Edição 198 | 02 Outubro 2006

Idade Média, nosso antimundo

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“A Idade Média é um período de esplendor e dinamismo”, diz o historiador francês Jérôme Baschet.

Para Baschet, só compreendendo a Idade Média, podemos entender a colonização do continente americano pelos europeus. Mas ressalta: “A Idade Média é bem nosso antimundo: um mundo da tradição (ante a concepção moderna da história), um mundo da onipotência da Igreja (ante a laicização), um mundo da fragmentação dos poderes (ante o Estado), um mundo fundado sobre as relações sociais interpessoais (ante o mercado), um mundo das regulamentações corporativas que odiava a concorrência, um mundo fundado sobre o vínculo das pessoas com seus lugares (ante a afirmação duma lógica geral de deslocamentos), um mundo de imagens-objetos (ante as imagens-em-tela da sociedade do espetáculo)”.

Discípulo de Jacques Le Goff, Jérôme Baschet, autor do livro A Civilização Feudal. Rio de Janeiro: Globo, 2006 é hoje um dos principais especialistas em Idade Média. As Notícias Diárias do sítio do IHU, disponíveis para download no endereço www.unisinos.br/ihu reproduziram uma entrevista com Baschet no dia 18-9-2006, por acasião do lançamento do seu livro no Brasil.  Baschet, professor na EHESS na França, concedeu a entrevista que segue por e-mail, logo após seu regresso ao México.

IHU On-Line – Em entrevista à Folha de São Paulo, o senhor fala que a satanização de Bush é um legado medieval. Bush é um bode-expiatório, como foram as bruxas e os não-cristãos, uma personificação “útil” do Mal?

Jérome Baschet
– A frase segundo a qual a satanização de Bush (pelos islamitas) seria um legado medieval aparece no “chapéu” redigido pela redação da Folha de São Paulo , para introduzir minha entrevista. Mas, ela corresponde menos ao que eu disse efetivamente, do tanto que eu falei sobre a necessidade de o poder norte-americano criar para si um inimigo (e não o inverso). Além disso, eu atraía a atenção para o fato de que este não era um fenômeno especialmente medieval, porém um traço próprio ao exercício do poder em numerosas sociedades, como podemos ver no estrato seguinte: “Pode-se dizer que os clérigos (da Idade Média) “inventaram” a idéia de que uma seita de feiticeiros, adorando Satã ameaçava destruir a cristandade, o que seguramente justificava a mais firme repressão e legitimava os poderes que lutavam contra este perigo. Todo poder necessita de um inimigo e de uma ameaça, pois sua mais segura justificação é a proteção que ele oferece contra tal perigo. Quando a Igreja terminou com as heresias, ela precisou inventar a seita dos feiticeiros. Quando os Estados Unidos acabaram com o poder soviético (que, sob esta ótica, prestou bons serviços), eles tiveram que inventar o terrorismo. E quanto mais terrível é a ameaça, mais o poder, que o poder reivindica, é extremo. Mas isso não é um fenômeno especificamente medieval; eu diria, antes, que é uma estratégia usual de legitimação do poder”. De modo mais geral, em todas as minhas respostas à Folha de São Paulo eu sublinhava que é sempre arriscado, e em geral pouco pertinente, procurar ver nesses fenômenos atuais a continuidade de uma realidade medieval.

IHU On-Line – A desvalorização da Idade Média pela modernidade pode ser explicada pelo desejo de esta se auto-afirmar como civilizada? Quais são os principais problemas em avaliar-se o passado segundo os conceitos do presente?

Jérome Baschet
– A primeira dificuldade consiste em entender o sentido da palavra “modernidade”. Seguindo Jacques Le Goff , defendo no meu livro a idéia de uma longa Idade Média, que se prolonga de fato até o século XVIII. A ruptura da Renascença deve ser relativizada, e a expressão habitual para designar os séculos XVI-XVIII (os “Tempos modernos”) é falaciosa. Para dar um exemplo, é somente, como o mostrou Reinhart Koselleck , na segunda metade de século XVIII, com os pensadores das Luzes, que aparece uma concepção verdadeiramente moderna da história, uma concepção linear e unificada do processo histórico, fundada sobre a idéia do progresso. É somente então que o futuro pode ser concebido como diferente, e melhor que o passado. E é, ademais, neste momento que aparece o sentido atual da palavra “revolução”, como ruptura com o passado (quando antes ela designava principalmente o movimento cíclico e repetitivo dos planetas). A verdadeira modernidade começa então (e não com a Renascença do século XVI, que, a despeito das inovações que ela traz, permanece como fenômeno de essência medieval, que procura uma idade de ouro, não no futuro, porém no passado).

É também no século XVIII que intervém uma desvalorização completa da Idade Média. Para os pensadores associados à ascensão da burguesia, a Idade Média torna-se o cúmulo do obscurantismo (ou seja, do poder da Igreja), da anarquia política (ao inverso do triunfo do Estado) e da estagnação econômica (em oposição às regras do mercado postuladas por Adam Smith ). A Idade Média é, então, construída como o repositório da nova sociedade capitalista e burguesa que triunfa na Europa. Ao mesmo tempo, ela se torna completamente incompreensível, e é preciso crer que nós ainda vivemos no mesmo mundo que aquele que emerge, pois malgrado todos os esforços dos historiadores, os preconceitos sobre a Idade Média obscurantistas continuam tenazes. Ora, eu insisto, ao contrário, no meu livro, que a Idade Média é um período de esplendor e dinamismo excepcionais; sem isso, não se pode compreender a colonização do continente americano pelos europeus.

IHU On-Line – Se os séculos XVI e XVIII, já pertencentes à modernidade, são os mais profícuos na caça às bruxas, por que é a Idade Média que recebe a rotulação de inquisidora?

Jérome Baschet
– Você tem razão, em sua essência, a caça às bruxas não é um fenômeno medieval. Ela começa timidamente em meados do século XV, mas os processos maciços têm lugar nos séculos XVI e XVII. O número de vítimas é objeto de discussão entre os historiadores, mas uma estimativa da ordem de 40.000 execuções parece plausível. O que é, de qualquer maneira, considerável!
O preconceito mais comum não pode atribuir isso senão a uma Idade Média supostamente tenebrosa, e, em nenhum caso, a uma Renascença reputada luminosa e já racional. Seguramente, não se trata de idealizar a Idade Média, que era também uma época muito dura, mas, pelo menos, preciso retificar as formidáveis distorções provocadas por esquemas historiográficos inadequados. Como você vê, o que se chama de a “modernidade” dos séculos XVI e XVII é, talvez, ainda mais medieval que a própria Idade Média!

IHU On-Line – Por que a Idade Média é o inverso da modernidade?

Jérome Baschet
– Para pôr-nos bem de acordo, falamos agora da modernidade que se abre com as Luzes do século XVIII e que se prolonga até nós (com as crises sucessivas da modernidade, e o que se chama hoje de pós-modernidade).

A Idade Média, ou, caso se queira, a civilização feudal, era um período fundamentalmente dinâmico e criador, que lançou as bases do destino tão singular da Europa e de sua dominação progressivamente estendida a todo o planeta: é um fenômeno que explica amplamente a configuração geopolítica do mundo atual. Entretanto, essa civilização termina no século XVIII e desmorona diante da instauração das sociedades modernas, ou seja, do sistema capitalista que se estende a partir da revolução industrial. Trata-se de uma ruptura radical: nós estamos de um lado desta ruptura, e a Idade Média do outro. Precisamos, pois, fazer um esforço enorme para compreender esse mundo tão longínquo e finalmente tão oposto ao nosso. A Idade Média é bem nosso antimundo: um mundo da tradição (ante a concepção moderna da história), um mundo da onipotência da Igreja (ante a laicização), um mundo da fragmentação dos poderes (ante o Estado), um mundo fundado sobre as relações sociais interpessoais (ante o mercado), um mundo das regulamentações corporativas que odiava a concorrência, um mundo fundado sobre o vínculo das pessoas com seus lugares (ante a afirmação duma lógica geral de deslocamentos), um mundo de imagens-objetos (ante as imagens-em-tela da sociedade do espetáculo). Poder-se-ia continuar longamente essa lista...

De imediato, é preciso conceber, entre a Idade Média e nós, uma dupla relação: de um lado, a Idade Média é nosso antimundo; mas, ao mesmo tempo, é de sua dinâmica que nasce a expansão colonial da Europa, o processo de ocidentalização do mundo e, finalmente, o sistema-mundo capitalista no qual vivemos e que hoje põe em risco a sobrevivência da humanidade. É uma relação complexa, em parte contraditória, e é o que torna tão apaixonante o estudo da Idade Média, e, mais ainda, a possibilidade de fazer idas e vindas entre a compreensão do presente e a deste passado tão longínquo.

 

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