra paixões fracas, de modo a direcioná-las para algo que nos dê tranquilidade e nos faça felizes. O desejo desenvolve-se quer a partir do seu dinamismo natural quer das afeções a que é sujeito. Nele está virtualmente contida a potência máxima a que podemos aceder. A razão é o momento desiderativo mais alto no qual o desejo se realiza plenamente. É da energia primordial do nosso conatus (o desejo é o conatus tornado consciente) que decorrem os conceitos morais, a apetência para o conhecimento e a aspiração à felicidade suprema. A energia dos indivíduos, constitutiva do processo desiderativo, comanda o processo de reforma ou emenda do entendimento, um desafio que se coloca a cada homem. A razão é uma vivência específica dessa energia, convivendo com o desejo e alimentando-se dele. 

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