Edição 198 | 02 Outubro 2006

O riso no medievo como forma de resistência

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IHU Online

A entrevista que segue, concedida pelo Prof. Dr. José Rivair de Macedo, foi inspirada em sua obra Riso, cultura e sociedade na Idade Média. Porto Alegre: EDUFRGS/UNESP, 2000. Nela, Rivair menciona que, ao contrário do que se pensa, o riso tinha papel muito importante no medievo, e assumia formas diversas. Além disso, o riso coupava um espaço de contestação e resistência, explica o historiador: “De um modo geral, contrariando os preceitos calcados na idéia da renúncia, da ascese, da culpa e do pecado, as manifestações de vitalidade e alegria da cultura profana medieval, sempre aberta à fantasia e à evasão, ao prazer e à festividade, indica-nos que já naquele momento o riso era um veículo de expressão da liberdade”.

>Macedo é professor no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UFRGS. Graduado em História pela Universidade de Mogi das Cruzes (UMC), é doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP) com a tese Tolosanos, cátaros e faidits: conflitos sociais e resistência armada no Languedoc durante a Cruzada Albigense. Obteve pós-doutorado pela Universidade Nova de Lisboa, Portugal. É autor de diversos livros, entre os quais citamos A Mulher Na Idade Media. 5. ed. São Paulo: Contexto, 2002 e Belo Monte: uma história da Guerra de Canudos. São Paulo: Expressão Popular, 2004. Com o Prof. Dr. José Alberto Baldissera, concedeu a entrevista A Idade Média através do cinema à edição 153 da IHU On-Line, de 29-9-2005, por ocasião da abertura do evento Idade Média e Cinema, em 3 de setembro daquele ano. No evento Idade Média e Cinema II, Macedo será o debatedor do filme Eric, o viking, em exibição em 07-10-2006, das 8h30min às 12h.

IHU On-Line – Qual era o lugar ocupado pelo riso na sociedade ocidental medieval?

José Rivair de Macedo
– Em geral, o que se imagina é que o riso não tivesse ocupado lugar algum naquela sociedade ou desempenhado qualquer papel nos tempos medievais. Trata-se, entretanto, de um grande equívoco, motivado possivelmente por nossa imagem exageradamente fiel aos preceitos que a cultura cristã imprimiu na cultura ocidental. Seria estranho pensar que a sociedade medieval, cujas formas de comunicação e de sociabilidade foram tão marcadas pelo gesto, pela palavra e pela imagem, não tivesse reservado papel de destaque às formas de expressão do risível. A idéia de que Cristo jamais riu, defendida por certos pensadores cristãos do início da Idade Média, como João Crisóstomo , no  século V, e Jonas de Orléans, no século IX,  já tinha sido abandonada no século XII, e o riso passou a constar mesmo em textos de natureza didática e edificante. Fora da esfera da Igreja, as manifestações do cômico sempre estiverem presentes, nas festas, textos, composições musicais e imagens da cultura laica. Vigorava aqui, talvez, o riso franco da gargalhada, tão presente em textos de origem profana, como os fabliaux do século XIII e as comédias e farsas do século XV. Havia ainda o riso das festas dos loucos e dos charivaris que vez por outra tomava conta das ruas, praças e inclusive das igrejas – válvulas de escape necessárias para atenuar a contínua pressão moral que impunha a abstinência, a resignação e o arrependimento.
Assim, dentro ou fora dos domínios da cultura clerical, as marcas do risível comparecem nas sátiras, nas paródias e inclusive em formas de expressão grotescas, indicando a persistência de uma perspectiva carnavalesca nos meios laicos iletrados. É o que se pode depreender das imagens disformes e caricatas inseridas em manuscritos para representar as mascaradas das festas de inverno, dos provérbios e expressões proverbiais debochados que punham em causa a seriedade da moral cristã, denunciando por vezes a hipocrisia dos clérigos.

IHU On-Line – Como o riso se articulava com as festividades religiosas? Qual era sua relação como instrumento pedagógico no exercício da pregação?

José Rivair de Macedo
– Por aqui se poderá avaliar o caráter ambíguo do riso e da risibilidade na cultura medieval. De um lado, nos séculos XIII-XV transcorriam nas cidades as “festas dos loucos”, comemorações semi-religiosas condenadas reiteradamente pela Igreja, realizadas entre os meses de dezembro e abril, em que o riso, a comilança, a bebedeira e o escárnio tinham livre curso. Na origem do carnaval moderno, as “festas dos loucos” antecediam a quaresma e a semana santa, períodos de contrição e de resignação espiritual, e a liberação do riso e dos excessos constituíam um contraponto necessário ao rigor moral imposto pelas normas cristãs. De outro lado, a partir do século XII, integrantes da Igreja envolvidos com a pregação e com a educação perceberam o potencial educativo do riso, utilizando a comicidade como um recurso na transmissão de mensagens cristãs. Data deste momento o aparecimento de gêneros textuais que visavam à edificação dos fiéis, como os exempla, contos humorísticos curtos que deviam ser inseridos nos sermões. A idéia era valer-se do riso para execrar os comportamentos condenáveis e ridicularizar os pecadores incorrigíveis.

IHU On-Line – De que forma é possível entender a reação do Venerável Jorge, personagem do romance O nome da Rosa, de Umberto Eco, condenando o riso por matar o temor?

José Rivair de Macedo
– O personagem Jorge de Burgos, que alguns imaginam ter sido criado por Umberto Eco  em homenagem ao escritor Jorge Luiz Borges  - para quem o labirinto constituiu uma fascinante metáfora do saber - representa uma das vertentes mais conservadoras da Igreja medieval: a vertente monástica beneditina. Não obstante o riso ter sido apropriado como instrumento pedagógico na pregação dos fiéis, os mosteiros de orientação beneditina é que apresentaram as maiores restrições ao riso e à risibilidade. Na própria Regra de São Bento, redigida no princípio do século VI, consta que: “Os gracejos frívolos e as conversas ociosas e provocadoras de riso, condenamo-las a serem excluídas para sempre de todos os lugares e não permitimos ao discípulo abrir a boca para tais conversas”. Aqui, o riso é encarado como fator de dissolução da rígida disciplina imposta aos monges. Parece ser essa a posição de Jorge de Burgos, e o romancista pune-o, apresentando-o como um velho muito sábio, mas cego, exatamente oposto de Guilherme de Baskerville, também vinculado ao meio monástico, mas um franciscano “progressista”, adepto da lógica e do experimentalismo, que vê mais longe ao usar óculos. 

IHU On-Line – Como o riso medieval foi registrado pela arte sacra?

José Rivair de Macedo
– Também nas formas artísticas cristãs o riso assume tons, cores e matizes. Na arte religiosa oficial, inscrita na estatuária das catedrais, na iluminação dos manuscritos ou na pintura mural dos afrescos, as cenas risíveis em geral estão associadas com o demônio, que, invariavelmente, se mostra rindo nos tímpanos das catedrais. No século XIII, quando aparece pela primeira vez na Catedral de Reims a expressão do riso positivo, os anjos sorriem discretamente. A gargalhada, expressão do excesso, da pode-se encontrar, todavia, nas ilustrações marginais inseridas nas colunas dos manuscritos, onde os copistas e iluminadores, por vezes, expressaram visão de mundo distinta da oficial, marcada pelo riso de sátira e do deboche. Aí se podem ver asnos paramentados de clérigos, ensinando ou realizando missas, macacos montados em ursos, homens desfigurados em atitudes grotescas, enfim, um “mundo às avessas”  desordenado, espécie de válvula de escape da seriedade habitual do mundo idealizado pela cultura cristã.

IHU On-Line – Poderíamos dizer que o riso no medievo serviu como uma forma de resistência, além de manifestação de expressão e liberdade?

José Rivair de Macedo
– Certamente. Mesmo tais posições não tendo sido colocadas expressamente, e intencionalmente, pelos escritores e artistas do medievo, a multiplicidade de percepções do riso e da risibilidade passava pela possibilidade, ou não, de expressar sentimentos, pontos de vista e gestos mal vistos ou condenados pela instituição oficial cristã.  De um modo geral, contrariando os preceitos calcados na idéia da renúncia, da ascese, da culpa e do pecado, as manifestações de vitalidade e alegria da cultura profana medieval, sempre aberta à fantasia e à evasão, ao prazer e à festividade, indica-nos que, já naquele momento, o riso era um veículo de expressão da liberdade. 

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