Edição 390 | 30 Abril 2012

A permanência de um passivo social e trabalhista no Brasil

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Graziela Wolfart

Para Márcia de Paula Leite, mesmo com a melhoria do mercado de trabalho brasileiro, a economia solidária ainda se apresenta como uma solução de inserção social da população mais pobre, com menos condições de encontrar um emprego formal

“De 2004 para cá o mercado de trabalho brasileiro, via de regra, melhorou. Estamos tendo um aumento do emprego, uma diminuição do desemprego, da informalidade e uma melhoria do salário médio. Então, nosso quadro é totalmente diferente do quadro da Europa e dos Estados Unidos, por exemplo. Isso vem acontecendo de maneira geral na América Latina, mas têm diferenças de país para país. Esse processo é mais forte no Mercosul, no Brasil e na Argentina”. O quadro positivo é descrito pela professora e pesquisadora da Unicamp, Márcia de Paula Leite. Na entrevista a seguir, concedida por telefone para a IHU On-Line, ela reflete sobre as mudanças em relação à forma de organização do trabalho nas empresas atualmente, bem como sobre a presente situação da mulher no mercado de trabalho. Segundo Márcia, as mulheres vêm apresentando um nível de formação superior ao dos homens, mas continuam ganhando menos. “Isso é um absurdo, porque se nós temos maior qualificação, porque continuamos ganhando menos? Não faz sentido. Segundo as leis do mercado, isso não deveria acontecer nunca. Só acontece porque continua havendo discriminação”, destaca.

Márcia de Paula Leite possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo – USP, mestrado em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp e doutorado em Sociologia pela USP. Atualmente é professora da Unicamp. É coautora de, entre outros, Novas configurações do trabalho e economia solidária (São Paulo: Annablume, 2012).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como você define a forma de organização do trabalho nas empresas hoje? Quais as tendências que percebe no mundo do trabalho?

Márcia de Paula Leite – A primeira coisa que temos que lembrar quando falamos de formas de organização do trabalho é que elas variam muito de acordo com o setor e, especialmente, de acordo com o lugar que as empresas ocupam na cadeia produtiva. Temos hoje uma forma de organização das empresas que é muito diferente daquela que existiu até os anos 1970 e 1980. Atualmente não temos mais a “grande empresa”, que concentrava uma grande parcela da produção internamente. As empresas estão “enxugando”, transferindo uma parte da sua produção para os fornecedores. Estes, por sua vez, fazem o mesmo, o que vai criando um encadeamento produtivo. A forma de organização do trabalho desta empresa líder, ou “empresa mãe” da cadeia produtiva, é muito diferente da forma de organização do trabalho nas empresas que estão no final da cadeia, porque nesse encadeamento temos também uma divisão do trabalho. Temos empresas que ficam com o trabalho mais de concepção e outras que ficam com o trabalho de execução. É claro que as empresas que estão na liderança da cadeia ficam com o “filé mignon” do processo produtivo, com o trabalho mais qualificado. Temos aí uma forma de organização do trabalho mais baseada na polivalência. E quando se vai para o final da cadeia, temos a organização mais taylorista-fordista, porque não há conteúdo para enriquecer o trabalho. Então, a forma de organização do trabalho, hoje, é muito diferenciada de acordo com o lugar que a empresa ocupa nesse encadeamento produtivo. Diferentemente do que acontecia até os anos 1980, em que todas as empresas tendiam a ter uma forma mais homogênea, baseada num trabalho parcelado, dividido. Na atualidade temos uma divisão do trabalho no interior da cadeia.

IHU On-Line – Podemos perceber uma transição do modelo taylorista-fordista nas empresas para o modelo toyotista ou o que temos é uma hibridação de modelos?

Márcia de Paula Leite – Não gosto do termo “modelo toyotista”. Ele gera muita confusão. O que temos é algumas técnicas de organização do trabalho que se difundiram no Japão a partir da experiência da Toyota. Mas o que acontece lá só acontece lá. Por isso que não gosto desse termo. É muito particular. Além disso, a maneira como as técnicas japonesas de organização do trabalho se difundiram para o resto do mundo é muito seletiva. Mas no Japão também é assim. Essas técnicas estão presentes na cadeia como um todo, só que elas aparecem de forma diferente de acordo com a empresa: há a cadeia produtiva e há uma grande diferença na forma de organização do trabalho de acordo com o lugar que a empresa ocupa nesta cadeia. O que temos é uma forma de organização do trabalho baseada na flexibilidade, ou seja, formas flexíveis de organização do trabalho que buscam a flexibilização e que não acabam com a lógica da organização taylorista-fordista do trabalho; elas se misturam com as técnicas tayloristas-fordistas. As técnicas fordistas e tayloristas continuam existindo. Aparecem de forma menos estendida do que já foram, mas continuam lá, especialmente nessas empresas que estão mais no final da cadeia, produzindo produtos de menor conteúdo tecnológico. Essa posição de “antigamente tínhamos o fordismo e hoje temos o toyotismo” não explica nada.

IHU On-Line – A partir do livro “Novas configurações do trabalho e economia solidária”, quais seriam essas novas configurações que caracterizam o mundo do trabalho hoje?

Márcia de Paula Leite – Quando nos referimos, nesse projeto, às novas configurações do trabalho, estamos falando de um conjunto de formas de trabalho que já existiam, mas que assumem novas características. Por exemplo, nesse encadeamento produtivo que defini anteriormente, temos um processo muito forte da chamada terceirização, porque as empresas estão “enxugando” e colocando parte do seu processo produtivo para fora. O que acontece é que como esta é uma realidade em todas as empresas, teremos no final da cadeia produtiva empresas produzindo produtos muito simples, sem nenhum conteúdo tecnológico. Em geral, nessas empresas há um ressurgimento do trabalho informal, à domicílio, por tempo determinado etc. Isso é muito forte no setor de vestuário. Mas também acontece em outros ramos do setor industrial, de serviços, bancário (e aqui entra todo esse trabalho de call center, por exemplo), até no trabalho informal, de camelôs. Então, percebemos uma reconfiguração das características do trabalho em todos os setores e que está ligada a essa transformação da organização empresarial. 

IHU On-Line – De que maneira a expansão contemporânea da economia solidária se relaciona com o processo de globalização e de reestruturação econômica e com o aumento do desemprego e do trabalho precário?

Márcia de Paula Leite – A economia solidária surge no Brasil como uma proposta de resistência ao desemprego e ao trabalho precário que aumentou brutalmente nos anos 1990. Temos mundialmente essa característica do mercado de trabalho: todo esse movimento da reestruturação produtiva, da globalização que vem se dando sob a hegemonia do capital financeiro e dos princípios do neoliberalismo, está levando a um processo muito forte de precarização do trabalho, de aumento do desemprego. Isso ocorreu também no Brasil, acompanhando a tendência mundial, nos anos 1990. A partir dos anos 2000 tivemos uma mudança nesse quadro, porque a economia internacional começou a favorecer os países produtores de commodities, como era o caso da América Latina. E a partir de 2003 tivemos uma mudança nas políticas públicas, de desenvolvimento e voltadas para o mercado de trabalho. E o Brasil se distanciou desse quadro internacional. De 2004 para cá o mercado de trabalho brasileiro, via de regra, melhorou. Estamos tendo um aumento do emprego, uma diminuição do desemprego, da informalidade e uma melhoria do salário médio. Então, nosso quadro é totalmente diferente do quadro da Europa e dos Estados Unidos, por exemplo. Isso vem acontecendo de maneira geral na América Latina, mas têm diferenças de país para país. Esse processo é mais forte no Mercosul, no Brasil e na Argentina. E a economia solidária é uma forma de luta e resistência dos trabalhadores à situação de desemprego e de precarização de trabalho, que ocorreu nos anos 1990 e início dos anos 2000. Ela surge como uma proposta de um grupo, uma liderança de esquerda, junto com o movimento social, no Fórum Social Mundial em 2001, no sentido de criar trabalho e renda. No entanto, ao longo do seu desenvolvimento, a economia solidária vai criando novas características, especialmente em função da mudança do mercado de trabalho, que começa a melhorar.

Estruturação do mercado de trabalho 

Passamos por um processo de estruturação do mercado de trabalho, que ainda está em andamento. Do início dos anos 2000 para cá, a taxa de desemprego caiu pela metade. Ela era por volta de 12% e hoje está inferior a 6%. Já tem gente falando em pleno emprego no Brasil, e há certas categorias em que não se encontra mais mão de obra. O que acontece é que, apesar de ter havido essa melhoria no mercado de trabalho, não podemos dizer que “então, aquela situação que deu margem ao surgimento da economia solidária desapareceu e a economia solidária vai desaparecer também”. Isso não acontece, porque nós temos um passivo social e trabalhista enorme no Brasil. Temos uma enorme parcela da população brasileira que é de miseráveis, de pobres, que nunca conseguiram um trabalho estável, que têm muito pouca formação, escolaridade, e que são pessoas mais velhas e não têm como entrar no mercado de trabalho formal. A economia solidária, de uma proposta para uma realidade em que os trabalhadores estavam perdendo seus empregos e que apontava para uma transformação social, começa a se transformar por causa da mudança do mercado de trabalho para uma solução de inserção social desta população mais pobre, com menos condições de entrar no mercado de trabalho. O que se destaca são os catadores de material reciclável e as cooperativas de reciclagem. Outras formas de economia solidária são os setores de alimentação, artesanato, costura, mas dificilmente podem ser englobadas dentro de um movimento de maior expressão, como é o caso dos catadores.

IHU On-Line – Como está a situação da mulher no mercado de trabalho atual? Quais os desafios e conquistas recentes?

Márcia de Paula Leite – Uma das conquistas mais recentes é que as mulheres vêm conseguindo entrar em nichos de mercado em que antes não conseguiam, em profissões como engenharia, física, que eram absolutamente masculinas. Outra conquista é que vem diminuindo a diferença salarial entre homens e mulheres. Elas continuam ganhando menos do que os homens, mas essa diferença já não é tão grande como foi nos anos 1970 e 1980. As mulheres vêm conseguindo ter acesso a cargos de direção, o que é outro avanço. Pouco a pouco, elas vêm tendo êxito, com muita luta, no sentido de melhorar a sua situação no mercado de trabalho.

No entanto, ainda há muito a ser feito. Por exemplo, as mulheres são mais escolarizadas hoje do que os homens na maior parte dos países do mundo, com exceção de alguns países da África e dos países árabes. Elas vêm apresentando um nível de formação superior aos dos homens, mas continuam ganhando menos. Isso é um absurdo, porque, se nós temos maior qualificação, por que então continuamos ganhando menos? Não faz sentido. Segundo as leis do mercado, isso não deveria acontecer. Só acontece porque continua havendo discriminação. 

Dinâmica de reposição das desigualdades

Além disso, existe uma dinâmica do mercado de trabalho que repõe as desigualdades: melhora-se a situação em alguns aspectos, mas a desigualdade se repõe em outros. O grande problema é que a divisão sexual do trabalho não muda. Temos o trabalho reprodutivo, que é o trabalho doméstico, que garante a continuação da espécie, o cuidado com os filhos, com a casa, com a família. E temos o trabalho remunerado, fora de casa. O que estamos falando é sobre esse trabalho remunerado, de profissional. O imaginário de que o trabalho doméstico e da reprodução é de responsabilidade exclusivamente da mulher faz com que ela entre no mercado de trabalho numa situação muito desigual em relação ao homem. Quando os filhos são pequenos, ou ela tem uma dupla jornada ou tem que sair do mercado de trabalho para cuidar dos filhos e depois, quando volta, é numa situação de defasagem, muito mais difícil; ou então ela não pode se dedicar ao trabalho como o homem, porque ela tem a dupla jornada, com os filhos esperando por ela. Ou ainda ela contrata outra mulher, quando tem um salário que lhe permite fazer isso, para fazer o trabalho doméstico que não consegue fazer. Ou seja, cria-se todo um conjunto de transformações para manter inalterada essa divisão sexual do trabalho, que confere às mulheres um determinado papel e aos homens outro e que faz com que a situação das mulheres no mercado de trabalho seja muito difícil. Isso explica também em parte porque as mulheres, mesmo tendo uma escolaridade significativamente maior do que a dos homens, continuam ganhando menos. 

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