Edição 198 | 02 Outubro 2006

A Cocanha como utopia e Dante como poeta do Absoluto

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IHU Online

A utopia da Cocanha, país imaginário criado na Idade Média, “representava, no plano da imaginação, a superação das limitações da sociedade medieval”, disse o medievalista Hilário Franco em entrevista à IHU On-Line.

Hilário Franco afirma que essa criação medieval baseia-se, como toda utopia, na “imagem invertida de certa realidade histórica”. Outras utopias encontraram espaço na história da huamnidade, como a ilha da Utopia, de Tomás More, na Idade Moderna, e a sociedade comunista de Marx. Franco comenta também a respeito da importância de Dante Alighieri, por ele chamado de Poeta do Absoluto. Confira detalhes na entrevista que segue, concedida interativamente por e-mail.

Hilário Franco Junior é professor da Pós-Graduação do Departamento de História da USP. È doutor em História Social pela mesma universidade com a tese: As peregrinações a Santiago de Compostela e a formação do feudo-clericalismo periférico na península ibérica., 1982. Possui Pós-Doutorado pela École des Hautes Études en Sciences Sociales. Escreveu, entre outros livros, Cocanha. A História de um país imaginário. São Paulo: Companhia das Letras, 1998 e O ano 1000. Tempo de medo ou de esperança?. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. 

IHU On-Line – A primeira questão é quase inevitável: estudamos a Idade Média no nosso país, que não conheceu esse período histórico. Por que ela representou o nascimento do Ocidente, como o senhor diz no título de um de seus livros?

Hilário Franco
– Sim, o Brasil é um país de cultura ocidental, fala uma língua européia, segue majoritariamente uma religião desenvolvida na Europa, tem instituições políticas, econômicas e culturais originárias daquele continente. Portanto, para bem compreender nossa própria história e identidade é preciso conhecer não apenas a trajetória mais recente, mas também nossas raízes longínquas. Contudo, é preciso não dar conotação utilitária ao estudo da História. Esta é um precioso material, talvez o maior de todos, para alimentar intelectualmente o ser humano. Qualquer reflexão, sobre qualquer tema, precisa ser dimensionada historicamente. É assim que se percebe não existir verdades definitivas e incontestáveis, não haver superioridades étnicas, culturais ou religiosas. E essa é, evidentemente, uma lição preciosa.

IHU On-Line – Por falar em verdades definitivas, é possível empregar o termo utopias com relação à Idade Média? Nesse caso, quais foram as principais utopias medievais?

Hilário Franco
– Bem, quanto à palavra utopia sabe-se que foi criada pelo humanista inglês Tomás More  em 1516, porém no sentido largo de projeto de sociedade ideal ela pode ser utilizada com relação a épocas anteriores, porque o homem nunca deixou de ser crítico ao próprio presente e de sonhar com uma organização social diferente, considerada superior àquela então vivida. Claro que esses sonhos coletivos eram (e são) construídos pela negação ou inversão da realidade histórica da época que os produz. E chega-se assim a um paradoxo interessante: toda utopia imagina pôr fim à história, alcançar a perfeição, sem perceber que o próprio conceito de perfeição é histórico. Portanto, falando da Idade Média, naquele período sonhava-se com situações que superassem as dificuldades concretas de então. A vida monástica era pensada como uma utopia, uma comunidade de homens ou mulheres que isolada do resto do mundo podia levar uma vida de pureza, paz, justiça e ordem; o monge via-se como uma espécie de Adão antes do pecado, homem inocente vivendo perto de Deus. O Império de Preste João, vasto território que se imaginava existir no Oriente, reuniria diferentes povos vivendo em harmonia sob o comando daquele personagem ao mesmo tempo rei e sacerdote; o oposto, portanto, do que ocorria na Europa de então, dividida e em conflito constante entre imperador e papa, que disputavam o poder único e supremo. A Cocanha  seria o país da abundância, sonho compreensível na Europa medieval que tinha problemas para produzir alimento suficiente para sua crescente população.     
      
IHU On-Line – No que consistia exatamente a Cocanha? O que essa utopia expressava da sociedade e do imaginário da Idade Média?

Hilário Franco
– Cocanha é o nome de um país imaginário descrito por um poema francês de meados do século XII e que seria depois traduzido e adaptado em várias línguas, além de versões iconográficas, o que mostra que sua mensagem sensibilizava os europeus de então. A descrição do país é sucinta, porém eloqüente. Ali existe um rio de vinho, metade tinto, metade branco. Ali chove pudins. Ali há gansos assados que voam em direção à boca das pessoas. Ali as casas são feitas de peixes, salsichas e toicinho. Como a insuficiência alimentar não era o único problema da sociedade concreta, na Cocanha roupas e calçados são distribuídos gratuitamente. Contra o duro trabalho cotidiano, aquele país propõe um calendário só de domingos e festas. Contra a rígida moral cristã, há liberdade sexual total. Contra a própria condição humana de envelhecimento e morte, há uma fonte da juventude. Ou seja, a Cocanha representava, no plano da imaginação, a superação das limitações da sociedade medieval.    

IHU On-Line – É possível comparar a utopia da Cocanha com as utopias da modernidade ?

Hilário Franco
– Como disse na segunda resposta, toda utopia é a imagem invertida de certa realidade histórica. Então, se a Cocanha é criação da Idade Média, ela respondia às necessidades da sociedade medieval; se a ilha da Utopia, de Tomás More é criação da Idade Moderna, ela respondia às necessidades da sociedade moderna; se a sociedade comunista de Marx é criação da Revolução Industrial, ela respondia às necessidades da sociedade industrial. Mas entre as utopias de diferentes épocas é possível encontrar alguns pontos comuns, pois certos desejos parecem estar sempre presentes em determinados grupos sociais independentemente do momento histórico. Para ficar com apenas um elemento, as três utopias citadas põem fim à carestia alimentar, embora por caminhos diferentes, a prodigalidade da natureza na Cocanha, o trabalho duro na Utopia, a divisão igualitária da produção no comunismo. 

IHU On-Line – Mudando de assunto, por que o senhor considera Dante Alighieri o Poeta do Absoluto?

Hilário Franco
– Sempre é difícil, senão impossível, sintetizar um personagem tão rico e multifacetado como Dante  em uma fórmula simples. Quando o defini como Poeta do Absoluto, foi para indicar que os grandes temas que tratou foram colocados menos na esfera humana que na esfera divina, absoluta. Em sua obra, cada assunto visava muito além de sua aparência imediata. Por exemplo, ele fala no amor que tem por Beatriz para na verdade referir-se ao Amor divino, ele fala de seu exílio pessoal de Florença para evocar o Exílio do gênero humano na Terra desde a expulsão do Paraíso. 

IHU On-Line – Por que a Divina Comédia tem esse nome? “Comédia” é por oposição ao gênero tragédia?

Hilário Franco
– Exatamente. O título original é na verdade apenas Comédia, o adjetivo foi acrescentado um pouco mais tarde, em 1373, por outro grande poeta italiano, Giovanni Boccaccio , para indicar o assunto e a qualidade do poema.  Usado pela primeira edição impressa, em 1555, esse título acabaria por se impor. Tragédia, explica o próprio Dante em outro texto, designa uma história que começa bem e acaba mal, ao contrário de comédia, que começa mal e acaba bem. E essa é a trajetória do próprio Dante no seu poema, que principia com ele perdido em “floresta escura”, atravessa os vários andares do Inferno, passa pelos diferentes níveis do Purgatório para enfim alcançar o Paraíso e nele ir subindo até ter a visão de Deus.

IHU On-Line – De que forma a Divina Comédia retrata o mundo medieval e a mentalidade daquela época?

Hilário Franco
– A estrutura do poema é a estrutura do Além tal como ele era concebido na época em que Dante escreveu a obra, entre 1304 e 1321. Nessa viagem imaginária pelo Inferno, Purgatório e Paraíso, Dante encontra centenas de personagens então bem conhecidos e faz descrições e comentários que nos informam sobre as atividades e o pensamento deles. É claro que não se trata de relato isento, e sim de maneira do poeta criticar ou elogiar certas pessoas, colocando-as no Inferno ou no Paraíso. É, portanto, uma visão pessoal nos detalhes, mas que, nas suas linhas essenciais, respeitava a visão de mundo da época, caso contrário não teria sido entendida e apreciada como foi.    

IHU On-Line – Podemos dizer que a divisão Inferno-Purgatório-Paraíso usada por Dante naquele poema continua a influenciar o homem contemporâneo?

Hilário Franco
– Embora a Comédia tenha sem dúvida ajudado bastante a preservar aquela concepção do mundo extraterreno, ela é um dado do cristianismo, não de Dante Alighieri. Assim, as pessoas que hoje acreditam naquela divisão fazem-no por causa da religião, não da literatura. O mesmo ocorre nas referências profanas àqueles lugares: quando Sartre diz que “o Inferno são os outros” ou quando alguém qualifica um local muito bonito e agradável de “Paraíso”, estão recorrendo a elementos profundamente enraizados na cultura ocidental cristã em geral, não a Dante Alighieri em particular.    

IHU On-Line – No que consiste aquilo que o senhor chama de Trindade do Mal ou demonização social na obra de Dante?

Hilário Franco
– Ao contrário do que se pensa no senso comum, Dante não era apenas um poeta místico envolvido com temas teológicos. Era também um homem perfeitamente inserido nas grandes questões materiais do seu mundo. Interessou-se pela atividade que hoje chamamos de política, participou em certo momento do governo de Florença e por causa disso acabou sendo exilado. Ele utilizou várias de suas obras, inclusive a Comédia, para defender suas posições nesse campo. Em resumo, ele era muito crítico com relação a três poderes, a burguesia, a cidade de Florença e o Papado. Eles constituíam para Dante uma espécie de Trindade do Mal, manifestações diabólicas que impediam o surgimento de um mundo mais puro e justo. Se quisermos voltar para o início de nossa conversa, a Trindade do Mal seria uma contra-utopia a ser eliminada para que se pudesse instalar a utopia do poeta, a organização social sonhada por ele.

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