Edição 392 | 14 Mai 2012

Desenvolvimento é crescimento com mudança estrutural

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Graziela Wolfart

Para David Kupfer, o desenvolvimentismo parte de um diagnóstico de que o subdesenvolvimento é o efeito de uma inserção desfavorável de um país no concerto das nações. Portanto, o subdesenvolvimento só pode ser superado com a mudança da inserção do país na estrutura de poder mundial

“É da essência do pensamento desenvolvimentista recusar a ideia de que o desenvolvimento possa ser simplificado apenas para a noção de crescimento ou crescimento da renda per capita. O pensamento desenvolvimentista sempre se organizou em torno de uma ideia força que é exatamente a noção de que desenvolvimento é crescimento com mudança estrutural”. A análise é do economista e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, David Kupfer, em entrevista concedida por telefone para a IHU On-Line. E ele aponta que a mudança estrutural que será portadora do desenvolvimento no Brasil deverá envolver a “abertura de oportunidades de trabalho para serviços de mais alta qualificação em lugar dos serviços mais precários que estão disponíveis hoje no país”. Na visão de Kupfer, “o neodesenvolvimentismo atualiza as visões nacionais desenvolvimentistas da segunda metade do século passado, particularmente com a colocação de grande ênfase na questão da inovação e do progresso técnico. Essa é a essência do que se poderá chamar de pensamento neodesenvolvimentista”.

David Kupfer é mestre e doutor em Economia da Indústria e da Tecnologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Atualmente, é assessor da presidência do BNDES e coordenador do grupo de pesquisa em Indústria e Competitividade – GIC-IE/UFRJ. É autor de inúmeros artigos sobre inovação, competitividade e concorrência na indústria brasileira além de e coautor do livro Made in Brazil (Rio de Janeiro: Campus, 1996) e organizador de Economia Industrial (Rio de Janeiro, Campus, 2002).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Pensando no modelo de desenvolvimento para o Brasil atual, em que consiste o mecanismo de crescimento da economia brasileira? Quais são seus pilares?

David Kupfer – Essa reflexão e esse entendimento a respeito do padrão de crescimento da economia brasileira é muito relevante. O que temos percebido é que o Brasil conseguiu retomar um padrão de desenvolvimento econômico que é mais semelhante à própria história do crescimento brasileiro, e que tem como polo central o mercado interno. Tivemos um conjunto de transformações bastante positivas nos anos iniciais da década passada (anos 2000), que consistiram exatamente no retorno do mercado interno como polo dinâmico da economia brasileira. No entanto, esse processo sofreu um impacto muito profundo da crise econômica internacional, que trouxe novas características e novas questões, que nos levam a olhar o futuro com algumas dúvidas sobre determinadas possibilidades que se abrem para a própria economia brasileira. O Brasil, após um ciclo de desenvolvimento muito intenso na década de 1970, entrou em uma fase de estagnação, de baixo crescimento, e também de uma certa imobilidade na estrutura produtiva. Com a melhora das condições gerais de funcionamento da economia após a estabilização monetária no início da década de 1990 e, principalmente, com as políticas de abertura comercial e de liberalização econômica, percebemos um período em que o mercado externo foi o polo dinâmico da economia brasileira. E como historicamente sempre ocorreu, a economia brasileira, quando depende do setor externo, revela um baixo potencial de crescimento. O início da década de 2000 significou o retorno do mercado interno, inicialmente apoiado no consumo das famílias. E essa dinamização do consumo trouxe um efeito muito positivo, que foi o de disparar um ciclo de investimentos em expansão de capacidade. Então, a situação em 2008, quando irrompeu a crise internacional, era favorável do ponto de vista daquilo que se podia projetar, porque o ciclo de consumo estava com força suficiente para se transmitir a um ciclo de investimentos que poderia garantir a construção da capacidade produtiva compatível com a ampliação do consumo, e assim sucessivamente. O que aconteceu, com a crise, é que o ciclo de investimentos reverteu e a economia brasileira, desde então, não conseguiu retomar o ímpeto com que vinha evoluindo no início de 2008.

IHU On-Line – Qual a influência da indústria para o desenvolvimentismo do Brasil, principalmente se considerarmos a recente queda do número de empregos oferecidos pela indústria em nosso país?

David Kupfer – O papel da indústria é fundamental na definição das perspectivas da economia brasileira, que não tem ainda as condições para ser pensada como uma economia pós-industrial. Ela ainda depende da indústria, diretamente, para a geração de saldos comerciais, porque precisamos de um setor de comercializáveis competitivo e capaz de irrigar com divisas a economia brasileira. Precisamos da indústria também para efeito de qualificação do nosso mercado de trabalho, porque ela ainda é o setor que gera os melhores empregos na economia brasileira. E precisamos da indústria por causa do incentivo natural da atividade industrial para a incorporação de progresso técnico, para a inovação e a modernização da economia. Ademais, tenho insistido no fato de que, além de um papel direto no desenvolvimento, a indústria tem também uma missão importantíssima, que é a de gerar demanda para serviços de mais alta qualificação, serviços esses relacionados a atividades de pré e pós-produção. Portanto, forma-se um conjunto de atividades importante para o desenvolvimento do mercado de trabalho no Brasil e que dependem da realização da atividade industrial no país.

IHU On-Line – Que relação pode ser estabelecida entre a chamada desindustrialização e o desenvolvimento econômico do Brasil?

David Kupfer – De fato, a desindustrialização é uma trajetória completamente indesejada. No entanto, embora possível, não entendo que ela esteja decretada, que ela seja inexorável. Está em curso uma redução da atividade industrial, mas não é tão grande quanto poderia ser em condições de desindustrialização propriamente dita. Na verdade, a indústria brasileira tem enfrentado uma piora do seu ambiente geral de funcionamento que vem ocorrendo em vista do acirramento da competição internacional, dos problemas ligados à valorização excessiva do real comparativamente a outras moedas, a chamada “guerra cambial”. Uma característica que evidencia essa capacidade de resistência é exatamente o comportamento positivo do emprego industrial. A queda do emprego industrial em relação ao ano passado, que vem ocorrendo nesses últimos meses, deve-se ao fato de que o início de 2011 foi um período de muito aquecimento do mercado interno em função de expectativas de normalização que existiam à época na economia mundial. E a metade do ano passado foi um período preocupante diante das possibilidades de uma crise europeia aberta e também em função de medidas de contenção da demanda que foram tomadas pelas autoridades econômicas do país. Isso provocou uma reversão de expectativas muito grande e as comparações que se fazem entre o início de 2012 e o início de 2011 trazem esse efeito-base a ser considerado na avaliação dos dados.

IHU On-Line – Qual a importância do ajuste fiscal ao se pensar em um modelo de desenvolvimento para o Brasil?

David Kupfer – Essa questão tem que ser colocada em perspectiva. O Brasil convive com diferentes intensidades de ajustamento fiscal há muito tempo. Fazemos esforço fiscal pelo menos há 25 anos. E tanto tempo de esforço fiscal causou determinadas acomodações estruturais na economia brasileira. No entanto, a novidade está no fato de que, independentemente de se verificar a necessidade de um ajuste fiscal mais ou menos intenso, a redução dos juros terá um impacto fiscal bastante favorável, na medida em que significa uma importante diminuição do gasto público com encargos financeiros. Imagino que isso poderá abrir um espaço fiscal importante e poderá ser canalizado para ampliar a taxa de investimento, particularmente do investimento público, na economia. Essa é uma possibilidade que nos tira um pouco desse dilema “gastar ou não gastar”, “ter ou não ter esforço fiscal”.

IHU On-Line – Que relação pode ser estabelecida entre crescimento econômico e desenvolvimentismo?

David Kupfer – Essa é uma questão conceitual fundamental inclusive no próprio debate sobre o desenvolvimento. É da essência do pensamento desenvolvimentista recusar a ideia de que o desenvolvimento possa ser simplificado apenas para a noção de crescimento da renda total ou da renda per capita. O pensamento desenvolvimentista sempre se organizou em torno de uma ideia força que é exatamente a noção de que desenvolvimento é crescimento com mudança estrutural. Mesmo que ao longo dos anos a direção da mudança estrutural venha ganhando novos contornos, ela é a essência do processo de desenvolvimento. No passado, imaginava-se um processo de crescimento com o aumento do peso da atividade industrial e, dentro dela, uma expansão dos segmentos mais capazes de incorporar o progresso técnico. Daí a grande ênfase que os desenvolvimentistas conferiram à construção de um setor de bens de capital no processo de industrialização. Não se tratava exclusivamente de ampliar a produção industrial, mas sim de fazer isso com crescente peso de atividades relacionadas a setores de bens de capital, que são os introdutores do progresso técnico na economia, que aumentam o valor gerado pela produção, a renda e a riqueza geral da população. Mais recentemente, as ideias associadas à mudança estrutural têm incorporado outras condições, como, por exemplo, a questão dos intangíveis, do conhecimento e também da sustentabilidade e da ecoeficiência, mas a linha geral continua diferenciando de forma importante a noção do crescimento econômico, que é a mera expansão do produto interno bruto, total ou per capita, da noção de desenvolvimento, que exige a mudança estrutural, que é exatamente o que retira a economia da sua condição de subdesenvolvimento.

IHU On-Line – Pensando em mudança estrutural na economia brasileira, o que seria fundamental?

David Kupfer – Pensando do ponto de vista da produção, o que é fundamental contemplar no processo de mudança estrutural desejável para a economia brasileira tem a ver com a questão da qualificação do setor de serviços no Brasil. A mudança estrutural que percebo como portadora do desenvolvimento no Brasil deverá envolver a abertura de oportunidades de trabalho em serviços de mais alta qualificação em lugar dos serviços mais precários que estão disponíveis hoje no país. A economia brasileira hoje tem praticamente 70% do seu PIB produzido no setor de serviços. No entanto, mais da metade disso está ligado ao comércio, a serviços pessoais, a atividades não mercantis. Precisamos aumentar o peso dos serviços produtivos, prestados às empresas, de maior valor adicionado, para qualificar o mercado de trabalho no país. De fato, o papel da indústria nessa transformação é importante, na medida em que a produção industrial abre espaço para a criação desses novos empregos. Evidentemente, o processo de mudança estrutural é sempre intensivo em tempo, não pode ser feito da noite para o dia, por meio de políticas de efeito imediato. É uma transformação que tem que ser promovida em um horizonte de 10 a 15 anos, pelo menos. Mas existem oportunidades que já apontam nessa direção e que precisam ser aceleradas, fortalecidas, para que esse processo ganhe mais velocidade.

IHU On-Line – O senhor percebe diferenças entre o chamado “neodesenvolvimentismo” e a ideologia nacional-desenvolvimentista dos anos 1950?

David Kupfer – O neodesenvolvimentismo atualiza as visões nacionais desenvolvimentistas da segunda metade do século passado, particularmente com a colocação de grande ênfase, de um lado, na questão da inovação e do progresso técnico e, de outro, na questão da equidade e da distribuição de renda. Essa é a essência do que se poderá chamar de pensamento neodesenvolvimentista, que encontramos, por exemplo, na escola de pensamento da Cepal, a partir do final da década de 1980 para cá. Aqui no Brasil, abriu-se margem ao surgimento de outra escola, outra corrente de pensamento, que é chamada de “novo desenvolvimentismo”, que busca uma síntese entre o nacional desenvolvimentismo tradicional e determinados preceitos de gestão macroeconômica, particularmente no que diz respeito à condução das políticas fiscal, monetária e cambial. De fato, o novo desenvolvimentismo seria não uma revisão modernizante do pensamento nacional desenvolvimentista, mas uma visão alternativa, que atribuiria à gestão macroeconômica um papel radicalmente diferente do que o usual no pensamento desenvolvimentista. São os que defendem alguma rigidez fiscal na condução da economia, considerando que uma gestão mais apertada do gasto público tem uma dimensão importante na criação das condições de sustentação do processo de desenvolvimentismo.

IHU On-Line – Como o senhor caracteriza a relação entre a esquerda e o desenvolvimentismo na trajetória histórica do Brasil?

David Kupfer – O desenvolvimentismo não cabe em uma dicotomia “direita e esquerda”. O desenvolvimentismo prático, aquele pragmaticamente colocado em marcha no Brasil, foi operado por uma ditadura militar, que ninguém imagina que seja de esquerda. Era uma ditadura absolutamente conservadora, mas que usufruiu do pensamento desenvolvimentista para criar uma máquina de crescimento que, durante alguns anos, foi muito potente no Brasil. A ideia do desenvolvimentismo está muito mais ligada a um diagnóstico das causas do subdesenvolvimento do que propriamente a visões ideológicas do que é o processo do desenvolvimento. O desenvolvimentismo está fundamentalmente apoiado no diagnóstico de que o desenvolvimento é uma questão nacional, que se resolve pela mudança de inserção da economia no eixo de poder mundial. Para o pensamento desenvolvimentista, o desenvolvimento não é o resultado de um processo sequencial, etapista, de acumulação de recursos produtivos simplesmente, como se fosse um processo evolutivo natural (as economias vão crescendo e vão se ajustando a essas novas situações e respondendo com mais crescimento). Não é, portanto, algo reflexo, conduzido pela economia internacional O desenvolvimentismo parte de um diagnóstico de que o subdesenvolvimento é o efeito de uma inserção desfavorável daquele país no concerto das nações e, portanto, só pode ser superado com uma dimensão de poder, com a mudança da inserção do país na estrutura de poder mundial. Essa é a essência do pensamento desenvolvimentista e daí a ideia do nacional desenvolvimentismo: a afirmação da nação como o caminho para a acumulação das forças produtivas e não o contrário. Isso pode ser apropriado tanto pela direita quanto pela esquerda. Daí justifica-se a visão de que o desenvolvimentismo ou nacional desenvolvimentismo não cabe na dicotomia “esquerda e direita”.

Leia mais...

>>David Kupfer já concedeu outras entrevistas à IHU On-Line. Acesse na página eletrônica do IHU (www.ihu.unisinos.br).

A necessidade de uma outra política macroeconômica. Entrevista publicada na edição 356, de 04-04-2011, disponível em http://bit.ly/ihI0SL

Desatar o nó cambial. Eis o desafio econômico brasileiro. Entrevista publicada nas Notícias do Dia em 21-12-2010, disponível em http://migre.me/49G3K

A política cambial e o crescimento econômico. Entrevista publicada na edição 306, de 31-08-2009, disponível em http://migre.me/49FYn

Pré-sal: uma nova perspectiva para o desenvolvimento econômico brasileiro. Entrevista publicada nas Notícias do Dia em 16-09-2008, disponível em http://migre.me/49G1N

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