Edição 393 | 21 Mai 2012

O cristianismo e as raízes violentas da religião

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Márcia Junges | Tradução Luís Marcos Sander

Obra girardiana impactou a teologia e a ciência da religião, observa Michael Kirwan. É preciso manter viva a memória do que são os bodes expiatórios para escaparmos de “padrões de ressentimento e agressão mascarados como santidade”

Tanto a cultura quanto a sociedade humana são impossíveis sem “atos de violência fundante”. Além disso, paradoxalmente “o cristianismo revela as origens violentas da religião”, explica o teólogo inglês Michael Kirwan na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Ele frisa que “segundo a proposta de Girard, religião é igual à violência: a religião é a forma primordial pela qual a agressão é canalizada, de modo que se usa a violência limitada (bode expiatório) para impedir a violência amplamente disseminada e inteiramente destrutiva”. Analisando os episódios que ocorreram na sequência aos atentados de 11 de setembro de 2011, nos Estados Unidos, Kirwan recorda que, para Girard, a “guerra globalizada ao terror é, em muitos sentidos, um apelo no estilo de ‘cruzada’ a valores transcendentes, como liberdade e democracia. Mais tarde Girard corrigiu esse quadro até certo ponto, sugerindo que o elemento ‘mimético’ ou de imitação é apenas um de vários fatores que estão em jogo”. É imprescindível manter viva a memória sobre o que realmente é o uso dos bodes expiatórios para que se possam deixar de lado “padrões de ressentimento e agressão mascarados como santidade”.

Michael Kirwan nasceu em Leeds, Inglaterra, e foi educado no ensino médio em uma escola jesuíta nessa cidade. Graduou-se em Literatura no St. John’s College, em Oxford. Ingressou na Companhia de Jesus em 1980; de 1982 a 1984 estudou Filosofia e de 1986 a 1989 cursou Teologia no Heythrop College, faculdade jesuíta em Londres. É PhD em Teologia por essa instituição com a tese Friday’s children: an examination of contemporary martyrdom in the light of the mimetic theory of Rene Girard. Desde 1998 é professor de Teologia no Heythrop College e chefe do Departamento de Teologia. De sua extensa produção bibliográfica, citamos Discovering Girard (Darton, Longman and Todd, London, 2004), Political theology: a new introduction (DLT: London, 2008) e Girard and Theology (T&T Clark Continuum: London and NY, 2009).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – O que é a fé para René Girard? Como compreendê-la face a uma sociedade secularizada e, paradoxalmente, que retorna ao sagrado e à transcendência?

Michael Kirwan – René Girard escreveu abertamente sobre sua experiência de “conversão”, que ocorreu quando ele tinha entre 35 e 40 anos e estava escrevendo seu primeiro livro sobre romancistas europeus, em 1959. Embora a experiência inicial tenha sido, em alguns sentidos, “estética”, ela o fez retornar à fé cristã que tinha rejeitado quando jovem; desde então ele tem se descrito como um “católico comum”.

A importância da revelação dos evangelhos para a teoria mimética de Girard fica evidente em sua obra, desde Des choses cachées depuis la fondation du monde (1978), onde paradoxalmente ele observa que o declínio geral da religião no Ocidente nos possibilita perceber sua natureza mais claramente, assim como uma maré vazante deixa vestígios de sua presença. De modo paradoxal, esse processo de secularização, junto à compreensão do próprio Girard a respeito do papel da religião na manutenção da estabilidade social, possibilitou-nos distinguir com maior clareza entre um sagrado “falso” e um “verdadeiro”. O primeiro se refere à espécie de projeção comunitária efervescente que Durkheim  expõe: o “Outro social”. O segundo aponta para o “Outro outro”, a verdadeira face de Deus que está para além e por trás de nossas ilusões sociais. A teoria de Girard foi construída em “diálogo” com pensadores importantes, como Durkheim, Hegel  (quanto ao “desejo de reconhecimento”), Freud (quanto ao “assassinato fundante”) e Nietzsche  (quanto à diferença entre Dionísio e “o Crucificado”), bem como uma multidão de filósofos “pós-modernos” – um diálogo, entretanto, em que Girard acaba reafirmando a verdade do evangelho, depois de fazer o que um comentador chamou de “viagem até o fim das ciências do homem”.

Entendo que a teoria mimética de Girard tem um duplo valor, oferecendo uma perspectiva “a partir de fora” e outra “a partir de dentro” da religião e da tradição cristã. “A partir de fora”, ele dá uma contribuição para o debate pós-secular sobre a religião. A suposição prevalecente por mais de 30 anos de que a religião definharia e, por conseguinte, deixaria de ser uma força explanatória no mundo, provou ser falsa. Os teóricos têm tentado explicar o ressurgimento da religião, e a teoria de Girard ajudou a preencher esse vácuo. A partir do interior do cristianismo, Girard inaugurou novas discussões entre a teologia e as ciências sociais e humanas, dando uma nova clareza a questões referentes ao embasamento antropológico da teologia. Ao mesmo tempo, ele propôs uma abordagem nova da doutrina da expiação, principalmente em sua crítica do conceito de sacrifício. Ele próprio ofereceu interpretações notáveis de textos bíblicos centrais e inspirou outras interpretações de numerosos comentadores bíblicos e teológicos.

IHU On-Line – Como pode ser analisada a Teologia do Martírio a partir da teoria do desejo mimético de René Girard?

Michael Kirwan – A melhor forma de responder a essa pergunta é fazendo uma distinção entre o ideal do martírio na compreensão cristã clássica e a maneira como o conceito é abusado pela ideologia islâmica contemporânea. Para o cristão, o mártir está sempre representando uma imitatio Christi [imitação de Cristo], procurando reproduzir em sua própria vida a oferta de si mesmo, generosa e doadora de vida, que vemos na pessoa de Jesus. A morte de Jesus é inteiramente desprovida de ressentimento e vingança; mesmo em sua morte atrozmente cruel, Jesus (e os mártires que o imitam) proclama a misericórdia amorosa do Pai. Um verdadeiro seguidor de Cristo sempre optará por ser morto, e não por matar.

Em contraposição a isso, o fanático que destrói a si mesmo e a outras pessoas, mesmo que o faça por causa da verdade religiosa, age a partir de um senso de ressentimento. Isso tem um viés particularmente moderno: estudiosos de Girard perceberam a convergência existente entre a retórica islâmica contemporânea e a mentalidade niilista de anarquistas do século XIX, como a que encontramos nos romances de Conrad  e Dostoievski.

Em termos clássicos, o mártir no cristianismo é uma pessoa que sofre passivamente a violência: soldados, por exemplo, nunca foram considerados mártires. É claro que isso não significa que o conceito de martírio não tenha sido usado equivocadamente dentro da história do cristianismo, nem que não tenha havido figuras impressionantes de mártires em outras tradições. A chave, entretanto, é um compromisso doador de vida com a não violência. O termo significa “testemunha”: o verdadeiro mártir é uma pessoa (de qualquer tradição) que testemunha uma verdade transcendente para além das reciprocidades essencialmente humanas e políticas da vingança e do ressentimento.

IHU On-Line – A partir do pensamento de Girard, como se conectam religião, cultura e violência?

Michael Kirwan – A interligação entre esses elementos é crucial na teoria mimética de Girard. Ele afirma que a sociedade humana – e, portanto, a cultura – é impossível sem atos de violência fundante. Os grandes mitos e a literatura sacra mostram isto: Rômulo , que matou seu irmão Remo, é o fundador da grande cidade de Roma, enquanto que na Bíblia Caim, depois de assassinar seu irmão Abel, funda a primeira cidade.

Mas por que irmãos haveriam de se desentender de modo tão espetacular? Girard observa o fato de que a violência, antes de se tornar um ato, denota um relacionamento, e muitas vezes (como é o caso da violência doméstica) um relacionamento entre pessoas que se conhecem intimamente e ao longo do tempo. Girard explica o paradoxo mediante a ideia de que o desejo é mimético, isto é, que nossos desejos são copiados uns dos outros. Como observou Aristóteles , nós somos o homo mimeticus; nossa capacidade de imitação é fundamental para nossa humanidade. Um exemplo recorrente na obra de Girard é o de duas crianças que estão brincando numa sala cheia de brinquedos; apesar da abundância de brinquedos, é comum que uma criança brigue por causa do brinquedo específico que seu companheiro escolheu. Nossos desejos têm um caráter instável, volátil e são altamente suscetíveis à influência e orientação dos desejos de outros: “modelos”. Quando nos deparamos com pessoas que admiramos, ou que nos são apresentadas como exemplos a serem seguidos, procuramos imitá-las, de modo a adquirir os objetos ou as qualidades delas que as tornam desejáveis.

Embora essa atração funcione bem durante grande parte do tempo e engendre laços estreitos de afinidade e amizade, as coisas começarão a dar errado quando o objeto que ambos os lados desejam não pode ser compartilhado; por exemplo, quando dois amigos se apaixonam pela mesma moça. Se nenhum dos dois amigos está disposto a renunciar à sua paixão, eles passam a ser rivais. De modo semelhante, só Rômulo ou só Remo pode ser o fundador da cidade; Caim fica com ciúme de Abel porque Abel obteve o favor de Deus e Caim não, etc. Girard encontra a mais rigorosa exploração desses temas nas comédias e tragédias de William Shakespeare  e, em 1990, publicou toda uma coletânea de ensaios sobre ele intitulada Shakespeare: teatro da inveja.

A teoria mimética transpõe essas reflexões, a partir de observações das interações entre indivíduos, para uma ampla teoria sobre a interação humana no nível de grupos e até de sociedades inteiras. Essa questão é um equivalente da pergunta que Leibniz  fez como filósofo: “Por que existe algo e não nada?” René Girard pergunta: “Por que existe ordem, e não caos?” Se a interação humana é tão volátil quanto aparece aqui (e Girard está próximo do cenário desolador de Thomas Hobbes, que descreveu o estado natural da humanidade como um estado de guerra perpétua e total, baseado no medo e na rivalidade mimética), então como se produz qualquer coesão social e, mais ainda, como ela pode durar ao longo do tempo?

Processo catártico

Girard não está convencido da solução hobbesiana para essa pergunta, segundo a qual os seres humanos reconhecem o dilema em que se encontram e decidem, livre e racionalmente, organizar-se de acordo com um “contrato social”, limitando o uso da coerção unicamente ao soberano absoluto. Tendo em vista a interação frenética que acompanha o tipo de conflitos de que estamos falando, uma solução razoável como essa parece altamente improvável. Muito mais provável, diz Girard, é que as sociedades alcancem a estabilidade e harmonia às expensas de um indivíduo, ou grupo de indivíduos, que são marginais em relação à comunidade e, por isso, se prestam à vitimização. 

A identificação dessas vítimas e sua subsequente expulsão ou até destruição representam um poderoso processo catártico para o grupo como um todo. Experimenta-se uma sensação dramática de paz e solidariedade, que parece vir “de cima”, de além dos recursos do próprio grupo: trata-se do que Durkheim chamou de “efervescência social”. Para Girard, esse ato de “usar um bode expiatório” denota a origem da religião – especificamente, de sistemas religiosos que têm em seu núcleo a prática de “sacrifício”, seja de seres humanos, ou animais, ou plantas que, com o passar do tempo, são entendidos como substitutos da vítima sacrifical humana. O ato de vitimização e expulsão – uso de bodes expiatórios – subjaz à memória não só de práticas religiosas, como mitos, tabus, proibições e sacrifício, mas também a outros fenômenos sociais e culturais, como, por exemplo, as artes, a justiça, confrontações competitivas como os mercados, o esporte, etc.

Origens violentas da religião

Girard dedicou a maior parte de sua atenção à convergência de uma energia violenta sobre “bodes expiatórios”, que, por definição, são minorias dentro de um determinado grupo. É importante reconhecer, entretanto, que as energias podem ser desviadas para fora, para um inimigo externo. O teórico político Carl Schmitt  falava da distinção entre “amigo ou inimigo”, segundo a qual a estabilidade política exigia que um país tivesse uma percepção forte de quem eram seus aliados, mas também de quem eram seus inimigos. Os sentimentos de medo de uma população podem ser mobilizados contra um inimigo interno (as bruxas, os judeus na Alemanha nazista, etc.) ou externo (a hostilidade americana para com o comunismo na guerra fria, agora substituída por uma “guerra ao terror” em nível global). Em cada um desses casos, os sentimentos comunitários de ódio são facilmente justificados em termos religiosos: como campanhas de “purificação” ou como “cruzadas” em nome de uma verdade transcendente.

A ligação entre religião e violência fica explícita na formulação de Girard que se encontra em seu mais importante livro, de 1972: “a violência é o coração e a alma secreta do sagrado”. O xis da questão, naturalmente, é que, para Girard, é a revelação judaico-cristã, e sobretudo a paixão de Cristo, que nos permitiu perceber a realidade negativa e ubíqua do processo que Girard chama de “mecanismo do uso de bodes expiatórios”. Paradoxalmente, o cristianismo revela as origens violentas da religião.

IHU On-Line – Por que a religião e a violência são inseparáveis? Como compreender esse paradoxo?

Michael Kirwan – Como indiquei acima, para René Girard há uma ligação inerente entre religião e violência na medida em que a “religião” é fundamental para a formação e estabilização da identidade grupal humana. Essa identidade pode ser fomentada canalizando-se as hostilidades do grupo, que podem ser redirecionadas internamente sobre um bode expiatório individual ou comunitário ou externamente sobre um grupo ou comunidade rival. Esse argumento parece estar de acordo com a concepção secularista geral de que a religião é inerentemente violenta e deveria ser rejeitada. Entretanto, há duas considerações adicionais importantes.

Em primeiro lugar, a consideração feita anteriormente: Girard insiste que é sobretudo através da revelação de Cristo, especificamente através do drama da paixão e ressurreição, que temos condições de identificar a realidade do mecanismo do bode expiatório como princípio estruturador da vida e sociedade humana. O fato de que, em sua história, o cristianismo tragicamente deixou de permanecer fiel a essa descoberta não deveria obscurecer a verdade de que a mais abrangente orientação para resolver o paradoxo da religião e da violência se encontra no Novo Testamento.

A segunda consideração é que deveríamos ser muito cautelosos em relação às formas como o termo “religião” está sendo usado no debate contemporâneo. O teólogo norte-americano W. T. Cavanaugh sustenta, no livro The myth of religious violence (2009) que uma definição seletiva (e particularmente moderna) desse termo foi usada estrategicamente por secularistas para reforçar a marginalização do pensamento religioso e para deixar de examinar a violência quase religiosa, quase transcendente do Estado moderno não confessional (cujas atividades são descritas erroneamente como de “manutenção da paz”).

Essa explicação concorda coma descrição do Outro social “efervescente” feita pelo próprio Girard. Segundo a proposta de Girard, como vimos, religião é igual à violência: a religião é a forma primordial pela qual a agressão é canalizada, de modo que se usa a violência limitada (bode expiatório) para impedir a violência amplamente disseminada e inteiramente destrutiva. Mas está claro que isso depende de uma definição específica do termo, e de uma definição que pode, com facilidade, ser objeto de uma apropriação indevida no debate contemporâneo sobre a religião e seu significado.

IHU On-Line – A partir da perspectiva de Girard, como analisa o terrorismo de matriz fundamentalista religiosa?

Michael Kirwan – Após as atrocidades do 11 de setembro, Girard escreveu a respeito de sua convicção de que a crise era uma crise de “rivalidade mimética” em escala global. Os ataques deveriam ser entendidos como uma expressão de ressentimento de grupos alheados que estavam horrorizados e, ao mesmo tempo, fascinados com o Ocidente rico e ímpio. De muitas formas, isso criou uma “duplicação mimética”, pois produziu uma reação religiosa dos Estados Unidos e de seus aliados: a subsequente “guerra ao terror” globalizada é, em muitos sentidos, um apelo no estilo de “cruzada” a valores transcendentes, como liberdade e democracia. Mais tarde, Girard corrigiu esse quadro até certo ponto, sugerindo que o elemento “mimético” ou de imitação é apenas um de vários fatores que estão em jogo.

Pode-se dizer que Girard ocupa uma posição intermediária entre dois outros tipos de explicação que também foram propostos após o 11 de setembro. Ateus proeminentes como Richard Dawkins  insistiram que os ataques da Al Qaeda meramente ilustravam a tendência perene da religião à violência; essas atrocidades são “antiquíssimas”. Por outro lado, teóricos sociais como Jürgen Habermas  sustentaram que o fundamentalismo é um fenômeno moderno, que devemos atribuir a processos imperfeitos ou débeis de secularização e à reação que eles causam entre grupos marginais ou alheados. De modo semelhante, o terrorismo é uma realidade moderna a ser explicada recorrendo-se a precedentes nos movimentos políticos de ressentimento dos séculos XIX e XX. A explicação de Girard recorre a aspectos desses dois tipos de explicação. A violência “religiosa” certamente é antiga, porque nos remete à violência arcaica que se encontra nas origens da história humana; por outro lado, o caráter “hipermimético” do mundo moderno torna a crise atual mais acentuada.

O que quer dizer “hipermimético” aqui? O fato da existência de um mundo globalizado significou uma interação cada vez mais estreita entre sociedades e grupos – e, por conseguinte, maior potencial de ressentimento e rivalidade. O desejo mimético foi descrito em analogia com a força da gravidade, que tanto atrai como repele. Se a atração gravitacional é forte demais, corpos colidirão uns contra os outros; ora, as convergências produzidas pela globalização da consciência e expectativa representam justamente uma possibilidade assim. Também se pode perguntar por que estamos vendo “mais” violência, “mais” conflito no mundo, a despeito de uma teoria que insiste que a violência sacrificial está perdendo sua eficácia. Assim como sempre ficamos tentados a aumentar a dosagem de um medicamento que não está tendo efeito, do mesmo modo a teoria nos diz que devemos esperar níveis maiores do uso de bodes expiatórios, mesmo num mundo em que aprendemos a “sacar” esse tipo de coisa.

Para além da política?

Girard ampliou esse segundo aspecto de nossa situação ao falar de uma crise da “escalação até os extremos”. Neste ponto ele recorre ao teórico militar prussiano Clausewitz , que conseguiu discernir uma mudança na função e finalidade da guerra. Até o início do século XIX, a guerra servia a uma função “sacrifical” nos termos definidos por Girard. Isto é, ela permitia que a agressão entre nações fosse canalizada através de um número limitado de combatentes, cujo envolvimento estava rigorosamente codificado de acordo com objetivos específicos e padrões de comportamento. Com a mobilização total dos exércitos napoleônicos, contudo, temos o início de uma transformação. A guerra não é mais “sacrificial”, mas envolve populações inteiras e implica um colapso do comportamento codificado: como aconteceu nas duas guerras mundiais, na ameaça mundial de aniquilação nuclear e na atual “guerra ao terror”, onde o teatro de guerra se universalizou até chegar a toda e qualquer esquina.

As crises com que nos defrontamos atualmente – segurança global e nacional, meio ambiente e mudança climática, instabilidade financeira – parecem estar além da competência dos estados nacionais, quer ajam individualmente, quer coletivamente. Face às ameaças crescentes, Girard se pergunta se não estaríamos “para além da política”. A linguagem do “apocalipse” foi usada nesse contexto, tanto por Girard como pelos comentadores de seu pensamento – não como um termo sensacionalista, mas como uma descrição séria da opção bíblica que se nos depara: precisamos “optar pela vida”, abrir mão de uma vez por todas das defesas “sacrificiais” que já não nos servem sequer limitadamente e aceitar a conclamação ao amor radical. Há muita discussão acerca de se essa visão é “pessimista” ou não. Girard insistiria que se trata de uma visão bíblica e realista, lembrando-nos de que a esperança cristã não é sinônimo de otimismo.

IHU On-Line – Qual é o sentido do sacrifício hoje?

Michael Kirwan – Um dos efeitos mais marcantes da obra de Girard tem sido o impacto que causou na área da teologia e da ciência da religião, especialmente na revitalização do debate sobre sacrifício e expiação. Seu argumento no livro A violência e o sagrado  de que o uso de um bode expiatório excludente constituía o coração secreto de todo ritual sacrifical parecia assinalar o fim do “sacrifício” como categoria aceitável para a compreensão cristã da obra de Cristo. Como quer que entendamos o que Deus realizou na paixão, morte e ressurreição de seu Filho, não deveríamos chamá-lo de “sacrifício”. Este termo, além da prática que designa, deveria ser limitado a exemplos não cristãos com origem na etnologia, no mito, etc. – entre aqueles que “não sabem o que fazem”. Girard argumentou vigorosamente neste sentido em Des choses cachées, questionando a noção cristã tradicional de “sacrifício” e chegando ao ponto de se perguntar se a Epístola aos Hebreus (que fala amplamente de Cristo usando imagens tiradas do culto sacrifical de Israel) deveria ter sido aceita no Novo Testamento.

Na verdade, Girard alterou essa postura “antissacrificial”, em parte após uma discussão com o teólogo jesuíta suíço Raymund Schwager, que o persuadiu de que havia, sim, uma história aceitável desse termo dentro da tradição cristã. Seguindo Agostinho  e outros, devemos entender que Cristo se ofereceu pelo bem-estar dos outros, não sendo simplesmente a vítima impotente da ira divina ou humana. É como as duas mulheres que discutem diante de Salomão a respeito da posse legítima de um filho: a mãe “falsa” deseja a destruição dele, ao passo que a mãe “verdadeira” está disposta a “sacrificar” o bebê para que ele possa viver. É isso que faz toda a diferença para Girard. Em vez de dizer simplesmente, como fizera antes, que os cristãos deveriam simplesmente abandonar o termo por ser incompatível com a verdade do evangelho, ele agora afirma que a transformação desse único termo representa “a história religiosa da humanidade”.

Padrões mascarados de santidade

A implicação disso para a teologia e a ciência da religião parece ser a seguinte. A simples rejeição do sacrifício como arcaico e irrelevante nos deixaria como os fariseus nos evangelhos: complacentes e mudos em relação às possibilidades e tendências violentas que ainda permanecem como parte de quem somos. Enquanto pensarmos que deixamos o “sacrifício” para trás – como algo que nossos “ancestrais” faziam –, sempre correremos o perigo de ter uma recaída, de repetir atrocidades do passado. É só mantendo viva a memória do que é o uso de bodes expiatórios e ficando atentos à história desse termo que podemos esperar verdadeiramente ir além e escapar de padrões de ressentimento e agressão mascarados como santidade. Assim como os israelitas são conclamados a comemorar anualmente o êxodo do Egito, da mesma maneira podemos falar de um “êxodo do sacrifício”, uma caminhada para nos distanciar de um estado de coisas intolerável, com certeza, mas que precisa ser preservada e celebrada continuamente na memória comunitária para que sua força libertadora seja eficaz.

IHU On-Line – Que contribuições seu pensamento traz para repensarmos o perdão em nossa sociedade?

Michael Kirwan – Mencionamos acima a diferença entre martírio “falso” e “verdadeiro”: um mártir verdadeiro, especialmente um mártir que procura imitar a Cristo, vai perseverar em proclamar a Deus como um Deus perdoador e livre de vingança. A ressurreição de Cristo, em vez da terrível retribuição que poderíamos esperar de um deus vingativo, afirma que o Pai é absolutamente livre de violência. Toda violência que reivindique a sanção divina deve ser julgada como resultado de projeção humana.

É claro que isso tem implicações enormes para as pessoas religiosas; como indiquei acima, entretanto, esse é também o único caminho para a frente para a espécie humana como um todo. A sobrevivência depende de os seres humanos assumirem coletivamente a lógica do evangelho: oferecer a outra face, perdoar ofensas e amar os inimigos. Exige a rejeição de tentativas substitutivas de chegar à transcendência através de guerras santas e cruzadas e da sacralização das vítimas. Não apenas o cristianismo, mas todas as principais tradições religiosas oferecem sabedoria que precisa ser direcionada para esse desafio.

Há um reconhecimento implícito desse desafio na discussão atual sobre a crise de legitimidade dos sistemas legais e de justiça. Desde os julgamentos dos crimes de guerra após a segunda guerra mundial até a tentativa de estabelecer um tribunal internacional de justiça, está se reconhecendo crescentemente que a justiça é sempre rigorosamente falha e limitada. A identificação e punição de uma vítima, por mais culpada que seja, nunca pode ser a última palavra: como tal, isso permanece no âmbito do “sacrificial”. Por essa razão, o interesse renovado na teoria e nas técnicas da justiça restaurativa sugere uma aplicação muito clara e prática da teoria de Girard.

Quanto mais um sistema político, social ou jurídico oferece certeza transcendente ou absoluta, tanto mais ele precisa ser julgado com ceticismo. O teólogo girardiano Wolfgang Palaver se ocupou com a crítica de Elias Canetti em relação às “religiões do lamento”, a saber, que qualquer religião que procure dar voz ao “lamento”, ao brado do sofrimento inocente, corre o risco de ser mobilizada para uma cruzada presunçosa e violenta. As religiões abraâmicas, bem como algumas das formas mais estridentes do humanismo ateísta, são todas elas “religiões do lamento” nesse sentido. Palaver reconhece a facilidade com que uma multidão que lamenta se torna uma turba vingativa se não se lembra a insistência no perdão.

IHU On-Line – De que forma Girard analisa Deus como uma “invenção”? O que essa constatação demonstra sobre o sagrado e as projeções humanas? 

Michael Kirwan – Como indiquei acima, Girard se destaca por oferecer uma “perspectiva dual” sobre a religião. A partir “de fora”, ele propõe uma teoria que trata da importância contínua da religião num contexto pós-secular, citando indícios tirados de uma vasta gama de fontes literárias e antropológicas. A descrição do “sagrado” em termos de formação e coesão identitária está em ampla consonância com uma compreensão durkheimiana da religião como projeção social, como o “outro social”. Girard concorda com esse “desmascaramento” da religião, assim como concorda com grande parte da crítica de Nietzsche e Freud. Como pessoa de fé, entretanto, Girard também insiste no “Outro outro”, para além do desmascaramento, cuja face se revela do modo mais explícito como a do Pai que Jesus pregou e em quem confiou. A história da Bíblia é justamente a história dessa revelação verdadeira, rompendo a carapaça do sagrado falso a partir de dentro da história.

Essa teoria é, com efeito, uma “hermenêutica da suspeita”, mas no espírito de Paul Ricoeur , para quem a “suspeita” não tem a ver apenas com o desmascaramento destrutivo da crença religiosa, mas com um meio necessário de purificação (Ricoeur se ocupou positivamente com a obra de Girard). Continua havendo comentadores filosóficos que trabalham com as ideias de Girard e querem separar essas duas perspectivas e insistir que é possível aceitar as percepções antropológicas de Girard sem aderir explicitamente à fé cristã. Para o próprio Girard, e para os teólogos que retomaram suas ideias, essa pretensão parece difícil de sustentar por causa do entrelaçamento que caracteriza a teoria. Girard afirmaria que, embora as percepções antropológicas – referentes ao desejo mimético, ao uso de bodes expiatórios – possam manter-se autonomamente, é só através da revelação bíblica que elas nos foram reveladas definitivamente. Isso pode fazer de Girard um pensador exasperante – para algumas pessoas, ele pretende demais; para outras, muito pouco –, mas frutífero para uma era que, talvez como nenhuma outra, está aguda e dolorosamente consciente da natureza ambígua do pensamento religioso.

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