Edição 391 | 07 Mai 2012

A luta antimanicomial como uma luta cultural

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

Márcia Junges

Para Massimo Canevacci, ninguém é totalmente normal, e a questão da doença mental não pode ser compreendida como somente um problema médico. É algo legitimado culturalmente, assegura. E é preciso examinar a questão através de “indisciplinas”, e não mais por uma disciplina isolada

 

“O que se entende por ‘loucura’ não se pode definir objetivamente. Quem é normal? E quem é anormal?”, questiona o filósofo e antropólogo italiano Massimo Canevacci. E completa: “É impossível dizer que uma pessoa é sempre totalmente normal. A expansão da comunicação digital é um exemplo. A identidade nunca mais é unitária, compacta, sempre idêntica a si mesma”. Sobre a questão da medicalização da doença mental e de técnicas violentas como o eletrochoque, constata: “o problema não é, e nunca foi, só médico. Sempre foi também legitimado por uma cultura popular que aceitava este tipo de tecnologia como a única apta para resolver problemas intrafamiliares que causavam vergonha, medo etc. E a luta antimanicomial sempre foi e sempre será também uma luta cultural”. Segundo Canevacci, “uma disciplina isolada não pode mais penetrar e resolver esta tensão entre loucura e sanidade. Precisamos de ‘indisciplinas’. Uma ‘indisciplina’ focalizada sobre esta questão da ‘normalidade anormal’ é fundamental”. Em seu ponto de vista, o poder simbólico e coercitivo exercido nos hospitais psiquiátricos transcende as fronteiras da instituição, abarcando estruturas políticas, econômicas e religiosas, “muito frequentemente incorporado como valor na visão de muitas pessoas ‘normais’”. Em última instância, a luta antimanicomial precisa ser compreendida num contexto expandido da criação de “uma visão da democracia progressiva”. As declarações fazem parte da entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.

Massimo Canevacci é doutor em Letras e Filosofia pela Universidade Degli Studi di Roma La Sapienza – URS, na Itália, de onde é natural. Leciona antropologia cultural, arte e culturas digitais nessa mesma instituição e é professor visitante na Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Publicou vários trabalhos sobre a realidade brasileira. É autor de livros como Antropologia da comunicação visual (Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2001), Fetichismos visuais (São Paulo: Atelier Editorial, 2008) e Antropologia do cinema (São Paulo: Editora Brasiliense. 1990), Fake in China (Maceió: Edufal, 2011).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como percebe o exercício do poder psiquiátrico em nossa sociedade?

Massimo Canevacci – A psiquiatria parece-me sempre mais dividida em diferentes e, às vezes, contrastantes correntes. A tradicional psiquiatria “medicalizada”, isto é, que usa como principal instrumento de cura o produto farmacológico, em parte mudou. As novas gerações de fármacos não são mais como aqueles de 20 ou 30 anos atrás. E isso é um bem. Ao mesmo tempo, esta corrente exercita seu paradigma tradicionalmente recluso no próprio lugar mais ou menos fechado, separado do contexto mais amplo e, por isso, isola a doença e cura este específico problema. O caso é que mudou profundamente a etiologia destes tipos de doenças. Mudou a família, o gênero, o trabalho, o território e, ainda mais, a comunicação e o consumo. Por isso as relações entre psiquiatria e outras ciências humanas são fundamentais, especificamente com o método da etnografia, que sempre menos pertence só à antropologia cultural e se difunde e aplica criativamente na pesquisa empírica. A minha sugestão é que, depois da inicial experimentação entre etnografia e psiquiatria, a etnopsiquiatria, baseada muito nas questões “étnicas”, agora precisa se esforçar para ser aplicada no contexto atual que, como acenado, é sempre mais determinado pela comunicação e pelo consumo. E por uma tendência a pluralizar a clássica “identidade”.

IHU On-Line – Por que ainda existem hospitais psiquiátricos? O que justifica sua existência?

Massimo Canevacci – Depois da reforma, baseada principalmente no pensamento pragmático de Basaglia, na Itália a lei n. 180 é ainda parcialmente aplicada, dependendo da região e, às vezes, de cidade. Penso que a existência deste tipo de hospitais tende a desaparecer. É questão de tempo e de ter uma sensibilidade específica contextual: às vezes algumas pessoas depois de viverem 30 ou 40 anos reclusas não conseguem viver fora. Por isso a lei precisa de um período aplicado, empiricamente e localmente focalizado. A lei n. 180 não pode ser “a” lei geral de aplicar em qualquer lugar na hora. Mas o processo é iniciado e precisa ser finalizado fechando o quanto antes possível o último hospital psiquiátrico para mudá-lo – como o Monte Mario, em Roma, um centro cultural e também um “museu” da história da psiquiatria.

IHU On-Line – Como a luta antimanicomial se coloca na construção de uma sociedade mais inclusiva e democrática?

Massimo Canevacci – Pergunta fundamental. O assunto básico é o seguinte: não se pode isolar a luta antimanicomial do contexto geral e da criação de uma visão da democracia progressiva. A progressividade da democracia significa que este conceito não é histórico, mas baseado sobre a mudança. Por isso, talvez prefiro utilizar a palavra “pública”: a “coisa” (res) é pública e isso significa desenvolver o conceito de “publicidade” numa direção não coletiva, mas baseada sobre os direitos individuais de uma minoria irredutíveis à maioria da população. O problema da saúde mental ou corpo-mental (gosto de usar a expreçao mindful body, no sentido de um corpo cheio de mentes) é problema da expansão do público como direito irrevogável de cada pessoa. Lutar por esta expansão pública, da coisa pública, significa criar uma constituição progressiva que nunca pode acabar, porque sempre precisa enfrentar o mal estar de cada cidadão.

IHU On-Line – Até a reforma de Tuke  e Pinel , os hospitais psiquiátricos exerciam seu poder sobre o corpo dos pacientes através da violência. Com o fim da internação clássica e o surgimento da camisa de força química, a violência vem através do silenciamento, da apatia. Como percebe a medicalização da doença mental?

Massimo Canevacci – Em parte já respondi a esta pergunta. Penso, e aqui quero escutar pessoas mais competentes do que eu, que estamos assistindo a uma nova geração de fármacos que são pesquisados somente porque uma luta contra a tecnologia de “violência legitimada e cientificizada” (eltetrochoque, etc.) ganhou força. Por isso a reforma Tuke e Pinel mudou e continua mudando a pesquisa farmacológica no sentido progressivo. Isso significa que as novas medicinas, se funcionam, funcionam porque uma parte avançada entre psiquiatras, psicanalistas, psicólogo/as e pesquisadores de outras disciplinas puxou na direção da pesquisa, de uma pesquisa sempre menos “objetiva” e sempre mais orientada pelo sujeito. Ao mesmo tempo quero sublinhar que o uso daquela tecnologia era legitimado por um “senso comum”, isto é, da uma penetração hegemônica na cultura da maioria das pessoas, que esta ciência médica era a única legítima para “educar” ou “melhorar” este tipo de doença. Aqui penetramos num lado obscuro que pertence à visão bem profunda nas culturas populares, no sentido mais amplo, sobre o significado simbólico da doença mental. Por isso quero sublinhar de novo com força que o problema não é, e nunca foi, só médico. Sempre foi também legitimado por uma cultura popular que aceitava este tipo de tecnologia como a única apta para resolver problemas intrafamiliares que causavam vergonha, medo etc. E a luta antimanicomial sempre foi e sempre será também uma luta cultural. Uma luta progressiva contra os preconceitos difundidos popularmente e que constituem a legitimação de um poder médico separado.

IHU On-Line – Qual é a fronteira que separa a loucura da sanidade numa sociedade como esta em que vivemos: globalizada, segregatória e excludente?

Massimo Canevacci – Esta é uma pergunta da um milhão de dólares, euros e reais. O que se entende por “loucura” não se pode definir objetivamente. Quem é normal? E quem é anormal? É uma pergunta básica que não pode ser resolvida por uma disciplina só, autônoma em si mesma, separada das outras. Uma minianormalidade, por dizer assim, é difundida em qualquer pessoa. É impossível dizer que uma pessoa é sempre totalmente normal. A expansão da comunicação digital é um exemplo que citei no início. A identidade nunca mais é unitária, compacta, sempre idêntica a si mesma. As identidades entre cada subjeito são sempre mais flutuantes, pluralizadas, fragmentadas e coabitastes no próprio eu. Ou melhor, nos próprios eus. Eu quero sublinhar o lado progressivo destas identidades flutuantes no corpo mental de cada individuo. Um ser a quem prefiro chamar mais de chamar “multivíduo”, uma multidão de eus entre o mesmo sujeito. Nesse sentido, a globalização é sempre também uma localização: ou são culturas glocais. O glocal significa um cruzamento constante dos dois processos que cada pessoa, cultura ou fragmento pode elaborar criativamente. Eu gosto de sublinhar a potencialidade libertadora do processo glocal. E, ao mesmo tempo, quero afirmar que uma disciplina isolada não pode mais penetrar e resolver esta tensão entre loucura e sanidade. Precisamos de “indisciplinas”. Uma “indisciplina” focalizada sobre a questão da “normalidade anormal” é fundamental.

IHU On-Line – Quem é “louco” e quem é “são” em nossa sociedade? Qual é o limite existencial e clínico que separa essas duas categorias?

Massimo Canevacci – O limite é de cada pessoa. E a sensibilidade do clínico está no reconhecer o descentramento da sanidade, a zona limítrofe opaca, que é difícil de determinar e quase impossível de classificar. Por isso o médico precisa constantemente se “indisciplinar” cruzando e favorecendo veredas entre o que está mudando nas culturas pluralizadas e fragmentadas contemporâneas. Aprender a escutar contos individuais que às vezes antecipam comportamentos culturais ainda percebidos como “minoritários” ou “desviantes”, ou talvez “insanos”, mas que apresentam o mal estar de viver no sentido de uma criatividade perturbativa.

IHU On-Line – Se, por um lado, o hospital psiquiátrico é o emblema de um poder simbólico e coercitivo, além de violento, a vida fora dele também tem suas pressões pelo enquadramento do sujeito em determinada norma – uma realidade inescapável. A partir disso, qual é o espaço para as pessoas exercerem sua autonomia?

Massimo Canevacci – Esta é a pergunta das perguntas. O poder simbólico e coercitivo não acaba no limite daquilo que era o hospital psiquiátrico. A violência de um poder historicamente determinado é difundida não somente nas estruturas políticas, econômicas ou religiosas. Muito frequentemente é incorporado como valor na visão de muitas pessoas, pessoas “normais” justa e problematicamente, que olham múltiplos aspectos das diversidades, diversidades em relação a alguns parâmetros que são sempre históricos, como medo, horror, inquietude, ânsia, perplexidade. Às vezes, são projeções de uma angústia pessoal escondida e que se apavora na manifestação pública. Quero dizer que a “loucura” ou “desviança” penetra na interioridade de uma pessoa “normal” e coloca em crise a sua própria estabilidade, o controle difícil sobre a monotonia da quotidianidade, uma possível falência da própria existência, problemas familiares não resolvidos. Então, são inúmeros os estigmas experimentados na própria vida pessoal, que são mais ou menos controlados e que podem explodir na frente de uma pessoa irregular do ponto de vista do “regular”. A assim dita “realidade” é sempre parcialmente determinante, seja pelo mal-estar introjetado, seja pela sensação horrível de que essa mesma “realidade” apresenta uma doença agregada, por dizer assim, que se torna mais poderosa e incontrolável produzindo uma heteronímia subjetiva.

Nesse sentido, o conceito de autonomia, isto é, que cada pessoa cria e transforma o seu próprio destino, é o desafio no qual um contexto mais amplo se inclui entre a fantasmagoria corpo-mental de cada pessoa. Uma novela, uma música, um filme, um telejornal, aquela pessoa que mora na frente ou encontra casualmente na rua pode provocar pânico incontrolável. Ser autônomo significa, para mim, favorecer um nómos (como lei, regras, modelos de comportamentos standard, etc.) outro. Assim, paradoxalmente, a autonomia de cada pessoa penetra e “deseja” a heteronímia, no sentido de lei/regra/modelo, ou seja, outros em relação àquele culturalmente aceitado. Ser heterônomo, assim, não significa ser dependente pelo juízo externo. Pelo contrário, afirmar a própria alteridade (hetero) como legítima e como legitimação de um processo mais amplo onde o que é diferente – o Outro – enquanto diferente exprime um direito pluralizado, não conforme ou geral. Só o direito da diferença pode legitimar uma constituição progressiva. Isso significa não só aceitar, mas desejar quem é diferente, e por isso é idêntico.

IHU On-Line – Nietzsche e Foucault compreendiam a loucura como experiência originária, silenciada pela razão e seu “monólogo”. A loucura guarda, em si, uma verdade que a razão, através do saber médico, trata de encobrir?

Massimo Canevacci – Essa pergunta é dificílima. Nietzsche experimentou uma “loucura” não originária, mas que cresceu e penetrou no corpo da sua filosofia talvez para ter olhado além demais. O além do homem (o Übermensch) é um “divíduo”, sem o “in” inicial que apresenta a indivisibilidade do sujeito como fundação do indivíduo. Dividuo, dividir e esquizo são próximos. Ele aceitou percorrer este itinerário a arriscar a viver os instintos na sua própria “sanidade”. Em parte, a força de seu pensamento era, e ainda é, conectada a um explorar o além. O arriscar o além. Talvez eu esteja tentando apresentar o conceito de multivíduo como uma tentativa de manifestar a multiplicidade do divíduo, isto é, dos eus como plural de eu (que não seria nós). Praticar as diferenças da minha identidade que não quer ser sempre idêntica a si mesma, viver identidades pluralizadas na própria multividualidade, onde os eus transbordam sem (espero!) causar a regressão à esquizofrenia. Eu acho que Basaglia interpretou e praticou Nietzsche. A razão (como Adorno  e Horkheimer  refletiram na Dialética do iluminismo) não se pode contrapor ao mito, instinto, desejo etc. Aqui se abre um discurso mais complexo.

IHU On-Line – Com os leprosários esvaziados, ao fim da Inquisição, seus novos habitantes passaram a ser os loucos, os “leprosos morais”. Como compreender a aura quase mística que gravita em torno da loucura?

Massimo Canevacci – Em muitas culturas, o sujeito que será definido como “louco” apresenta algumas características além da normalidade e, por isso, penetra no sagrado. E o sagrado não deveria ser confundido com a religião. Pelo contrário: a experiência mística é parte de visões praticadas em muitas culturas, por exemplo, o transe. Para enfrentar o invisível (a morte, a doença, a natureza), o sujeito que pratica a viagem mística não pode ser percebido como “normal”. O sagrado está nele. E o sagrado é muito perigoso. Aqui se abre o discurso sobre a crise do Pajé nas aldeias e, ao mesmo tempo, a proliferação de pseudomagos nas cidades, sanguessugas das almas, que instrumentalizam o descontrole da morte ou do amor.

IHU On-Line – Qual é o papel que a “ditadura da beleza”, o imperativo do consumo e da obrigatoriedade em ser alguém bem sucedido exercem sobre a saúde mental dos sujeitos? A pós-modernidade inventou formas de enlouquecimento?

Massimo Canevacci – Acredito que o conceito de pós-modernidade virou sempre mais ambíguo e prefiro abandoná-lo. Claro que a comunicação, sobretudo aquela digital, favorece um modelo de beleza distante da enorme maioria das pessoas e pode criar ou aumentar o mal-estar. Não gosto também da expressão “ditadura da beleza”. O consumo para muitas pessoas é uma experiência recente. Para outras, pode ser um vício. Para outras pessoas ainda pode ser um hobby da quotidianidade. Mas, cuidado: a beleza exprime uma tendência a penetrar no além do “normal”. A beleza modifica a identidade de uma pessoa. Sempre. Ninguém pode ficar o mesmo à frente da beleza. Isso é o drama, mas também o desafio desejante atual que nunca se resolve. A beleza é o além do estupor.

IHU On-Line – Gostaria de acrescentar algum aspecto não questionado?

Massimo Canevacci – Às vezes, as artes olhadas, praticadas, incorporadas podem ser um ótimo remédio. As artes causam doenças na medida em quem são além da doença...

 

Leia mais...

Confira outras entrevistas concedidas por Massimo Canevacci à IHU On-Line:

* Comunicação horizontal e cidadania transitiva: a construção de um novo modelo democrático. Notícias do Dia 30-08-2011;

* A cidadania transitiva no contexto da comunicação digital. Notícias do Dia 21-07-2011;

* A filosofia atrás de uma muralha? Revista IHU On-Line 379, de 07-11-2011.

 

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição